Opinião e Análise

Chiara Ramos

''Juristas negras em prosas” é uma série de contos e crônicas sobre racismo e sexismo no sistema de justiça. As narrativas e personagens são fictícias, mas inspiradas em histórias reais vivenciadas por juristas negras de todo país.
A ideia é falar sobre racismo e sexismo através de recursos literários que transportem as pessoas para as situações vivenciadas cotidianamente por mulheres negras que exercem profissões jurídicas.
Com isso, pretendemos não apenas acolher juristas negras que sofrem diariamente as mais diversas violências, mas também estimular o exercício da empatia e a prática do antirracismo pelas pessoas brancas.
As narrativas contarão histórias que curam ao romper com o silêncio e serão publicadas uma vez por mês nesta coluna Nós-Outros, do JOTA.
*
<h3>Morpheus</h3>
Eu caminho pelo corredor do fórum e uma sensação me percorre. Não sei ao certo descrever, mas sinto que algo não está como deveria estar. Olho para o meu reflexo nas estruturas espelhadas e fico inicialmente satisfeita com o que vejo, mas aquela mulher me olha como se me perguntasse: “quem é você?”. Penso nisso e meu coração acelera levemente, eu tenho uma leve sensação de nó na garganta. “Quem sou eu?”
Eu paro, respiro profundamente, olho mais uma vez para a mulher refletida. Ela está impecável, em um belo vestido preto e branco, complementado por um blazer preto, uma bolsa cara e um scarpin preto, que esmaga seus pés. Essa imagem sou eu? Penso nos tempos em que eu corria descalça pelo chão batido dos engenhos e sinto saudade daquela menina, mas os olhares das pessoas que passam me trazem de volta à realidade e retomo o meu caminho.
Chego ao meu destino, sinto a boca secar. É a primeira vez que faço audiência naquela Vara e tenho a costumeira sensação de que algo vai dar errado. Sempre alerta, sempre vigilante. Olho ao redor e o sentimento sem nome me toma mais uma vez.
A voz de Morpheus ecoa na minha mente: “você sabe de algo, não consegue explicar o quê, mas você sente, você sentiu a vida inteira. Há algo errado com o mundo, você não sabe o que é, mas há, como um zunido na sua cabeça te enlouquecendo, foi esse sentimento que te trouxe até mim”. Penso: “Será que eu vivo em uma Matrix?”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Sou trazida de volta à realidade quando uma voz masculina me pergunta: “quem é a senhora?”. Por uma fração de segundo achei que era Morpheus e que finalmente tinha chegado a hora de escolher se eu tomaria a pílula azul ou a vermelha, mas logo vi que tinha sido o assessor do magistrado, que me olhava sem entender o que eu estava fazendo ali.
Me apresentei: “Sou Inaê dos Santos, advogada”. Ele pediu minha carteira da ordem e me indicou onde sentar, o que me deixou aliviada, pois tinha a incômoda sensação de que todos naquela sala me olhavam. Além disso, meus pés latejavam dentro daquele maldito sapato. Enquanto o assessor analisava com desconfiança o documento que lhe entreguei, as outras pessoas iam chegando e tomando os seus lugares.
Percebi o quanto eles se sentiam confortáveis na própria pele e naquele cenário. A cada um que entrava, a cena se repetia: sorrisos nos rostos, apertos de mãos, tapinhas nas costas, perguntas sobre esposas, filhos e o que fizeram no final de semana, enquanto solenemente me ignoravam. Um deles falou do pai e percebi que eram amigos de infância, o que me fez questionar ainda mais as possibilidades de se fazer justiça naquela audiência. “Que chance eu tenho?”, pensei.
Ainda com a minha funcional nas mãos, o assessor não lembrou de pedir a identificação dos demais participantes da audiência. Aquilo começou a me irritar e passei a vestir as minhas armaduras: ergui a cabeça, ajustei ainda mais a postura e usei a minha expressão facial mais dura. Nenhum sorriso nos lábios e nos olhos um aviso de “cuidado, não mexe comigo”.
Aprendi a performar uma mulher inatingível para me preservar nesses momentos. Essa personagem quase sempre é lida como agressiva e arrogante, sobretudo por esses homens que se comportam como se fossem donos do mundo. No fundo, eu continuo a mesma menina de pés descalços.
O meu semblante suavizou quando Dona Maria entrou na sala e me serviu água com um belo sorriso. Meu coração se apaziguou um pouco quando ela me desejou um sincero bom dia e perguntou “a senhora aceita um café também, doutora?”. O “doutora” usado tinha um tom de orgulho, era como se ela me dissesse “você não está só”. O coração ficou quentinho nessa hora.
Conheço Dona Maria das audiências nas outras Varas e ela sempre me faz lembrar da minha avó. E não é por uma semelhança física apenas, mas pelo olhar acolhedor e cheio de sabedoria. Eu a fito com ternura e digo “obrigada” e ela entende que não agradeço pelo cafezinho. Dona Maria me sorriu de volta e passou a servir aos demais, que agiam como se não a vissem ou ouvissem (ou realmente não estavam a vendo ou ouvindo?).
O magistrado finalmente entrou em cena e o espetáculo teatral estava prestes a começar. Acho que já deu para perceber que eu não gosto de fazer audiências, mas quando ele entrou e me olhou fixamente, levantando discretamente o canto direito do seu lábio, eu percebi que estava diante de alguém que desprezava a minha existência. O estômago embrulhou na certeza de que iria dar merda, se me permitem a expressão.
