Pauta Fiscal

Limites da aplicação da lei diante da nova realidade em matéria de tributos

Não se admite que o direito seja aplicado segundo situações conjunturais aos sabores do particularismo do julgador

GovBogotá/Fotos Publicas

Neste momento de fragilidade na saúde e na economia (para nos atermos a estes campos das ciências) indagamos qual será o papel do Judiciário, em face dos litígios a surgir em matéria tributária.

O direito formal (assim compreendido aquele posto pelo Estado) consiste em uma instância do todo social. Nas sociedades capitalistas em que a troca mercantil é a sua força propulsora, o Estado, mediante o direito, assegura – (ou deveria assegurar) – o pleno funcionamento das relações econômicas, se apresentando como instrumento de continuidade deste sistema produtivo. Tal afirmativa não é nova, há muito desenvolvida por Eros Grau1; apenas contextualizada ao momento que ora se cuida.

Por seu turno, o Estado brasileiro moldado pelo Texto Constitucional de 1988, prescreve regras de cunho social (veja-se, por exemplo, o Capítulo intitulado “Da Ordem Social”, em que um dos enunciados prescreve ao Estado garantir o direito à saúde de todos os cidadãos). Assim, a porção “social” determinada pelo Texto de 1988 depende da produção de riqueza sob a forma capitalista.

O direito sistematizado pelo Estado moderno configura o “espelhamento” de uma sociedade que o constituiu; naquelas capitalistas, em que se toma por base o apoderamento da propriedade e a busca pela produção/circulação de riqueza, a regra jurídica da legalidade desempenha fator preponderante, pois o dinamismo do capitalismo só pode ser assegurado quando se confia no porvir, quando há previsibilidade e calculabilidade, em suma, segurança.

Se a sociedade se altera no plano dos fatos, na sua concreção, o direito deve se organizar para acomodar, no seu interior, tais modificações, enfim cabe ao Poder Legislativo legislar sobre as novas demandas pragmáticas, ao Executivo regulamentar a legislação existente sem desbordar a lei, e ao Judiciário julgar aplicando, rigorosamente, a lei.

O temporário “desligamento” da sociedade capitalista no Brasil alterará as relações inter-humanas, atingindo as coordenadas de espaço, tempo e liberdade. E o que se passará com o direito tributário no Brasil diante da crise mundial?

Advogados tributaristas elegem possíveis medidas para minimização da crise, sob o olhar das empresas (financiadoras do Estado), como nos dá conta Breno Ferreira Martins Vasconcelos e Thais Romero Veiga Shingai2, que propuseram a normatização sobre: a suspensão do regime de competência (para caixa) com a alteração da forma de apuração da Contribuição ao PIS/COFINS; suspensão de constrições patrimoniais assecuratórias do crédito tributário (penhoras online e de faturamento); ampliação de prazos para apresentação de declarações fiscais.

Por outro lado, o Fisco3 também apresenta à sociedade propostas para manutenção da arrecadação, garantidoras do Estado Social, como a criação da Contribuição Social sobre o Lucro sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSPF); de alíquota adicional extraordinária de 30% da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL) das instituições financeiras, dentre outras medidas.

Tais sugestões dependem da atuação dos Poderes Legislativo e Executivo, na esfera de suas competências.

Sem ingressar no mérito de cada uma das propostas acima, o tema deste breve artigo é a atuação do Poder Judiciário.

A doutrina distingue, no âmbito da abstração e da generalidade, as regras – que, em seu antecedente, trazem tipos cujas propriedades se traduzem pela abertura, permitindo graduações –, daquelas em que o antecedente impõe conceitos rígidos, determinados e fechados (conceitos classificatórios). A distinção decorre do subsistema jurídico objeto de análise. Por exemplo, no direito civil (contratos e negócios jurídicos), em que as partes estipulam livremente o teor de sua declaração de vontade, predominam os tipos; ao passo que, no direito tributário e no penal, a conceituação rígida definida normativamente confere restrito grau de adaptabilidade da lei à modificação das condições sociais e econômicas, mas, de outro lado, garante a estabilidade das relações jurídicas.

Assim, no subsistema tributário, em que a primazia é a previsibilidade e a calculabilidade das relações jurídicas, não se admite a presunção da ocorrência do fato jurídico tributário, tampouco a utilização do emprego de analogia para exigência – ou dispensa – de tributo (e penalidades) ou mesmo de deveres instrumentais, sem lei previamente estabelecida.

Retomando o cenário atual (pandemia). Na hipótese do Legislativo e do Executivo ainda não terem editado leis e atos normativos ex novo, o Judiciário interpretará os então existentes, decidindo-se por inovar (ou não) o significado de seus termos antes aceitos e compartilhados pela comunidade.

Há notícias de que o Poder Judiciário tem deferido algumas liminares em ações judiciais propostas pelos contribuintes, concedendo-lhes a postergação do prazo para pagamento de tributos, além daquelas autorizativas da suspensão dos atos de constrição patrimonial no âmbito de executivos fiscais, sem fundamento na lei, mas com apoio em situação conjuntural.

Não se admite que o direito seja aplicado segundo situações conjunturais aos sabores do particularismo do julgador. Direito contingente, variável aos sabores das situações, não promove a calculabilidade e a previsibilidade e, com isso, a segurança para a manutenção da sociedade capitalista.

Ao assim agir, atesta-se que o subsistema tributário seria flexível, permeável e fluido. O império da lei cedendo espaço para o império da contingência.

Substitui-se o direito estatal pelo “uso alternativo do direito”.

Movimento do “uso alternativo do direito”, como leciona Luciano Oliveira4, sintetiza uma corrente de pensamento de que o Poder Judiciário deve entregar a solução jurisdicional em vistas a favorecer as classes menos abastadas, com o que se concretizaria uma sociedade mais “justa”. Ocorre que a “justiça” é um valor individual de quem a invoca. E conclui o Autor: “É preciso desconfiar da evidência de um ‘direito vivo’ mais autêntico e justo do que o direito estatal.”

Mesmo em curso a pandemia, cabe à dogmática combater os aplicadores judiciais “neoconstitucionalistas” e “neolegalistas” que dela (pandemia) se valem para praticar o seu ideologismo ocultado e disfarçado em nome do pânico.

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1 O direito posto e o direito pressuposto. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014.

2 Artigo publicado no JOTA.

4 Ilegalidade e direito alternativo: notas para evitar alguns equívocos. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, Recife, vol. 1, nº 1, 1995, p. 63-71.