Opinião e Análise

Melissa Demari

Os professores de direito já sabem: em se tratando dos ramos do direito, os donos do campinho — aqueles que despertam as grandes paixões nos jovens acadêmicos — são o direito civil e o direito penal.  Quando Tício mata Mévio num acidente mirabolante, ou quando Mévio recebe um pix de mais de R$ 300 mil por engano (e gasta o dinheiro), todo mundo fica louco para destrinchar o problema. Mas é só falar em direito tributário para que os acadêmicos, literalmente, se curvem ante o peso do tédio.
O direito tributário é tido como difícil, inacessível, insosso, distante e desarticulado da realidade da garotada. Ele não desperta grandes paixões porque os jovens acadêmicos não veem nele grandes problemas ou injustiças, afora o fato de, em geral, considerarem a carga tributária excessiva e os recursos públicos mal-empregados. O olhar para tributação (e seu estudo) costuma se restringir ao óbvio: o Estado cobra e o cidadão paga. Ponto. Não há o que discutir, e desde o início da formação universitária acredita-se no discurso de neutralidade do sistema tributário. Afinal, se todos têm que recolher tributos, e esta regra é igual para todos, não há muito o que discutir para além do dogmatismo do direito tributário.
É comum a ideia de que os tributos só servem para onerar os cidadãos e sustentar privilégios daqueles que indevidamente se apropriam dos recursos públicos. Sendo assim, à maioria o direito tributário só interessa nos seus aspectos práticos e pontuais: é possível articular negócios para fugir ou diminuir a tributação? Ou ainda: qual é a correta base de cálculo do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pis-cofins">PIS/COFINS</a>? Como escolher o melhor regime tributário? Qual a correta base de cálculo do ITBI, e assim segue...
Contudo, a dita “neutralidade” discursiva é uma falácia que apenas serve de cortina de fumaça para ocultar o fato de que a tributação, que deveria ser instrumento estatal de transformação social, atinge diferentemente aos brasileiros e brasileiras e é de fato usada para propagar os desequilíbrios sociais e manter o status do Brasil como um país com profundas diferenças sociais.
Essa pseudoneutralidade discursiva do direito tributário acaba desviando o foco de uma das mais significativas missões da tributação: promover justiça social, seja financiando a ação estatal (inclusive através dos serviços públicos essenciais à população mais vulnerável), seja diminuindo desigualdades através da tributação que respeite a capacidade contributiva do cidadão, conforme o comando constitucional respectivo.
Seria, contudo, possível defender que o direito tributário não é neutro, a considerar que, em tese, a tributação é igual para todos?
O problema está justamente nestas premissas, pois no Brasil a tributação não é igual para todos.
É preciso, antes de mais nada, ter em mente que a igualdade tributária adaptada à democracia é a igualdade material, que promove a isonomia através do tratamento desigual e com base nas efetivas diferenças sociais. Ou seja: a equidade tributária, para ser efetiva num país marcado por profundas desigualdades de raça, gênero e status social, deve identificar os sujeitos que estão em posição de desvantagem e criar instrumentos de aproximação entre estes e aqueles que estão numa situação melhor.
Essa, contudo, não é a realidade. A tributação brasileira, podendo onerar o consumo, o patrimônio e a renda, <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/05/por-que-a-formula-de-cobranca-de-impostos-do-brasil-piora-a-desigualdade-social#:~:text=A%20carga%20tribut%C3%A1ria%20brasileira%20equivale,e%20educa%C3%A7%C3%A3o%20gratuitas%20%C3%A0%20popula%C3%A7%C3%A3o">é especialmente dura no consumo</a> (que é responsável por 43% do total da tributação).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Não é preciso dizer que os tributos sobre o consumo são indiretos: a indústria e o comércio são os contribuintes, mas o valor é repassado ao consumidor no preço do produto.
Assim sendo, quando um trabalhador utiliza praticamente toda a sua renda para as despesas básicas com consumo, todo este valor estará sujeito à tributação mais pesada, ao passo que aquele que tem uma renda média superior e usa apenas parte dela para consumir e outra parte para investir em patrimônio, por exemplo, terá uma tributação menor nos recursos destinados a investimentos ou outro destino que não o consumo cotidiano com itens de primeira necessidade.
Este desequilíbrio entre os contribuintes fica mais intenso na perspectiva do gênero e da raça. No Brasil, mais de 45% das famílias são chefiadas por mulheres. Nesta configuração familiar, os recursos advindos da remuneração feminina são essencialmente destinados ao consumo (fortemente tributado), enquanto, na outra ponta, os pais — que, quando pagam pensão, o fazem em valor geralmente insuficiente para prover o sustento dos filhos —, têm menos comprometimento financeiro no consumo básico e, portanto, conseguem destinar seus recursos econômicos para as áreas menos tributadas (patrimônio, por exemplo).
