Opinião e Análise

Gabriela Souza de Carvalho

A frase emblemática ficou eternizada na voz da saudosa Dona Ivone Lara lá em 1981, no disco “Sorriso Negro”, que é uma verdadeira ode à negritude e a exaltação do povo negro na sua essência. E mesmo lançado num Brasil que ainda experimentava os resquícios de um período ditatorial e presidido pelo último presidente militar do país – João Figueiredo –, foi o samba que traduziu a verdade escanteada pela nossa história: o corpo negro sempre foi o grande responsável pelos processos de emancipação do Brasil.  
Os bastidores da Independência do Brasil, assim como o processo de abolição da escravidão e a Proclamação da República, são marcados pela vanguarda do movimento negro e figuras históricas da população afrodiaspórica, mas que são renegados das histórias e reduzem o protagonismo de pessoas negras ao apagamento.  
Pouco se fala, mas o processo de libertação do Brasil do domínio de Portugal foi enraizado na luta abolicionista e necessariamente encampado por pessoas negras. 
O principal e mais destacado movimento certamente é a Conjuração Baiana, (também conhecida como Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios), ação emancipacionista popular, essencialmente formada por negros livres, escravizados e pobres. Ela teve início em 1798, antes do nascimento de Pedro I, e terminou no fim de 1799, quando quatro homens negros (e aqui, faço questão de nomeá-los em honra à sua memória: Lucas Dantas, Manuel Faustino, Luís Gonzaga e João de Deus) foram executados em praça pública. 
Também podemos destacar a Revolução Pernambucana. Ainda que em menor expressividade, a busca de liberdade do domínio e do monopólio comercial dos portugueses que norteava o movimento também contou com a participação de pobres e negros do Recife, e com o corpo negro do capitão Pedro Pedroso no processo de rendição do governador. 
E foi justamente nos estados do Nordeste que ocorreu a grande efervescência de todo o processo de emancipação brasileiro, que contou com participação de negros, homens e mulheres em revoltas no Pará, no Maranhão, no Piauí e na Bahia.  
Na contramão desses relatos, o que é amplamente difundido no imaginário brasileiro é que a independência do Brasil foi heroicamente empunhada por dom Pedro I, em 7 de setembro de 1822, às margens do rio Ipiranga, com o brado de “Independência ou Morte”, quando, na realidade, a verdadeira história dá conta de que, no momento, o monarca estava com problemas intestinais e apenas ratificou os termos da independência já documentados. 
Tamanho era o barulho feito pelos movimentos populares, essencialmente por pessoas negras que buscavam a abolição da escravidão, que a independência do Brasil foi irremediável. Mas os interesses econômicos da elites embranquecidas foram sobrepostos à luta popular – e assim a história foi escrita. 
O apagamento do negro no protagonismo da história enquanto vitorioso (e não como escravizado) não é um demérito unicamente tupiniquim. A história registrada da humanidade dá conta de que o corpo negro é o último e primeiro na luta pela liberdade, seja na renúncia à condição de escravizado, seja na destituição da elite branca do poder, tal como ocorreu na independência do Haiti, em 1804.
Na história recente, não é preciso ir longe para constatar a perpetuação da invisibilização de pessoas negras da liderança da liberdade. Desde o início dos movimentos pelos direitos civis na década de 1950, mulheres negras eram marginalizadas das propostas e do protagonismo destas organizações civis, pois a libertação dos agentes em destaque (fossem homens e mulheres brancos ou até homens negros) dependia – e muito – do trabalho doméstico precariamente (ou não) remunerado exercido pelas mulheres negras.  
bell hooks nos conta que, com a eclosão de organizações por mudanças nos direitos civis, movimento que escancarou o racismo como um problema a ser combatido, “fazia sentido que homens brancos estivessem mais dispostos a levar em consideração os direitos das mulheres, quando a garantia desses direitos pudesse servir à manutenção da supremacia branca”.  
