Opinião e Análise

Amanda Amorim Maciel

Lenny Blue de Oliveira

As mudanças que o povo preto tem impingido na sociedade vão muito além do que é “politicamente correto”. Trata-se de uma busca incessante por reparação mínima ao que experimentam até os dias de hoje: os efeitos de uma atrocidade preconceituosa e injustificada, a submissão de pessoas a trabalhos forçados e toda forma de tratamento desumano, é isso que foi a escravidão no Brasil, um processo cruel desferido também aos povos originários.
Adequar denominações para reduzir o racismo, esse é o objetivo do letramento racial, tentar expurgar da cultura hábitos que perpetuem a discriminação, ou seja, trata-se de educação e conscientização no uso de termos que se referem aos não brancos, é o desenvolvimento da linguagem. O emprego do termo escravização é um perfeito exemplo, eis que se diferencia da escravidão (fenômeno fático) ao representar a humanização e correta classificação desta fase cruel da história negra brasileira. Antagonicamente, parâmetro moral é norma ética, desprovida de regras documentadas, sentimento de justiça não sistematizada, diz-se do que é aceito ou não pela sociedade, transforma-se no tempo e, pode ainda, ser definido como o que seriam os bons costumes. Não é bem o caso.
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa define a palavra escravo como “que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor a quem pertence como propriedade” (p. 803). Nesse diapasão, o escravo é um ser inerte, convencido de sua inferioridade em relação a seu opressor, é subordinado em todas as esferas da vida.
Sabe-se que o fundamento do transporte dos africanos para escravização foi meramente econômico, além de obter força de trabalho gratuita, aquele povo trouxe consigo sua tecnologia<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> na manufatura agrícola, lavras, e no atendimento de outras necessidades inerentes aos últimos séculos.
Ainda na seara histórica, em seu país de origem, os africanos sequestrados eram nobres à sua época, e muito antes, reis como nos registros faraônicos e em Kemet<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, dinastias soberanas e abastadas. A associação do negro à pobreza é algo do continente americano, resultado das ações da escravização, visíveis até os dias atuais.
A escravização humana fundada em raça é uma questão que atravessou os tempos, teve início em períodos a.c. (referência de contagem universal dos milênios). Já na idade média, o fundamento era dívida econômica ou despojos bélicos, seguindo a linha de objetificação da pessoa.
A população negra tem buscado um auto letramento racial, e assim, pretende não apenas alcançar o sujeito de direitos, mas também o potencial violador, diga-se pessoas não negras, em que pese pessoas negras também praticarem racismo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Ainda não existe um perfeito manual antirracista, ocorre uma frequente construção de valores humanistas de iniciativa daqueles que experimentam do preconceito, e apenas estes, sabem o seu significado, questão que não impede a solidariedade e a empatia.
Em que pese a existência de legislações que reconhecem a diversidade de raça e suas hipóteses de mácula, ainda é distante uma inclusão social. Conforme explicitado anteriormente, escravo é pessoa sem alternativa, sem consciência do porquê de sua servidão ad eternum, que no Brasil transcendeu a pessoa, uma vez que os filhos dos escravizados também se tornavam propriedade.
O ser humano, sob violência física ou da circunstância, tem sido escravizado, mas não escravo. Dignidade e liberdade são condição da existência da espécie humana, o oposto da escravização, ante a afirmação de que escravidão é mero substantivo das formas de escravização da antiguidade.  A escravização atlântica ocorreu sob a égide do extermínio da vontade de suas vítimas, práticas para as quais não havia proibição legal.
O vocábulo escravidão indaga sentido de naturalização e de acomodação psicológica e social à situação, além de evocar uma condição de pessoa cativa, intrínseca ao fato de um ser negro, de caráter inferior.
Em não se tratando de um estado transitório, mas de uma condição de vida, implícita no termo escravo, o uso de seu radical contribui ardilosamente para a anistia dos agentes do processo histórico de desumanização, de despersonalização e de espoliação identitária do escravizado ou ex-escravo. Simples mercadoria, como um ser que não decide e não tem consciência sobre os rumos de sua própria vida, ou seja, age passivamente em completa alienação.
De acordo com o filósofo Kabenguele Munanga, a existência do chamado “escravo” não é razão para aceitar a escravidão, é como se negros tivessem nascido única e exclusivamente para serem escravizados. A semântica denuncia o processo de violência subjacente à perda da identidade, além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força. E por tudo e por tanto, o correto é escravizado, e não escravo.
É tempo do Brasil tratar suas feridas sociais e políticas, oriundas da economia escravista, o que significa atribuir à coletividade, responsabilidade sobre o tema da escravização, de trazer à baila a verdade sobre quem foi oprimido pela aristocracia. Um novo ponto de vista, uma pequena conquista, é o que representa o uso apropriado do termo escravização, incumbido de potencializar outras medidas mais relevantes, ou enfim, justiça.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>Vide acervo do Museu Afro Brasil <a href="http://www.museuafrobrasil.org.br/visite/roteiros-de-visita/roteiro-de-visita---detalhe/2014/07/16/arte-adorno-design-e-tecnologia-no-tempo-da-escravid%C3%A3o">http://www.museuafrobrasil.org.br/visite/roteiros-de-visita/roteiro-de-visita---detalhe/2014/07/16/arte-adorno-design-e-tecnologia-no-tempo-da-escravid%C3%A3o</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>A egiptologia afrocentrada trata Kemet como um recanto de pessoas negras, não apenas o significado de “Terra Negra” para aquela língua, em referência ao solo fértil do Rio Nilo, diferenciando a região da chamada “Terra Vermelha”, o solo desértico. Saiba mais em: <a href="https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/egito-kemet-misr-os-muitos-nomes-de-um-pais">https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/egito-kemet-misr-os-muitos-nomes-de-um-pais</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>Cabe mencionar o caso do Oscar de Will Smith. Disponível em <a href="https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/repercussao-do-oscar-expoe-logica-racista-e-colonial-da-imprensa-brasileira/">https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/repercussao-do-oscar-expoe-logica-racista-e-colonial-da-imprensa-brasileira/</a>

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JOTA

É tempo do Brasil tratar suas feridas sociais e políticas

Escravização ou escravidão: letramento racial ou parâmetro moral?

Uso apropriado do termo escravização representa uma pequena consquista, incumbido de potencializar outras medidas mais relevantes