Opinião e Análise

Daniela Crepaldi

Erotilde Minharro

Fernanda Leite

Fernanda Perregil

Guilherme Guimarães Feliciano

O dia 25 de novembro foi declarado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1999, como o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[1]</a>, em homenagem às irmãs dominicanas Mirabal (Patricia Mercedes, Minerva Argentina e Antonia María), conhecidas como Las Mariposas, brutalmente assassinadas em 1960, por se oporem à ditadura de Rafael Leónidas Trujillo<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[2]</a>.
Um crime tão brutal parecerá ao leitor algo distante, com interesse talvez apenas periférico ou histórico. Ledo engano. A violência contra a mulher segue sendo uma constante no Brasil e no mundo. No Brasil, em particular, os números têm apresentado consistente crescimento. Apenas para traçar um paralelo, basta recordar o assassinato das três irmãs Horbach, na cidade de Cunha Porã, Oeste de Santa Catarina, em fevereiro de 2017, em circunstâncias que indicam seguramente para o feminicídio<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[3]</a>.
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Tais contextos, porém, nem sempre são tão explícitos. O Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, neste ano de 2020, chama especialmente a atenção para as diversas formas de violência – física, psicológica, patrimonial, sexual, moral (veja-se o art. 7º da Lei nº 11.340/2006, dita “Lei Maria da Penha”) – que se praticam longe dos olhos alheios, no recôndito do lar, sob o conveniente manto do distanciamento social que a pandemia global da Covid-19 impôs às famílias.
<blockquote class="jota-article__eye">As pesquisas demonstram, com efeito, que, no âmbito doméstico, existem ciclos espirais ascendentes de violência contra as mulheres.</blockquote>
As agressões se sucedem em movimentos repetitivos de tensão e relaxamento, num sistema de “punições” e “recompensas” que podem culminar em feminicídio. Nessa violência conjugal cíclica, a opressão explícita submerge e dá lugar à alternância de fases de agressão, de calmaria e de reconciliação, com implicações sub-reptícias das mais deletérias: sequestra-se a subjetividade da mulher, que é progressivamente subalternizada.
Com sua subjetividade arrebatada, a vítima passa a “racionalizar” todos os excessos do homem violento, que logra recuperar a sua simpatia, com relativa facilidade – mediante pequenos gestos de gentileza e de atenção –, ao menor sinal de ruptura consorcial.
Induz-se, outrossim, uma bem conhecida confusão entre amor e sexualidade, preordenando ensejos de “reconciliação” por meio da prática de atos sexuais. Tal estado de captura psicológica promove a progressiva desvalorização da companheira, que perde a sua autoconfiança. A mulher é infantilizada e reduzida à condição de servilismo de séculos passados, bem expressa no conhecido bordão chauvinista: “o que é que você faria sem mim?”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[4]</a>.
Eis o que grassa, amiúde, nos lares de sociedades estruturalmente machistas, como é a brasileira. São sociedades alicerçadas no patriarcado e na reificação das mulheres, que “normalizam” brutalidades físicas e psicológicas, sempre de ordem misógina, desferidas justamente por quem alardeia protegê-las: pais, irmãos, maridos, companheiros, namorados. Neste momento, o distanciamento social parece sugerir, nessa cultura distorcida, a oportunidade ideal para que homens frustrados descarreguem raiva, rancor e ódio sobre seus familiares do gênero feminino.
Basta ver os números: em abril de 2020, quando as medidas de isolamento já se estendiam por mais de um mês, o número de denúncias de violência contra a mulher no serviço “Ligue 180” conheceu um incremento de cerca de 40% (quarenta por cento) em relação ao mês de abril de 2019, consoante os dados oficiais do próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH). Da mesma forma, de fevereiro para março de 2020 (início do distanciamento), no estado de São Paulo, as prisões em flagrante envolvendo agressores de mulheres aumentaram em 51,4% (e em fevereiro se havia percebido uma promissora queda de 10% na comparação anual...)<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[5]</a>.
Em síntese, o que temos são mulheres de todas as idades (adultas, adolescentes e crianças), de todas as etnias e de todas as classes sociais – mas com um claro corte racial e socieconômico (algumas formas de violência conhecem sensível recrudescimento em detrimento de mulheres negras e/ou em extratos econômicos menos favorecidos) –, agredidas todos os dias, de todas as formas: xingadas, diminuídas, seviciadas e mortas aos milhares em nosso país<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[6]</a>.
Violência invisível<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[7]</a>, uma vez que a vergonha e o sentimento de culpa fazem-nas não apenas pouparem o agressor, deixando de denunciá-lo, como também as levam inclusive a esconder os fatos, protegendo-os do Estado. Isso tudo sem considerar as “pequenas” violências diárias, geralmente despercebidas ou relevadas: as falas ríspidas, as interrupções abruptas (“manterrupting”), as explanações infantilizadoras (“mansplaining”), as apropriações intelectuais (“bropriating”) e as manipulações psicológicas (“gaslighting”) que, somadas, negam-lhes voz e tiram-lhes a humanidade. Se você é homem, certamente vai identificar ocasiões em que agiu assim... E este artigo terá alcançado expressiva parte de sua finalidade, se conseguir levá-lo à reflexão e à “mea culpa”. 
Na verdade, é a partir das formas menos drásticas, “normalizadas” e disseminadas em nossas relações sociais, que a própria violência física ganha força e presença, quando não até uma abjeta “legitimação”, retoricamente torta, própria dos conceitos patriarcais que subvertem o papel da mulher em todas as esferas de sociabilidade, agravando inclusive os quadros de subnotificação.
