Opinião e Análise

Alexandra Maria Carvalho Carneiro

Num passado não muito distante, um advogado prepara sua petição de 150 páginas num computador 386, pesquisando, no fichário arduamente preparado com os achados do Diário da Justiça e dos inúmeros volumes da “Revista dos Tribunais” que compõem a biblioteca do seu escritório, decisões judiciais para serem citadas como “jurisprudência”. Após um mês, a petição ganha vida na impressora matricial e é levada ao protocolo do Fórum. O extenso texto passa a integrar os autos de um processo, já repleto de verbetes e expressões em latim. Seis meses depois o julgador profere uma decisão: nega a liminar. Em quinze dias o advogado dela toma ciência, pelo oficial de justiça.
Num futuro próximo, um advogado elabora sua petição de apenas uma página em visual law, com gráficos e dados estatísticos, usando poucas palavras. Em apenas dois dias a peça foi enviada online, a liminar foi concedida e o causídico dela tomou ciência pelo celular. Até para descrever esse fluxo usamos menos linhas nesse texto.
A evolução da tecnologia alcançou, finalmente, o Judiciário. A recente digitalização dos processos judiciais disponibilizou para o mundo jurídico uma gama gigantesca de dados. Uma crescente quantidade de ferramentas tecnológicas tem permitido uma análise cada vez mais precisa dessas informações.
A antiga citação de “jurisprudência” vem cedendo espaço para a tão falada jurimetria, que pretende abordar de forma mais científica as questões jurídicas, utilizando-se de ferramentas, técnicas e métodos quantitativos e, cada vez mais, qualitativos. Em outras palavras, a jurimetria associa o conhecimento jurídico ao de outras áreas, como estatística, finanças, matemática, gestão de riscos, engenharia de produção, data science, big data, dentre outras. Trata-se de algo que já existe há décadas, mas que tem sido cada vez mais explorado em razão dos avanços tecnológicos.
Lee Loevinger, jurista norte-americano visionário, já afirmava, desde 1949, no texto Jurimetrics - the next step forward (Minnesota Law Review, 1796, pág. 489), que “a jurimetria adota uma perspectiva mais ampla para incluir também uma investigação sobre fenômenos macrojurídicos – o efeito da lei sobre a comunidade”.
A finalidade dessa junção de conhecimentos, em poucas palavras (mas sem querer limitar o seu potencial), se resume em: estratégia, previsibilidade e convencimento.
Por meio da análise de dados estatísticos seria possível prever como uma questão pode vir a ser decidida no Judiciário (qual a tendência do julgador), considerando todo o histórico de decisões já proferidas sobre temas semelhantes. Com base nessa informação o causídico pode usá-la a seu favor, reforçando a necessidade de seguir a tradição da jurisprudência, ou, por outro lado, buscando novos argumentos ou dados para tentar afastá-la.
Se for possível extrair dos dados apurados uma estratégia de atuação mais adequada, a influência sobre o convencimento do julgador pode ser decisiva. Como diria Hans Rosling, na obra "Fact Fullness" (Record, 2021, pág. 33) “se você quer convencer uma pessoa de que ela tem uma concepção equivocada, é muito útil poder testar a opinião dela contra informações concretas”. O antigo jargão “contra fatos não há argumentos” passa a fazer cada vez mais sentido. Mas é preciso saber estruturar e tratar todo esse universo de informações.
E é nesse aspecto que reside a perspicácia do jurista. É essencial saber fazer as perguntas certas para encontrar as respostas mais eficazes. Afinal de contas, os números podem dizer qualquer coisa, depende de como são analisados. E somente o ser humano é capaz, até o momento, de utilizar da intuição e da criatividade para interpretar fatos e tomar decisões. Os profissionais do Direito não precisam se preocupar em serem substituídos pelas máquinas, mas sim em torná-las suas aliadas. Combinando as habilidades das pessoas e as capacidades da tecnologia é possível alcançar resultados que não seriam atingidos por eles isoladamente.
