Opinião e Análise

Amanda Amorim Maciel

Tragédias, inesperadas ou anunciadas, são sempre locomotivas do Legislativo brasileiro. Os estudos científicos são dificilmente ouvidos, apesar de possuírem caráter preventivo e/ou precauto.
Enquanto o Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e/ou Câmaras Municipais seguirem o perfil reacionário (só emitem legislações após a ocorrência de resultados de forte impacto), continuaremos perdendo vidas, da nossa espécie, animais, vegetais e o patrimônio natural (rios, mares, montanhas etc.), partes essenciais de um ecossistema sustentável, destinados a garantir a dignidade da pessoa humana, como mandamento constitucional da legislação antropocêntrica brasileira.
A cada ano percebemos que os efeitos do descontrole humano sobre as consequências de suas próprias ações, diga-se, a interferência no clima, deixou de ser um discurso dos “ecochatos”. Estamos experienciando tempos de enorme prejuízo para todas as formas da biota.
Mudanças nunca são fáceis, mas no caso das climáticas, carecem de alterações extremas e urgentes. Trata-se de uma ciência autônoma, dotada de princípios próprios, destacada das ciências ambientais. Em Harvard, qualquer curso de todas as áreas pedagógicas possuem a disciplina climática obrigatória, enquanto o Brasil – berço da água potável e do ar limpo do mundo – sequer oferece tais noções, nem nos cursos de humanas.
Os riscos ambientais sempre contemplaram mais as populações vulneráveis. Pode-se afirmar que o primeiro caso de racismo ambiental do Brasil ocorreu na época colonial, quando no bairro da Liberdade (tem esse nome por representar a única hipótese em que os escravizados<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> eram libertados, na praça da forca!) havia o Largo da Pólvora, depósito de reserva perigosamente inflamável. Lá figurava a periferia da cidade, zoneamento urbano destinado aos menos favorecidos cultural e monetariamente.
Já na década de 1980, nos Estados Unidos, foi que surgiu a terminologia racismo ambiental, categoria em que se inclui todos os discriminados, em especial, os negros. Pessoas negras eram/são ainda direcionadas para moradia em locais contaminados, distantes dos serviços públicos, e toda sorte de exclusão e intempéries.
O desastre de proporções inimagináveis ocorrido no estado do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/rio-grande-do-sul?non-beta=1">Rio Grande do Sul</a>, iniciado em maio do corrente ano, é prova que para catástrofes não há fronteira, as mazelas não respeitam limites territoriais. Dos 497 municípios, 478 foram afetados<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Sem levar em consideração as subnotificações, foram 175 mortos, 38 desaparecimentos, 806 feridos, 440 mil desalojados.
Há que se falar nas baixas de fauna e flora, da agropecuária do país e seus negócios internacionais. As insubstituíveis perdas de patrimônio histórico e cultural. O turismo, mercado mais afetado, amarga a monta de R$ 1,33 bilhão de prejuízo. Um cenário desolador sem tamanho. Já alcançamos o ponto de não retorno no que diz respeito a estabilidade da temperatura ideal para o planeta permanecer como o conhecemos.
Os números não mentem, não há dúvidas que a recuperação será morosa, sem exceção. Ainda não há dados científicos disponíveis, mas são várias as impressões que as pessoas pobres e negras foram as mais prejudicadas e, que são elas a demorarem mais tempo que as demais para se restabelecerem.
Existe um grande debate acadêmico acerca da terminologia “racismo”, que se funda na sua categorização de ser ou não um crime. Como questão puramente técnica, um crime é uma “ação”, considerada passível de reprimenda, demanda que seja um “verbo”, logo, a prática de conduta punível. Se racismo é um substantivo, como poderia então ser um crime?
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2003 entende que o conceito de raça está superado, conforme se extrai do HC 82424 (Tribunal Pleno), com destaque ao seguinte trecho:
<blockquote class="jota-article__citation">…Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana…</blockquote>
Ocorre que a Constituição Federal prevê como garantia fundamental a existência do racismo. Vejamos:
<blockquote class="jota-article__citation">Art 5º, XLII - prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Seguindo o conflito de interpretação/produção normativa, o artigo 1º da Lei 7.716/89 preleciona que:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.</blockquote>
Posto isso, dentre outros regramentos escritos, o “crime de racismo” é na verdade o tipo penal: injuriar (ofensa à honra), impedir, obstar, recusar acesso ou atendimento, negar ou obstar emprego, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito, fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
A situação de calamidade pública presente no sul do país enaltece o que pode ser definido como maior prejudicial para a camada de hipervulneráveis, aqueles que reúnem mais de uma condição discriminatória, por exemplo, uma pessoa negra, de cor parda, pobre e deficiente físico (características somadas, simultâneas de um único indivíduo).
Subestimados pela cor, os pretos e pardos (da raça negra, para que não restem dúvidas) são as pessoas mais prejudicadas por todos os resultados negativos que se constate agora, amanhã ou ano que vem. Ter clareza das camadas sociais mais abastadas e das mais excluídas exerce um papel responsável para direcionar políticas públicas de recuperação e compensação (se é que isso é possível diante de tamanhos danos) não é tarefa simples, talvez seja até irrealizável, por particulares, sociedade solidária ou Poder Público.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1] </a>Vide <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/nos-outros/escravizacao-ou-escravidao-letramento-racial-ou-parametro-moral-18102023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/nos-outros/escravizacao-ou-escravidao-letramento-racial-ou-parametro-moral-18102023</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2] </a>Disponível em <a href="https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/20/cheias-no-rs-veja-numeros.ghtml">https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/20/cheias-no-rs-veja-numeros.ghtml</a>

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JOTA

Deve-se ter clareza das camadas sociais mais abastadas e das mais excluídas para direcionar políticas públicas de compensação

Racismo ambiental e o desastre climático no Rio Grande do Sul

Deve-se ter clareza das camadas sociais mais abastadas e das mais excluídas para direcionar políticas públicas de compensação