Opinião e Análise

Alex Ferreira

Uma das inovações da reforma do processo tributário (<a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154737">PLP 125/2022</a>) é a normatização do conceito de devedor contumaz e a instrumentalização processual para a sua configuração. Segundo o referido projeto, nas hipóteses de simulação, dissimulação e fraude, e após o processo administrativo fiscal específico que as reconheça, o contribuinte afetado ficará impedido, em regra, de gozar de benefícios fiscais, remissões, anistias, de participar de parcelamentos, utilizar créditos fiscais de IRPJ e CSLL ou, até, de pleitear recuperação judicial ou nela prosseguir.
Pretendemos neste artigo analisar os fundamentos jurídicos para a definição do devedor contumaz e sua aderência aos princípios tributários.
O Sistema Tributário Nacional foi erigido por princípios constitucionais que limitam o poder de tributar e trazem segurança ao contribuinte de que não será obrigado a pagar além do que cabe ao Estado arrecadar. Em contrapartida, o ente público tem garantido o seu direito de tributar, desde que inexista excessos na função de fiscalização, arrecadação ou na utilização de mecanismos coercitivos extrajudiciais para cobrança de tributos, mediante o uso de restrições ao livre exercício da iniciativa.
Há uma preocupação com a proteção do contribuinte frente às ações do Estado. Mas não menos importante é o comportamento do contribuinte perante a Administração Tributária e os reflexos advindos quando aquele não cumpre com seu dever fundamental de pagamento do tributo.
As normas constitucionais tributárias, que limitam o poder de tributar e garantem que o contribuinte não sofrerá arbitrariedade e nem confisco do seu patrimônio, se colocam diante da problemática atual de que o não pagamento de tributos de forma deliberada e injustificada constitui uma ilicitude que deve ser combatida, pois viola o direito da Fazenda Pública e de toda a sociedade com relação a arrecadação para custeio da saúde, educação, previdência social etc., além de trazer desequilíbrios econômicos e injustiça com aqueles que recolhem pontualmente os tributos.
Nesse pensamento, tanto o Estado pode praticar condutas ilícitas e violadoras das garantias constitucionais ao poder de tributar e fiscalizar, como também o contribuinte pode praticar condutas capazes de gerar grande prejuízo ao Estado.
O inadimplemento gera um aumento de custos de estrutura para fiscalização e compromete os níveis de investimento estatal. Já os contribuintes cumpridores de seus deveres, por sua vez, se vêem obrigados, ao fim e ao cabo, a pagar mais tributos para “compensar” o inadimplemento daqueles que praticam a evasão tributária, além de prejuízo da concorrência praticada pelos devedores contumazes que podem vender seus produtos de forma menos onerosa.
Nesse sentido, o não pagamento de tributos frustra a aplicação da igualdade tributária, deteriora a distribuição de encargos fiscais de acordo com a capacidade contributiva e pode forçar o Estado a aumentar a carga tributária, gerando um efeito nocivo para a concorrência, até mesmo inviabilizar o negócio do bom contribuinte (concorrência desleal).
Diversas legislações estaduais passaram a instituir regimes mais rígidos para coibir o mau pagador, com o objetivo de desencorajar a inadimplência, pois apenas a aplicação da multa punitiva e juros não se mostraram suficientes para o combate da inadimplência contumaz.
Outro desafio é perquirir qual seria o critério diferenciador para aplicação de diferentes níveis de exigências do contribuinte, distinguindo entre aqueles que são inadimplentes eventuais dos devedores contumazes (critério de desequiparação entre os sujeitos passivos) e a proporcionalidade das medidas aplicadas, que devem guardar coerência com os interesses protegidos pelo legislador constitucional.
Os devedores podem ser classificados a partir do comportamento e da justificativa que cada um apresenta para o não pagamento do tributo. Desse modo, é possível enumerar três classes de devedores: o eventual, o grande devedor e o sonegador equiparável ao devedor contumaz<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O devedor eventual está associado ao cenário de crise financeira ou econômica temporária. O grande devedor, por sua vez, é detentor de um valor substancial e que pode estar em discussão administrativa ou judicial. Já o sonegador ou o devedor contumaz apresenta como traço característico a reiteração da conduta de não pagamento do tributo e o montante relevante envolvido, aliado ao elemento volitivo específico de fraude/sonegação, como definido pelo Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334.
O PLP 125/2022 caminhou bem ao tentar objetivar e procedimentalizar os requisitos para o reconhecimento da contumácia, hoje dispersos em legislações e capitaneados pelo STF no citado RHC 163.334, uma vez que busca criar uniformidade entre as legislações de todos os entes federados, de modo a estabelecer a diretriz a ser seguida na definição do conceito.
No entanto, a proposta legislativa foi omissa quando excluiu da definição aquele que ilegítima e injustificadamente não paga o tributo e desvia os recursos para financiamento do próprio negócio, aumentando suas margens operacionais ou até mesmo para reduzir o seu preço, mas sem o intuito fraudulento. Defendemos que se estabeleça controles mais rígidos em face do contribuinte que utiliza os tributos como fonte de receita da empresa.
O não recolhimento de tributo de forma injustificada e ilegítima também é uma prática nociva à sociedade e ao fisco. A conduta de quem declara os tributos e não os recolhe ao longo de um determinado tempo é merecedora de regime fiscal mais rígido, mas repita-se, deve ser observada a proporção e os interesses constitucionais, de modo a evitar os abusos fiscais, ou seja, a medida aplicada há que ser aferida desde que não haja arbitrariedades pelo fisco.
Todavia, é preciso que o conceito de contumácia esteja vinculado ao de capacidade de pagamento, para que o devedor eventual não seja indevidamente penalizado, o que ocorre quando apenas critérios de tempo ou de valor são eleitos como identificadores de devedores contumazes, como faz a maioria das legislações estaduais, sem se atentar a elementos outros, como: a evolução patrimonial do devedor ao longo desse período, rescisões de parcelamentos e/ou transações, histórico de pagamentos de tributos vencidos e vincendos, o relacionamento com as autoridades fiscais, comportamento do devedor ao longo dos últimos dois ou três exercícios etc.
Ou seja, o PLP 125/2022 carece de melhorias para que na caracterização da contumácia do devedor sejam levados em consideração, para além de critérios de valor, tempo, e o elemento volitivo, também, todo um contexto negocial, econômico e de conformidade do contribuinte de modo a constatar se o atraso reiterado e sistemático configura um modus operandi do contribuinte.
Por fim, entende-se que o PLP 125/2022 caminhou muito bem ao tentar estabelecer uma uniformidade conceitual e procedimental para a definição e caracterização do devedor contumaz mas, ainda, demanda alguns ajustes para bem capturar a realidade econômica de outros contribuintes que acabam por utilizar a rolagem de sua dívida fiscal como modelo de negócios às custas de toda a sociedade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Adotamos a categoria de devedores descrita por Júlia Silva Araújo Carneiro, em sua dissertação de mestrado "O Devedor Contumaz no Direito Tributário: premissas teóricas, conceito e regime jurídico", pág. 26 e seguintes, da Fundação Getulio Vargas, 2020.

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PLP 125/2022 caminhou muito bem ao tentar estabelecer uniformidade conceitual, mas demanda ajustes

O conceito de devedor contumaz no projeto de reforma do processo tributário

PLP 125/2022 caminhou muito bem ao tentar estabelecer uniformidade conceitual do devedor contumaz, mas demanda ajustes