Com a recente implementação dos meios alternativos de resolução dos conflitos, especialmente no âmbito federal, surge a preocupação acerca da possibilidade de se questionar a validade de acordos e de pagamentos realizados no âmbito da transação tributária que tenham por objeto créditos tributários que podem no futuro ser considerados ilegais ou inconstitucionais.
Contrasta-se a segurança jurídica em favor da impossibilidade de discussão do débito objeto da transação com a coerência do sistema normativo e outros valores constitucionais como a isonomia e a própria supremacia da Constituição Federal, para se defender a possibilidade de questioná-lo.
Constatada a dificuldade de se estimular o comportamento de conformidade dos contribuintes a partir de uma atuação voluntária e da dificuldade de se recuperar créditos tributários no curso das execuções fiscais, tem-se notado um esforço da administração pública para implementar meios alternativos de extinção das controvérsias tributárias.
Com esse objetivo, a Procuradoria da Fazenda Nacional disponibilizou várias espécies de transações aos contribuintes que desejam regularizar seu passivo tributário, disciplinadas pela Lei no 13.988/2020, que estabelece, entre outras condições, as obrigações do contribuinte de “desistir das impugnações ou dos recursos administrativos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação…”, de acordo com o seu art. 3o, IV, e “renunciar a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundam ações judiciais, inclusive as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos tributários incluídos na transação…”, de acordo com o art. 3o, V, da mesma lei.
A um primeiro olhar, formulada a renúncia, acredita-se que ao contribuinte não seria permitido discutir o crédito tributário submetido à transação. Não obstante alguma ressalva ao caráter aderente da transação e à amplitude da renúncia, contemplando inclusive direito atrelado a fato futuro e incerto, que não se pretende analisar nesta oportunidade, parece existir, na transação, um acordo de vontades entre contribuinte e Estado.
Havendo concessões mútuas, em que o contribuinte, sopesando o custo e o benefício de sua escolha, dispensa, à sua liberalidade, o direito de ação, que é uma faculdade sua, não parece possível, considerando-se a autonomia da vontade, discutir-se, futuramente, o crédito tributário transacionado.
Nesse contexto, acredita-se não se aplicar o entendimento veiculado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do julgamento do recurso especial representativo de controvérsia no 1.133.027/SP[1], que permitiu o questionamento de débitos tributários parcelados, que teriam sido previamente confessados pelo contribuinte. Isto porque, naquele caso, analisou-se a contradição do questionamento dos débitos em relação à prévia confissão deles, tendo a corte superior entendido que a confissão está atrelada à declaração de um fato, sem necessária influência sobre os seus efeitos jurídicos. No caso da transação, está-se diante de renúncia ao direito em que se funda a ação, que diversamente da confissão, constitui ato de abdicação de um direito disponível[2], não podendo, a princípio, ser relativizado.
Em que pese a impossibilidade de se questionar, a princípio, o débito transacionado, há que se avaliar a extensão da renúncia formalizada pelo contribuinte em cada caso.
Vale observar, por exemplo, as condições estabelecidas para a transação no contencioso tributário, por meio do Edital no 11 de 2021, relativas a contribuições previdenciárias e destinadas a outras entidades ou fundos incidentes “(…) sobre a participação nos lucros e resultados (PLR), por descumprimento da Lei 10.101, de 19 de dezembro de 2000”. As cláusulas 2.2 e 2.3[3] estabelecem, respectivamente, a obrigação do contribuinte de confessar os débitos incluídos na transação e de desistir de impugnações e recursos administrativos, além de renunciar às alegações de direito sobre as quais eles se fundam.
Vale notar que o edital não reproduziu a supracitada obrigação contida no art. 3o, V, da Lei no 13.988/2020, que estabelece a necessidade ampla de renúncia a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem ações judiciais, havendo, ao que tudo indica, uma opção por não se adotar essa condição. Nesse contexto, o contribuinte que venha a aderir à referida transação estaria obrigado a renunciar única e exclusivamente às alegações já veiculadas em defesas administrativas, podendo, contudo, questionar outros pontos que não tenham sido objeto dessas defesas.
