Pandemia

A substituição de garantias em tempos de COVID-19

A pandemia não pode servir de pretexto para, em prol de medidas emergenciais, adiarmos por mais tempo o que é necessário

Crédito: Pixabay

Muitas têm sido as medidas cogitadas, individual e coletivamente, para minimizar o impacto econômico provocado pelas regras tendentes a conter a propagação do coronavírus.

Parte expressiva das medidas em questão relaciona-se ao plano tributário, direta ou indiretamente considerado. Num desses eixos, o indireto, encontram-se os pedidos de substituição de garantia prestada sob a forma de depósito em demandas judiciais (em sua maioria, execuções fiscais).

O argumento usado nesses pedidos está obviamente centrado no estado de necessidade, circunstância de fácil compreensão.

Alguns aspectos, todavia, devem ser ponderados nesse contexto.

Primeiro: recursos que se encontrem vinculados à satisfação de crédito tributário judicializado não estariam na esfera de disponibilidade do contribuinte, uma vez legalmente reconhecidos, os depósitos feitos em tal contexto, como extravagante forma de pagamento (Lei n. 9.703/98).

Segundo: o estado de necessidade, embora derivado de fato de conhecimento público, deve ser demonstrado de forma concreta e individualizada, não se afigurando possível que a jurisdição ordinária seja convocada a produzir juízo de valor abstrato, substitutivo da atividade legislativa.

Frise-se, de todo modo, que nem um nem outro desses aspectos destacados fazem definitivamente descabidos os pedidos de que falamos.

Sobre o primeiro, pertinente ao regime jurídico definido pela Lei n. 9.703/98, cabe lembrar, com efeito: a roupagem (de pagamento) anomalamente atribuída ao depósito do crédito tributário judicializado é transitória, ficando na dependência do definitivo julgamento do processo em favor da Fazenda para que adquira força extintiva. Até que sobrevenha tal resultado, portanto, ao contribuinte assistirá o teórico direito subjetivo à substituição, condicionada sua transposição do plano teórico para o concreto à demonstração de razões que assim justificassem.

E é justamente nesse momento de excepcional reversão precipitada do “pagamento provisório” (precitada porque anterior à definição da lide em favor do contribuinte) que intercederia o segundo aspecto mencionado, pertinente à demonstração concreta do estado de necessidade – “concreta”, insista-se, a exigir a exibição das condições experimentadas pelo contribuinte.

Há, entretanto, um ponto adicional a ser considerado nessa dinâmica a que nos referimos: a restituição do montante depositado (leia-se: “provisoriamente pago”) representa, em certa medida, a precipitação de resultado que, na lógica processual, dependeria do êxito do contribuinte. É mais que razoável, portanto, que um mínimo de viabilidade seja detectada na tese (fática e/ou jurídica) sustentada pelo contribuinte na ação de base (embargos, anulatória, etc). À falta desse mínimo – a ser arguido e demonstrado pelo postulante –, regressaríamos ao problema já de antes sinalizado: a jurisdição ordinária pode vir a ser transformada em instrumento de produção de juízos abstratos, desvinculando-se da realidade concretamente enfrentada nos autos.

Sem desqualificar a relevância dos pedidos formulados nesse delicado momento histórico, essa visão – digamos, “restritiva” – propõe, mais do que tudo, desigualar os desiguais, tudo para que contribuintes portadores de teses “legítimas” e que, mais do que isso, se encontrem em demonstrado estado de necessidade, não sejam colocados no mesmo nível dos que, ao contrário, se limitam a fazer postulações prêt-à-porter, como que transformando a oportunidade em oportunismo.

Para além dessas reflexões, no entanto, o atual momento nos permite constatar que, em sua origem, o maior dos problemas enfrentados não se vincula aos dissensos entre Fisco e contribuintes sobre as garantias retidas por um e/ou desejadas pelo outro, senão no déficit normativo no que toca a esse assunto.

Há anos, com efeito, o direito positivo brasileiro, sobretudo no âmbito dos executivos fiscais, trata do tema a partir das mesmas hipóteses, ainda que se saiba que o mundo contemporâneo exige atualização. Créditos tributários há, na conjuntura vivida, que, de tão elevados, teriam seu asseguramento subordinado à tomada de outras figuras – por que não as covenants? –, em grande medida presentes em contextos outros, sobretudo no dinâmico mercado financeiro.

Como que ignorando essas imposições, vivemos a mesma realidade de anos atrás, (a)fundados na velha dicotomia “depósito vis a vis fiança/seguro”, como se nada mais fosse possível.

E é nessa realidade obsoleta, tão descompassada com o mundo vivo e representativa em si mesma de um enorme problema, que intercede a crise de saúde pública, grave, sem dúvida, mas que não pode servir de pretexto para, em prol de medidas emergenciais, adiarmos por mais tempo o que é efetivamente necessário – a revisão do sistema de garantias, especialmente no contexto das execuções fiscais.