Esse recorte denuncia uma vivência que pessoas negras percebem desde o início das movimentações populares: os ideais de igualdade pertenciam a um grupo seleto e específico, essencialmente, branco e masculino.  
Como seria possível o corpo negro ser a representação histórica da liberdade se sequer lhe é reconhecida a condição de humanidade?  
O mesmo incômodo já havia sido denunciado em 1770 por Esperança Garcia, mulher negra escravizada que ousou se insurgir contra às estruturas que a desumanizavam e denunciou as situações de violência que ela, as companheiras e seus filhos sofriam na fazenda de Algodões, no Piauí.
O reconhecimento da sua história e da sua importância para a comunidade jurídica, que lhe rendeu o título de primeira advogada do Brasil, somente aconteceu em novembro de 2022, depois de muito esforço e empenho de pessoas engajadas em divulgar a história, a ousadia e a vanguarda capitaneada por Garcia.  
A ideia do negro como coadjuvante ou subalternizado revela como a nossa história é calcada pelo racismo. O apagamento do protagonismo do povo negro dá lugar a uma narrativa construída pela branquitude. 
E é essa mesma narrativa que isola o fato de que, mesmo declarado independente do domínio de Portugal, mesmo tendo como arrimo o movimento abolicionista, o corpo negro não era capaz de usufruir da liberdade que lutou para alcançar, já que após a declaração de Independência, em 1822, o Brasil manteve o regime escravocrata até 1888. 
No livro 1822, Laurentino Gomes sintetizou o período posterior à Independência: “De todos os problemas brasileiros na Independência, a escravidão foi o mais camuflado e mal resolvido. Serviu também para expor uma estranha contradição no pensamento dos homens mais revolucionários da época. Os documentos, manifestos e discursos falavam em liberdade, direitos para todos, participação popular nas decisões, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão, como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros”. 
Desde então, o corpo negro, ainda que legalmente livre, não podia usufruir da liberdade, de ter moradia digna, emprego, acesso à educação, saúde de qualidade. Por uma série de manobras estatais e da elite, como a Lei de Terras e incentivos à imigração europeia, o corpo negro foi posto à marginalidade, sofreu com a favelização de áreas pouco urbanizadas, afastado de toda e qualquer oportunidade de ter um emprego. Foi-lhe negado o acesso a direitos básicos e assim o negro permaneceu desumanizado, mesmo quando a humanidade sempre foi o bem mais precioso. 
Já se perguntou por que Dona Ivone Lara cantou que “negro sem emprego, fica sem sossego”? No período pós-abolição, o Código Criminal de 1890 tipificou a conduta de “vadiagem” para acossar na prisão aqueles que não tinham empregos, renda para subsistência, moradia ou que vagavam pela cidade – notadamente pessoas negras jogadas à própria sorte. Não ter um emprego não só era um desassossego, era um perigo à liberdade.  
Anos a fio, a população negra segue sofrendo com a estrutura da escravidão e todas as agruras modernas da sub-representação em espaços de poder e decisão.  
E ainda assim, o corpo negro resiste. O que a branquitude esquece é que, depois da liberdade, a ancestralidade é o nosso bem mais poderoso, capaz de resistir aos rodapés dos livros – nossa história é contada e passada de geração em geração e, por isso, podemos hoje honrar nossos heróis. Mesmo arrancado de África, marcado pelo ferro das correntes da escravidão. Sobrevivendo às mais diversas formas de subalternização e tentativas de erradicação e seguir r(existindo). Tolhido da humanidade, do respeito, das oportunidades. É ainda ser confundindo com um criminoso, mas também é ser o alvo da bala. 
Mas, como seguiu cantando Yvonne Lara, é ser “uma cor de respeito”, é “inspiração”. 
É não ter medo, como disse Nina Simone.  
É ser “criado para a liberdade” e saber que “o mundo é grande demais para não sermos quem a gente é”, como nos ensinou Elza Soares. 
Se me é possível acrescentar algo a esta tradução fidedigna da negritude, arrisco dizer que negro é a resistência para a liberdade.  
Na verdade, o corpo negro sempre foi (e sempre vai ser) sinônimo de liberdade.

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JOTA

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