Opinião e Análise

Jersilene Moura

O uso de lei ordinária federal que preveja a prática de atos administrativos de expropriação é perfeitamente compatível com o devido processo legal, desde que se entenda, nesse conceito, o processo estabelecido em lei na qual essa previsão venha contemplada – o que é absolutamente razoável considerando as experiências internacionais de execução administrativa, além do abarrotamento de ações fiscais no Brasil e a inabalável salvaguarda de revisão judicial em caso de abusos.
Tal prática mostrar-se-á verdadeiramente inovadora se concretizada como procedimento administrativo – não propriamente como um simples sucedâneo do processo judicial de execução fiscal (não faz sentido prever o mesmo procedimento da execução judicial para a execução administrativa, sob uma suposta necessidade de manter-se as mesmas regras procedimentais, numa espécie de “síndrome de Gabriela”).
Falando um pouco sobre experiências internacionais, nos Estados Unidos, a execução fiscal é predominantemente administrativa, podendo o fisco excutir diretamente os bens do devedor para satisfação do débito pendente, prática naturalmente muito mais eficiente que o nosso modelo, conforme estudo comparativo realizado por Franco (2019).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em alguns países sul-americanos também se verifica a possibilidade da execução fiscal administrativa. Nossos vizinhos Peru e Argentina preveem a possibilidade de penhora administrativa e o primeiro inclusive a própria execução fiscal pela administração tributária (Bernardes  e Durço, 2016).<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
No Brasil, o excessivo número de execuções fiscais em tramitação, retratado no estudo do Insper em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), corrobora a necessidade de se buscar vias alternativas, visando à redução do estoque de processos.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
A alteração da execução fiscal do Judiciário para a sede administrativa pode gerar maior eficácia e celeridade, resultado que demandará, todavia, a reescritura do caminho hoje aplicado na esfera judicial, sob pena de apenas trocarmos o órgão e continuarmos com a mesma dificuldade em dar vazão às milhares de execuções fiscais que são diariamente propostas.
Sob esse aspecto, tomada a experiência federal como referencial, deve-se ter em mente que o executado já teve oportunidade de questionar o débito antes de sua inscrição em dívida ativa, fazendo-o por meio da ampla defesa que lhe é oportunizada no processo administrativo fiscal, bem como depois da inscrição, por meio do Pedido de Revisão de Dívida Inscrita (PRDI),<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> o que torna sem sentido que, da atividade executiva, sobrevenha a abertura de um novo prazo de impugnação, desta feita nos mesmos moldes dos Embargos à Execução Judicial.
Dentre os projetos de lei em trâmite sobre o assunto, sobressaem os PLs 4257/2019 e 2488/2022. O primeiro prevê a inclusão do Capítulo II à Lei 6.830/80, tratando da possibilidade de execução extrajudicial da dívida ativa e, em seu art. 41-F, a possibilidade de oferecimento de embargos à penhora, na qual se deve alegar toda matéria útil à defesa.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Neste caso, não vemos vantagem na mudança, seja pela previsão de embargos amplos, seja pelo procedimento de alienação complexo por meio de agente fiduciário, na forma dos arts. 31 a 38 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.
Já o Anteprojeto de Lei ordinária de execução fiscal, apresentado pelo Relatório Final da Comissão de Juristas instituída pelo Ato Conjunto dos Presidentes do Senado Federal e do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> 1/2022  - PL 2488/2022,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> prevê, em seu Capítulo III (da Cobrança  Extrajudicial da Dívida Ativa), o procedimento de execução da dívida ativa, mediante solicitação de “averbação de bloqueio extrajudicial do patrimônio apontado aos órgãos ou entidades, públicos ou privados, responsáveis pelo respectivo registro” (art. 22) e a possibilidade de expropriação dos bens ou valores bloqueados diretamente pela exequente, independentemente de autorização judicial (art. 29), inclusive a alienação por iniciativa da Fazenda Pública (art. 62).
Cabe ressaltar que existe a possibilidade de impugnação administrativa ao bloqueio extrajudicial, mas ela limita-se aos assuntos elencados pelo art. 25 do PL nº 2488/2022, quais sejam: “I – impenhorabilidade dos bens ou valores tornados indisponíveis; II – erro na avaliação dos bens bloqueados; III – descumprimento dos procedimentos estabelecidos nesta Lei; e IV – a existência de decisão judicial determinando a suspensão da exigibilidade do crédito exequendo.” Ou seja, não se pretende por esta via autorizar uma ampla discussão sobre a materialidade do próprio crédito exequendo.
Nada disso significa, de todo modo, uma redução do princípio da inafastabilidade de jurisdição, previsto pelo art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, o que importa reconhecer que, a qualquer momento e em qualquer fase, o executado deve ter ampla liberdade de questionar no âmbito judicial qualquer ilegalidade no curso do processo de execução administrativa. Nesse sentido, o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154742">PL 2488/2022</a> previu a possibilidade de oferecimento de embargos à execução de dívida ativa de pequeno valor, cuja competência será do juízo que, pelas normas de organização judiciária, seria competente para processar e julgar eventual execução fiscal. (art. 28, §2º).
Acerca da restrição dos valores passíveis de execução administrativa, limitados a 60 (sessenta) salários-mínimos, no âmbito federal, temos que o projeto foi deveras comedido, considerando que, diante dos valores vultosos que a Fazenda Pública federal tem na sua carteira, é provável que a cobrança de valores tão baixos não se mostre vantajosa, o que pode levar ao desuso do referido procedimento.
Em suma, a necessidade de se construir alternativas para uma maior efetividade na execução do crédito devido à Fazenda Pública é medida que se impõe diante dos inúmeros serviços e deveres atribuídos ao Estado. Fizemos uma escolha de um Estado social cujo financiamento pressupõe a contribuição, ou melhor, o dever fundamental de pagar tributos por todos aqueles submetidos às regras de incidência previamente definidas. Quando a demora no recebimento desse crédito se estende em demasia, sobretudo em virtude do manejo abusivo e protelatório de medidas judiciais, precisamos pensar em procedimentos mais eficientes, dentre os quais estaria justamente a execução administrativa do crédito inscrito em dívida ativa de qualquer valor.
Como já ressaltado, tal medida possibilitará maior dinamismo, desde que sejam fixados procedimentos mais céleres e aperfeiçoados no recebimento do crédito, resguardada, evidentemente, a apreciação judicial quando provocada pelo executado.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Franco, Caio César Amaral. Execução Fiscal nos Estados Unidos da América  uma abordagem comparativa com o Direito brasileiro. RVMD, Brasília, V. 13, nº 1, p. 178-193, Jan-Jun, 2019 ISSN 1980-8860
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Bernardes, Flavio Couto. Durço, Karol Araújo. Os mecanismos de execução do crédito tributário em alguns países da América Latina: Entre eficiência administrativa e segurança jurídica. Revista de Direito Tributário e Financeiro. 2016. e-ISSN: 2526-0138
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro : relatório final de pesquisa / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. – Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Portaria PGFN nº 33/2018
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7984784&amp;ts=1650302080988&amp;disposition=inline">https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7984784&amp;ts=1650302080988&amp;disposition=inline</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9199177&amp;ts=1663791319477&amp;disposition=inline">https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9199177&amp;ts=1663791319477&amp;disposition=inline</a>

moedas real

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Excessivo número de execuções fiscais em tramitação no Brasil corrobora necessidade de se buscar vias alternativas

Expropriação, o devido processo legal e a 'síndrome de Gabriela'

Excessivo número de execuções fiscais em tramitação no Brasil corrobora necessidade de se buscar vias alternativas