Opinião e Análise

Mara Eugênia Buonanno Caramico

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou recentemente, pela sistemática da repercussão geral<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o Tema 520, elegendo como precedente o ARE 665134/MG, e fixando a seguinte tese: “O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio.”
Em complemento, declarou a inconstitucionalidade,  sem redução de texto, do art. 11, I, “d”, da Lei Complementar Federal 87/96, “com o fito de afastar o entendimento  de que o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável pelo tributo, é apenas e necessariamente o da entrada física do bem importado”.
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Indaga-se: com a tese acima fixada, teria o STF finalmente trazido “a necessária segurança jurídica que deve orientar as relações entre Fisco e contribuintes”, que motivou o Ministro Joaquim Barbosa a acolher a repercussão geral do tema, e afetá-lo ao plenário? Acreditamos que não. Inicialmente, porque existe falta de aplicação da própria tese fixada ao caso concreto (leading case), o que já gera perplexidade e dúvida. Em segundo lugar, porque as situações jurídicas no mundo real são mais complexas do que aquelas supostamente analisadas e decididas pela Corte, o que torna problemática a aplicação da tese ao caso concreto, conforme se verá adiante.
Iniciemos com o julgamento dado ao “leading case”, que afetou o tema ao STF. O caso trata de “importação direta”, definida como tal por ser realizada pelo próprio importador, sem a intervenção de terceiros (trading company). A operação foi realizada por um estabelecimento localizado no Estado de São Paulo, que importou matérias primas para a produção de fertilizantes. Essas mercadorias foram desembaraçadas no porto de Santos, e foram, em seguida, remetidas para outro estabelecimento da mesma empresa, localizado no Estado de Minas Gerais, para serem lá industrializadas. O produto resultante – fertilizante – seria posteriormente remetido para São Paulo para sua revenda.
O STF decidiu que o ICMS incidente sobre essa importação deveria ser recolhido aos cofres do Estado de Minas Gerais, por estar nele situado o “destinatário legal” das mercadorias importadas.
E justificou sua decisão com a seguinte motivação: “Compulsando-se os autos, verifica-se que a destinação da mercadoria importada como matéria-prima para a produção de defensivos agrícolas é elemento definidor da fixação do sujeito ativo da obrigação tributária. Isto porque o negócio jurídico em tela tem como vetor a industrialização, por sua vez levada a efeito na territorialidade da parte Recorrida, o Estado de Minas Gerais”.
<blockquote class="jota-article__eye">Seria razoável (mas, mesmo assim, bastante criticável) esse entendimento do STF, não fosse a tese jurídica que ele próprio estabeleceu, nesse mesmo julgamento, para os casos de “importação direta”.</blockquote>
Isto porque, da íntegra do acórdão proferido, verifica-se que o STF define como importador o “destinatário legal” das mercadorias, ou seja: “quem deu causa à ocorrência da circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio”. Destarte, é “importador” (sujeito passivo da exação), quem promove a importação, arcando com seus custos e realizando o negócio jurídico internacional, vale dizer, quem tem o direito de receber a mercadoria em transferência de seu domínio.
Partindo dessa premissa, o STF define três possíveis situações jurídicas para estabelecer quem é o sujeito passivo do ICMS (destinatário legal) e assim, como consequência, determinar que o seu sujeito ativo será o Estado da Federação onde aquele estiver localizado. São elas:
<ol>
<li>importação “por conta e ordem”: o destinatário jurídico (ou legal) do bem importado “é quem dá causa efetiva à operação de importação, ou seja, a parte contratante de prestação de serviço consistente na realização de despacho aduaneiro de mercadoria, em nome próprio, por parte da importadora contratada”.</li>
<li>importação “sob encomenda”: a “destinatária jurídica é a sociedade empresária importadora (trading company), pois é quem incorre no fato gerador do ICMS com o fito de posterior revenda, ainda que mediante acerto prévio, após o processo de internalização.”</li>
<li>e, por fim, importação “por conta própria” ou direta, sem a intervenção de terceiros, onde o sujeito ativo da obrigação tributária é o Estado-membro tributante no qual está estabelecido o “destinatário legal” da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria.</li>
</ol>
E mais, para reafirmar sua tese, o STF declara que a disponibilidade jurídica precede a econômica, isto é, “o sujeito passivo do fato gerador é o destinatário legal da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria, ou seja, (...) quem dá causa à ocorrência da circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio”.