O cenário fica ainda pior ao considerar que, no Brasil, a renda média das mulheres brancas é aproximadamente 29,6% inferior à dos homens brancos.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Mesmo no universo feminino, há diferenças. A renda das negras é 41,79% inferior ao rendimento das brancas.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Ou seja: segundo os dados do IPEA, o salário regular diminui considerando-se critérios de gênero e raça. Em termos de renda média, partindo-se do universo dos homens brancos, estes são seguidos em ordem remuneratória decrescente pelas mulheres brancas, seguidas pelos homens negros e estes, finalmente, são sucedidos pelas mulheres negras. Portanto, de ponta a ponta, a variação salarial média é de 59,05% entre homens brancos e mulheres negras.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Não bastasse isso, os grupos mais vulneráveis são mais impactados pela tributação, em razão da articulação e distribuição da carga tributária no Brasil que, ao fim e ao cabo, é regressiva (onerando mais os que ganham menos). Adotar o discurso da neutralidade do direito tributário e da tributação, e crer que ele afeta igualmente aos brasileiros é, na verdade, assumir uma ideologia que propaga desigualdades.
É preciso lembrar que, enquanto articulação não inocente da linguagem, o discurso é controlado, organizado e direcionado, e atua filtrando e reduzindo as possibilidades de mundo que nos são dadas a conhecer e a viver.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Ele sempre carrega consigo um conteúdo ideológico, produzindo a realidade de acordo com o que enuncia. O calar sobre a tributação desigual e discriminatória é, também ele, discursivo, pois informa o interesse em ocultá-la da consciência coletiva, mantendo o status quo. Enquanto vigente o enunciado da imparcialidade na cobrança de tributos, ficarão mantidas as práticas tributárias regressivas, que impõem um peso maior às mulheres, negros e pobres (muitas vezes pelo atravessamento de mais de uma destas qualidades) na participação no custo social.
Perceber que a tributação onera diferentemente os cidadãos a partir de atravessamentos de gênero, raça e classe social é o primeiro passo para que o sistema tributário seja (re) pensado, incorporando mecanismos que assegurem a igualdade tributária material (através de incentivos fiscais, tributação diferenciada ou arrefecida quando incidente sobre as populações mais vulneráveis, seleção de fatos ferradores tributários que reflitam efetiva capacidade tributária, etc...) e servindo, efetivamente, como  instrumento de transformação social para, assim, cumprir sua missão constitucional.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/05/por-que-a-formula-de-cobranca-de-impostos-do-brasil-piora-a-desigualdade-social#:~:text=A%20carga%20tribut%C3%A1ria%20brasileira%20equivale,e%20educa%C3%A7%C3%A3o%20gratuitas%20%C3%A0%20popula%C3%A7%C3%A3o">https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/05/por-que-a-formula-de-cobranca-de-impostos-do-brasil-piora-a-desigualdade-social#:~:text=A%20carga%20tribut%C3%A1ria%20brasileira%20equivale,e%20educa%C3%A7%C3%A3o%20gratuitas%20%C3%A0%20popula%C3%A7%C3%A3o</a>. Acesso em 12/03/22, às 16:52.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Segundo o IPEA, a renda média da população branca é de R$ 2.509,67 para os homens e
R$ 1.765,00 para as mulheres, alcançando, portanto, o percentual de 29,68% de diferença. Disponível em <a href="https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx">https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx</a>. Acesso em 14/03/2022, às 22:08.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O IPEA aponta que a renda média das mulheres brancas é de R$ 1.765,00, ao passo que a renda média das mulheres negras é de R$ 1.027,50. Disponível em <a href="https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx">https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx</a>. Acesso em 14/03/2022, às 22:45.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A renda média, em números, é de R$ 2.509,67 para os homens brancos, R$ 1.765,00 para as mulheres brancas, R$ 1.434,10 para os homens negros e R$ 1.027,50 para as mulheres negras. Portanto, de ponta a ponta a variação salarial média é de 59,05%. Disponível em <a href="https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx">https://www.ipea.gov.br/retrato/tabelas/bloco_10/Tabela_10.1.xlsx</a>. Acesso em 14/03/2022, às 23:20.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyolla, 2014. P. 08.

Direito tributário

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JOTA

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A falácia da neutralidade do sistema tributário nacional

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