Opinião e Análise

Thiago Morelli Rodrigues de Sousa

Tramita atualmente, no<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado-federal"> Senado Federal</a>, o Projeto de Lei n° 2.481, de 2022. Esta proposta altera a Lei nº 9.784/99, a qual regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal.
O projeto decorre do trabalho de uma comissão de juristas, designada pelo ato do presidente do Senado Federal n° 1, de 2022, para alterar diversos dispositivos, tanto do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">Código Tributário Nacional</a>, quanto da legislação tributária federal.
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Um dos pontos de especial interesse, no citado projeto, é a criação da figura dos Negócios Jurídicos Processuais (NJP), no seu artigo 25-A, para o contencioso administrativo federal e, notadamente, para o contencioso tributário federal.
É inevitável que o instituto traga instigantes questionamentos. Primeiramente, pois foi concebido, na legislação processual civil, para resolver litígios entre particulares que detêm capacidade para dispor de ônus e faculdades processuais, dentro de um processo instaurado, e diante de um juiz imparcial e equidistante das partes. Não parece que a totalidade de conclusões doutrinárias e jurisprudenciais acerca do instituto, em sua versão civil, simplesmente caiba nessa nova figura, homônima àquela instituída pelo Código de Processo Civil - CPC, porém sem intervenção do Estado-juiz, e diante de contencioso em que o órgão decisório é, também, interessado (como é o caso dos Tribunais Administrativos).
Mas, dentre todos os questionamentos possíveis, o primeiro e mais relevante é o de saber se a Administração Tributária pode entabular os NJP’s, dentro do processo administrativo em que se verifica o conflito em relação ao crédito tributário, cujo principal ato constitutivo é o lançamento. É cabível um acordo de vontades que gere reflexos num procedimento administrativo totalmente regulado em lei?
Isso porque o artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN) estatui que “compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento”. Ou seja, pelo CTN, o lançamento deve ser ato privativo da autoridade, sem participação do particular. Prosseguindo, o dispositivo delimita o lançamento como o “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”. Para arrematar, o parágrafo único do mencionado artigo qualifica a “atividade administrativa de lançamento” como “vinculada e obrigatória”.
Ou seja, o lançamento é ato administrativo vinculado, cuja competência, finalidade, forma, objeto e motivo constam explicitamente em lei; é privativo da autoridade, e serve para verificar a ocorrência dos diferentes critérios da regra matriz de incidência tributária. E este contorno serve para cumprir o princípio da legalidade, versado principalmente no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Nesse sentido, e sendo o CTN norma geral em matéria tributária, assim recepcionada pela CF/88 com status de lei complementar, e sendo reservada à lei complementar a disciplina do lançamento tributário (art. 146, III, “b”, da CF/88), a questão é: pode o processo administrativo, que se destina a validar (ou não) a constituição do crédito a ser colmatado pela vontade conjunta da administração e do administrado? O princípio da legalidade, na estrita visão que permearia o lançamento, dá espaço para o acordo de vontades? E em que medida tal acordo pode alterar o rito normativo, uma vez que todo o procedimento de lançamento é disciplinado por lei?
A resposta a esses questionamentos passa pela própria compreensão, e evolução, que o princípio da legalidade sofreu, desde sua declaração na Magna Carta de 1215, até o presente momento.
Durante relativamente largo período na história, a legalidade era vista de forma dicotomizada: o indivíduo poderia conduzir suas ações livremente, exceto se houvesse lei proibitiva; já a Administração só poderia atuar se houvesse lei permissiva.
Essa visão, conquanto em certa medida válida, pois objetiva evitar o arbítrio e o abuso no exercício da função pública, parece cada vez mais destoada da liquidez com a qual a sociedade, e os indivíduos, vivem na atualidade.
Especificamente quanto ao contencioso administrativo tributário, não é possível que o Poder Legislativo, a todo tempo, legisle sobre a melhor forma de resolver os litígios, na esfera tributária. Não conseguirá criar regras abstratas e gerais que melhor se adequem a cada interesse em disputa, ou para cada objeto em litígio, ou para cada situação pessoal dos litigantes. E, por outro lado, a existência de um único iter contencioso, independentemente de todas as circunstâncias laterais ao lançamento, embora pareça consentâneo à legalidade, milita contra os demais princípios insculpidos no artigo 37 da CF/88, notadamente a isonomia, e a eficiência.
E, por conta disso, entende-se que a Administração Tributária precisa, muito mais que obedecer a lei, seguir os princípios e os vetores do ordenamento jurídico. Atentar aos objetivos da República, plasmados na Constituição, e verificar se sua escolha reflete tais objetivos. O controle de legalidade, numa sociedade líquida, torna-se, portanto, um controle de juridicidade.