Dito isto, voltemos ao leading case. Ora, ao analisá-lo percebemos, claramente, a não aplicação da tese fixada em seu julgamento. Isto porque, em momento algum quando de sua fixação, o STF usou o critério da “destinação da mercadoria ou a sua finalidade/uso” para definir quem é o verdadeiro importador. Ao contrário: o critério é sempre o jurídico, ou seja, o importador é o “destinatário legal” da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria – e aqui, salvo melhor juízo, deve se entender o negócio jurídico internacional.
Portanto, um primeiro problema a ser apontado desse julgado está no fato de que o próprio STF não aplica ao caso concreto a tese que ele mesmo infirmou para o tema 520, pois, caso contrário, o desfecho deveria ter sido outro: declarar o Estado de São Paulo o sujeito ativo da exação, e o importador paulista o seu sujeito passivo.
Então, surge a dúvida: seria a destinação ou o tipo de bem importado um novo critério a ser verificado, e que foi fixado efetivamente pelo STF, distinto dos anteriores, ou existe de fato uma contradição intrínseca no julgado, ao não ter sido a ele aplicada a própria tese então fixada?
A se entender pela eleição de um novo critério, ou uma quarta possibilidade de “destinatário legal”, critério este que leva em consideração a finalidade a ser dada ao produto importado e quem o utilizará, criar-se-á verdadeiro caos jurídico, pois os julgamentos passarão a ser sempre casuísticos. Tal situação retira do precedente o seu objetivo que é o de pacificar a jurisprudência e dar a necessária segurança jurídica às partes: fisco e contribuintes.
Mas, em se tratando de equívoco, deverá o STF se pronunciar para restabelecer a necessária coerência do caso concreto à tese eleita. Isto deverá ser feito por meio de embargos de declaração, que aliás, já foram opostos pelos autores do caso, e agora aguardam julgamento.
Todavia, não suficiente, um segundo problema se afigura neste julgamento: a dificuldade em se aplicar a própria tese estabelecida (tão genérica), de maneira ampla. E para comprovar essa assertiva tomemos, apenas à guisa de exemplo, uma importação realizada por um determinado estabelecimento da empresa, que tem como atividade única e principal a de efetuar todas as operações de importação para as demais filiais, mas que não é o responsável pelo seu pagamento. Este é feito por outro estabelecimento da mesma empresa, que tem como objeto ser o seu centro de custos, promovendo o pagamento de todas as operações de aquisição de bens da empresa, sejam estes nacionais ou importados.
Nesta situação, quem deverá ser entendido como “destinatário legal”? O estabelecimento importador, que tem essa atividade como fim e a expertise para realizá-la, negociando, inclusive, com o fornecedor internacional, só não efetuando o seu pagamento, ou o estabelecimento centralizador de custos e despesas da empresa, que paga por todas as aquisições, nacionais ou não, de todas as filiais, e que se encontra localizado em outro Estado, diverso do importador?
Outra hipótese: esse mesmo estabelecimento importador, mas que agora também realiza o seu pagamento, e que remete as mercadorias, após o seu desembaraço, para o centro de distribuição da empresa, localizado em outro Estado, responsável por toda a sua distribuição no território nacional. Este fato, retira do importador a sua qualidade de “destinatário legal” dada pelo STF?
Essas, assim como outras, são situações corriqueiras que certamente gerarão conflitos quando confrontadas com a tese fixada.
Assim, o que se pode concluir deste julgado, a par dos problemas intrínsecos ao próprio acórdão já mencionados, é que as “teses”, quanto mais generalizantes, mais necessidade imporão de se fazer o “distinguishing”, o que sempre é muito custoso e muito problemático.
E isto tornou-se uma realidade, porque quando é prolatada uma decisão desse naipe, os Tribunais e as instâncias inferiores, tendem a aplicá-la (muitas vezes), lendo apenas a ementa do julgado, sem identificar que existe uma distinção necessária a ser feita na hora de aplicação da tese firmada ao caso concreto que está sendo julgado.
Neste particular, a tão perseguida uniformização da jurisprudência, almejada pelo CPC/15, com a criação da sistemática de precedentes, deve ser talvez repensada no sentido de seu aperfeiçoamento, sendo o tema julgado apenas mais uma constatação deste fato.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Artigo 1035 e 1036 do Código de Processo Civil de 2015.

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JOTA

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