O olhar de desprezo é algo que reconheço a quilômetros de distância. Preparei-me para o embate. A sala de audiência estava cheia de alunas e alunos do curso de direito, que precisavam de atividades extracurriculares, e com plateia cheia a coisa fica bem mais complicada.
A primeira testemunha a ser ouvida era minha e o senhor juiz demonstrou desde a primeira pergunta que não iria sequer performar uma postura imparcial. Na verdade, ele foi para cima da testemunha com tanta agressividade, que ela começou a tremer. Dona Ana nunca havia entrado em uma sala de audiência, e toda aquela formalidade e austeridade eram terrivelmente assustadoras para ela. Agora, imaginem o que acontece quando um juiz faz acusações como se a pessoa fosse a ré e não uma testemunha. Ela tremia.
Comecei a me inquietar. A minha expressão corporal me denunciou. Abri a boca para interferir e fui interrompida pelo douto juiz antes da primeira palavra sair. Meus olhos o fulminaram e a minha cabeça balançou de um lado para o outro, enquanto eu respirava fundo. Minha postura questionadora o irritou profundamente. Em seu semblante, ficou nítido o seu ódio por mim. E eu pensei: “o que eu fiz para essa criatura me detestar tanto? Nós acabamos de nos conhecer”.
Foi aí que ele tentou me colocar “no meu devido lugar”. O que ele fez? Simplesmente interrompeu a audiência e mandou constar em ata que estava ordenando que eu mantivesse a compostura e me comportasse de maneira respeitosa perante ele, o grande magistrado, o quase-deus-da-justiça, o “excelentíssimo”. Com outras palavras, mas foi isso mesmo que ele quis dizer.
Reuni toda a minha energia para controlar a explosão que normalmente costuma vir nessas horas. Ele queria me desestabilizar, queria que eu perdesse a razão, mas eu não lhe daria esse gostinho. Respirei fundo, pedi a palavra e disse: “Gostaria que constasse em ata que estou aqui no exercício de uma função essencial à justiça, e não de uma subalterna do juízo. Que a mesma deferência que eu devo ao excelentíssimo senhor magistrado, ele também me deve, pois não existe hierarquia no triângulo processual. Por fim, quero que conste em ata que o senhor juiz está coagindo e acusando uma testemunha, bem como violando as prerrogativas do exercício da advocacia”.
Eu continuaria a falar, mas ele me interrompeu aos brados, com suas veias azuis saltando do pescoço, que segurava a sua cara vermelha de ódio. “Quem você pensa que é? Eu vou lhe dar voz de prisão. Isso é desacato”. Quase fui presa naquela hora, o que me “salvou” foi a intervenção de um dos “amigos de infância” do senhor juiz, que resolveu fazer alguma coisa, enquanto os demais fingiam que nada acontecia. A audiência foi suspensa.
Saí daquela me sentindo só, atordoada e me perguntando: por que isso sempre acontece comigo? Será que eu sou um pára-raios de confusão? O que eu faço de tão errado assim? Levei um tempo para descobrir que o meu grande erro é existir e transitar por lugares que não foram projetados para corpos como o meu.
O sistema funciona como a Matrix. Em uma sociedade colonial, estruturada sobre o capitalismo, o patriarcado e o racismo, o que é colocado diante dos nossos olhos é um mundo com igualdade de oportunidades, no qual o mérito é o único responsável pela ascensão e pelo sucesso, um mundo no qual as pessoas são iguais e a cor e a origem não importam, um mundo fundado em um mito: um mito de democracia racial.
Esse mundo foi colocado diante dos nossos olhos para que nós não víssemos a verdade. “Que verdade?”, você me pergunta tal qual o personagem Neo. E eu assumo a voz de Morpheus para responder: “a verdade é que nascemos no cativeiro, nascemos numa prisão, que não conseguimos sentir ou tocar. Uma prisão para a nossa mente, para os nossos sonhos e, muitas vezes, para os nossos corpos”.
Mas muitas ainda não sabem disso.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Matrix é um filme australo-estadunidense de 1999, dos gêneros ação e ficção científica, dirigido por Lilly e Lana Wachowski e protagonizado por Keanu Reeves, Laurence Fishburne e Carrie-Anne Moss. Em um dos mais importantes diálogos do filme, Morpheus diz a Neo: “Esta é a sua última chance. Então você não será capaz de recuar. Se você tomar a pílula azul, fim da história: você vai acordar em sua cama e acreditar no que quiser. Se você pegar a vermelha, estará no país das maravilhas, e eu mostrarei a você até onde vai a toca do coelho. Lembre-se de que a única coisa que ofereço é a verdade, nada mais". Disponível em: <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%ADlula_vermelha_e_p%C3%ADlula_azul">https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%ADlula_vermelha_e_p%C3%ADlula_azul</a>

diversidade

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Série de contos e crônicas na coluna Nós-Outros retratará racismo e sexismo no sistema de justiça

Juristas negras em prosas

Série de contos e crônicas na coluna Nós-Outros retratará racismo e sexismo enfrentados por juristas negras no sistema de justiça