E os NJP’s são a forma de conferir adaptabilidade ao procedimento, respeitando-se, assim a legalidade, como controle de juridicidade dos atos estatais.
A uma, pois é da natureza dos negócios jurídicos, quer sejam os processuais, permitidos pelo artigo 190 do CPC, quer sejam os materiais, previstos nos artigos 104 e seguintes do Código Civil Brasileiro, a possibilidade de criar acordos “atípicos”, ou seja, negócios que não se enquadrem naqueles tipificados pela legislação ou, mesmo nos acordos “típicos”, alterar os efeitos do negócio, em relação àqueles legalmente previstos, excetuados os casos em que a própria lei impede que determinada cláusula possua contornos diferentes daqueles nela versados.
A duas, pois, tomada a premissa de que o controle de legalidade dos atos passou a ser mais um controle de juridicidade, há um espaço para a atividade criativa da Administração Pública pois, ainda que sua conduta não esteja prevista em norma legal, o comportamento será legitimado pelo sistema jurídico, quando respeita o ordenamento como um todo. Não por outro motivo o referido PL vale-se de normas principiológicas, além de prever o próprio instituto do NJP de forma aberta.
E, ainda, há uma terceira razão: afirmar que a constituição do crédito tributário deriva da lei não é o mesmo que dizer que a forma de aferir a validade do crédito constituído deriva de lei.
O lançamento, como ato constitutivo do crédito, é o que verifica a ocorrência do fato gerador, e sua conformação à regra matriz de incidência do tributo. Esse ato acarreta, inexoravelmente, o início do processo que confirmará ou não o lançamento, o qual é necessariamente dialético, nos termos do artigo 14 do Decreto nº 70.235/72. O lançamento é procedimento administrativo de conformação do fato à norma; e, com a impugnação do lançamento, passa a haver, propriamente, um processo administrativo de constituição do crédito tributário.
Enquanto o lançamento é um ato da Administração Tributária, o processo administrativo que o segue contém atos da administração (de impulso ou decisórios), e atos do contribuinte. E, nesta fase, a forma como as partes se relacionam com o ato de lançamento pode, sem dúvidas, ser adaptada, o que decorre de uma gama de circunstâncias do caso concreto, que podem se subsumir à lei, como se o contribuinte foi ou não encontrado para exercer sua defesa, ou se decidiu ou não exercer o ônus recursal. Assim, é possível que algumas das circunstâncias, para o acertamento do crédito, possam ser também aquelas negociadas entre os interessados (Fisco e contribuinte).
No processo civil, uma das grandes inovações do atual CPC é a da adaptabilidade do procedimento. Quando houver acordo entre as partes, o rito a ser seguido pode ser modificado, prazos processuais podem, em determinadas hipóteses, ser alterados, fases processuais podem ser invertidas, e recursos podem ser suprimidos. A adaptabilidade é o reconhecimento de que o processo não pode ser empecilho à realização do direito material a que as partes têm direito. Até mesmo a Fazenda Pública, quando em juízo, pode entabular NJP’s: veja-se, no caso da PGFN, responsável pela defesa da União em matéria tributária, as possibilidades constantes na Portaria PGFN nº 742/18.
Deve haver, porém, para os NJP’s administrativos, um limite para a alteração do procedimento: o cumprimento finalístico, pela Administração, dos princípios administrativos, constantes no mencionado artigo 37 da CF/88, e repetidos no artigo 2º da Lei n° 9.784/99. Não por outro motivo, o art. 25-A do PL dispõe, em seu § 1°, que o “negócio jurídico processual administrativo deverá ser celebrado após a manifestação do órgão jurídico, observados os princípios previstos no artigo 2° desta Lei”. O controle do ato pelo órgão de consulta jurídica, e a observação aos princípios da administração, transformam o controle de legalidade em autêntico controle de juridicidade.
Uma sugestão, para o aperfeiçoamento do texto, seria incluir balizas para a utilização do instituto, como faz o artigo 190 do CPC: dispor acerca dos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais. Assim, por exemplo, atos materiais de disposição do crédito ficariam, desde logo, resguardados. Também seria necessário discorrer, ainda que genericamente, acerca da competência à assinatura do termo, e à possibilidade de delegação mediante normatização infralegal. Deste modo, o texto ficaria semanticamente fechado, embora axiologicamente aberto, conferindo às partes maior segurança jurídica na assinatura dos NJP’s.
Os negócios jurídicos processuais são, portanto, instrumentos adequados à adaptação do rito, nos processos administrativos decorrentes da constituição do crédito tributário, e o princípio da legalidade administrativa não pode ser considerado um empecilho à sua realização.

negoicos

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JOTA

Criação dos NJPs, prevista em PL que tramita no Senado, suscita instigantes questionamentos

Negócios jurídicos processuais no contencioso tributário e legalidade

Criação dos NJPs, prevista em projeto de lei que tramita no Senado Federal, suscita instigantes questionamentos