Embora se possa alegar que o edital deveria estabelecer a renúncia ao direito em que se funda a ação como condição à transação tributária, de acordo com a previsão do art. 3º, V, da Lei nº 13.988/20, por outro lado, não há margem para se presumir a referida renúncia, considerando que o direito de ação é uma garantia constitucional[4], passível de ser afastado apenas por vontade inequivocamente manifestada pelo cidadão[5]. Dessa forma, ainda que se entenda seja ilegal o edital que deixou de estipular a renúncia como condição da transação, o que se acredita, inclusive, não poderia ser oposto ao contribuinte que, de boa-fé, tenha aderido ao correspondente edital, em atenção ao princípio da proteção da confiança, entende-se não ser possível afirmar que a adesão à transação resultaria em renúncia ao direito em que se funda a ação, sem que haja ratificação expressa em relação a isso.
Em todo caso, uma solução possível para se minimizar a abertura para questionamentos de débitos tributários que tenham sido objeto de transação, em função de entendimento superveniente que venha a declarar a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da norma que fundamenta a obrigação tributária correspondente, é a adoção da modulação dos efeitos dessas decisões, pelas cortes superiores, com fundamento nas razões de segurança jurídica, para se preservar a relação obrigacional estabelecida através de transação.
Por tudo isso, entende-se não ser possível, a princípio, questionar-se débitos tributários que tenham sido objeto de transação, quando tiver sido formalizada a renúncia ao direito em que se funda a ação, mas apenas nos limites dessa renúncia, recomendando-se, ainda, que os tribunais superiores passem a modular os efeitos de decisões que venham a invalidar cobranças tributárias para preservar as relações disciplinadas por meio de acordos de transação.
[1] PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. Recurso Especial representativo de controvérsia (art. 543-C, § 1o, do CPC). AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO COM BASE EM DECLARAÇÃO EMITIDA COM ERRO DE FATO NOTICIADO AO FISCO E NÃO CORRIGIDO. VÍCIO QUE MACULA A POSTERIOR CONFISSÃO DE DÉBITOS PARA EFEITO DE PARCELAMENTO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO JUDICIAL.
(…)
-
Situação em que o vício contido nos autos de infração (erro de fato) foi transportado para a confissão de débitos feita por ocasião do pedido de parcelamento, ocasionando a invalidade da confissão.
-
A confissão da dívida não inibe o questionamento judicial da obrigação tributária, no que se refere aos seus aspectos jurídicos.
(…)
-
Divirjo do relator para negar provimento ao recurso especial. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C, do CPC, e da Resolução STJ n. 8/2008. (REsp 1133027/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/10/2010, DJe 16/03/2011)
[2] Renúncia ao direito sobre o que se funda a demanda é o ato abdicativo pelo qual o demandante reconhece não possuir o direito alegado; o reconhecimento da procedência do pedido é a conduta do demandado que admite a procedência do pedido que lhe foi dirigido (submissão). (DIDIER JUNIOR, Freddie. Curso de direito processual civil. 14 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012. pág. 590)
[3] 2.2. O aderente deverá confessar, de forma irrevogável e irretratável, nos termos dos arts. 389 a 395 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, ser devedor dos débitos incluídos na transação, pelos quais responde na condição de contribuinte ou responsável.
2.3. A adesão à transação de que trata este Edital implica desistência, por parte do aderente, das impugnações ou dos recursos administrativos interpostos, em relação aos débitos incluídos na transação, e renúncia às alegações de direito sobre as quais essas impugnações ou recursos tenham fundamento”.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[5] Analisando a renúncia no âmbito do processo civil, Humberto Theodoro Júnior entendeu não existir renúncia tácita: “Não há renúncia tácita. In casu, a manifestação de vontade de renunciar só pode ser expressa e deve constar de documento escrito juntado aos autos. Quando manifestar a parte, oralmente a renúncia a seu direito, em depoimento pessoal, por exemplo, será ela reduzida a termo.
(…)
Em síntese: a renúncia ao direito material elimina o direito de ação; (JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil – Volume I. 51ª ed. Rio de Janeiro. Forense. 2010. fl. 332)