Mas como podemos aplicar a jurimetria na prática? Como fazer os Tribunais Superiores considerarem esses dados nas suas decisões, já que são avessos à análise de fatos, por um imperativo constitucional? Como usar a jurimetria à serviço da modulação de efeitos ou da superação para frente de precedentes?
Importante esclarecer, inicialmente, que os dados não agem sozinhos. É preciso que estejam vinculados à argumentação teórica, demonstrando o lado pragmático e empírico do direito, de modo a reforçar a correta aplicação da lei no mundo concreto. Os fatos constroem a argumentação. De nada adianta, portanto, demonstrar ao julgador estatísticas dissociadas da questão jurídica discutida nos autos, ou que possam ser interpretadas de forma contrária ao argumento que pretendem reforçar.
Nada impede que esses fatos sejam apreciados pelos Tribunais Superiores em sede de recursos excepcionais, pois os obstáculos das Súmulas 07 (STJ) e 279 (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) se referem ao contexto fático do caso concreto discutido nos autos, que não pode ser modificado para atrair um novo plexo normativo e jurisprudencial. Já os dados fáticos da jurimetria vão além do caso concreto, não para alterá-lo, mas sim para reforçá-lo, demonstrando os impactos da questão jurídica envolvida de forma mais completa.
Plenamente possível, dessarte, que a jurimetria seja utilizada para embasar, ou afastar, a modulação (art. 27 da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm">Lei 9.868/98</a>) ou a superação para frente de precedentes (art. 927 do CPC) nos julgamentos das Cortes Máximas.
Se levarmos em consideração que os pressupostos da modulação de efeitos residem no respeito à segurança jurídica e ao interesse social, podemos perceber que o uso de argumentos e textos rebuscados podem não ser suficientes para comprovar de forma contundente a ocorrência daquelas condições.
Dados estatísticos que consigam demonstrar os danos causados por uma lei inconstitucional à sociedade podem ser decisivos para convencer os julgadores a não conceder uma modulação, assim como a comprovação de que a retirada imediata da norma do ordenamento ocasionaria mais problemas do que soluções, pode ser útil para a concessão dos efeitos prospectivos. A depender da criatividade do causídico, há um mundo de possibilidades.
Já na superação para frente, que além da reverência à segurança jurídica e ao interesse social, possui como pressuposto a alteração de jurisprudência dominante, a jurimetria aparenta ter um papel ainda mais evidente. É possível por meio da estatística, identificar, dentre todas as decisões judiciais proferidas sobre dado assunto, num específico lapso temporal, qual o entendimento predominante e se o novo julgamento provocou, de fato, sua modificação. Muitas respostas podem ser encontradas com essa análise.
Apenas para ilustrar, podemos citar um exemplo concreto do uso frutífero da jurimetria. No julgamento do Tema 69 pelo STF, a União apresentou um dado fático de extrema relevância para a obtenção do efeito prospectivo da decisão que reconheceu a impossibilidade de inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Embora muito se fale sobre o aspecto econômico da discussão, referimo-nos à estatística que comprovou que 80% das ações em trâmite no território nacional foram ajuizadas após o julgamento da repercussão geral. O dado demonstra que a enxurrada de ajuizamentos se deu porque antes daquele precedente a jurisprudência dominante era contrária e não havia uma expectativa legítima dos contribuintes na alteração daquele entendimento. Esse fato foi decisivo para que o STF reconhecesse a aplicação do precedente apenas para os fatos geradores posteriores, ressalvando as ações ajuizadas somente até a data do julgamento.
A jurimetria, portanto, permite que o mundo jurídico, acostumado a navegar pelos mares da teoria e da argumentação, caminhe ao lado da empiria e absorva com mais profundidade os fenômenos da vida real, tornando, dessa forma, as decisões judiciais mais efetivas e respeitáveis.

justiça judiciário

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JOTA

Jurisprudência vem cedendo espaço para a jurimetria, que aborda de forma mais científica as questões jurídicas

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