O resultado torna-se visível ao se constatar que mesmo antes do início da pandemia, ainda em 2019, mais de 243 milhões de mulheres e meninas haviam sido abusadas por seus parceiros ao redor do mundo, enquanto menos de 40% (quarenta por cento) delas pediram socorro ou denunciaram seus agressores.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[8]</a>
A despeito da subnotificação, porém, dados da oitava edição da Pesquisa Nacional sobre Violência Doméstica e Familiar de 2019 demonstram que pelo menos 36% das brasileiras já sofreram alguma violência doméstica e familiar. O crescimento das notificações deve-se, por um lado, à escalada da própria violência de gênero; mas, por outro, decorre também das ações de conscientização que fazem com que antigos tabus sejam superados (como, e.g., o deplorável “em briga de marido e mulher não se põe a colher”).
E grande parte desta conscientização deve-se, como se sabe, à precitada Lei Maria da Penha, divisora de águas nessa matéria, que já tardiamente veio a lume para consubstanciar o espírito da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Cedaw, Nova York, 1979<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[9]</a>), combinando técnicas de prevenção, de capacitação e da educação e fomentando uma cultura de respeito e de paz no ambiente familiar.
Educação, em particular, para ensinar às mulheres em formação que o “lugar” de mulher será sempre onde ela quiser estar. Capacitação, por sua vez, a se universalizar nos mais diversos ensejos e contextos, não restritos à escola (assim, e.g., essa capacitação pode e deve se dar no âmbito da própria empresa, à vista do que dispõe, e.g., o art. 10, V, do Decreto nº 9.571/2018, que estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos).
E prevenção, sobretudo, na expressão mais abrangente e garantista  possível: como há pouco dizíamos, a violência a ser combatida não é apenas a física, sempre mais dolorosa aos olhos e mais atraente para a mídia. É também a violência psicológica, de regra silenciosa, capaz de aprisionar e calar a mulher no ambiente doméstico, como também no ambiente social e no meio ambiente de trabalho (“Você tá nervosa, de TPM?”; “Vai começar a surtar!”).
É também a empedernida violência patrimonial, ainda mais soturna, que se revela nas famílias, com mulheres que não podem dispor dos próprios rendimentos ou do seu patrimônio, porque sequer têm consigo o próprio cartão de crédito; mas que também se revela nos empregos, de maneiras mais ou menos estridentes, quando se percebe que a remuneração das mulheres é, em média, 14% (catorze por cento) mais baixa que a dos homens, ou ainda que se detecta a quase inexistente progressão, neste século, da ocupação de cargos de administração por mulheres, em termos mundiais<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[10]</a>.
E há, por óbvio, a violência moral, a agredir a honra subjetiva (i.e., a autoestima) e a honra objetiva (i.e., a reputação) das mulheres, geralmente – mas não estritamente – por meio de condutas que configuram calúnia, difamação e injúria, deflagradas em casa, no trabalho ou em outros espaços. Todas essas formas de violência, a propósito, estão bem descritas na multicitada Lei Maria da Penha (art. 7º), sob os seus escopos primacialmente penais e processuais penais; mas que, em nossa opinião, aplica-se perfeitamente às questões trabalhistas e processuais trabalhistas, no que for compatível, à luz dos artigos 8º, §1º, e 769 da CLT.
Assim, por exemplo, o que poderia fazer o juiz do Trabalho, diante de uma ação judicial em que a reclamante queixa-se de assédio sexual, com indícios bastantes da narrativa exordial, e o assediador é um alto encarregado ou quiçá o próprio sócio-proprietário da pessoa jurídica reclamada, supondo-se que a trabalhadora não deseje abrir mão do próprio emprego?
Isso porque, a rigor, poderia considerar o contrato indiretamente rescindido, nos termos do art. 483, “a”, “b”, “c”, “d”, “e”, “f” e/ou “g”, conforme a hipótese; mas isto há de ser uma opção, não uma constrição... Instá-la a se desligar, contra a própria vontade, seria puni-la pela torpeza alheia (e, portanto, revitimizá-la); por outro lado, deixá-la seguir no local de trabalho, entregue à própria sorte, seria desprotegê-la de modo vil.
“Quid iuris”? Pois bem: parece claro que a Lei nº 11.340/2006 apresenta alternativas interessantes, aptas a colmatar a lacuna específica da legislação trabalhista. Veja-se, por exemplo, a ordem de restrição do seu art. 22, III, “a”, pela qual o juiz – inclusive o do Trabalho – poderá proibir a “aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor”; ou, ainda, proibir o “contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação” (art. 22, III, “b”), sob pena de multa diária (CPC, arts. 537 e 814).
E, a se rejeitar estulta e dogmaticamente a aplicação da Lei nº 11.340/2006, bastará ao magistrado trabalhista lançar mão do art. 139, IV, do CPC (“determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”), para impor medidas com aqueles exatos conteúdos.
Mas voltemos ao nosso prólogo. Fatos históricos como as mortes das irmãs Maribal e das irmãs Horbach desnudam muito bem o quanto a crueldade humana – e será talvez redundante dizê-la “humana” – desconhece quaisquer limites.
Esses pendores desumanos, ademais, explicam-se também política e culturalmente: há governos e companheiros que simplesmente não suportam a ideia de igualdade e/ou de liberdade de gênero.
Quanto a isto, valerá o célebre dito de Minerva Mirabal: “Se me matam, levantarei os braços do túmulo e serei mais forte”. Ou quem sabe os versos seculares de Manuel Maria du Bocage: “Ah! Se a vossa liberdade / Zelosamente guardais / Como sois usurpadores / Da liberdade dos demais?”. 
A nossa solidariedade e o nosso desagravo, por tudo isso, às milhares de mulheres que inexplicavelmente serão agredidas, ainda uma vez, neste dia 25 de novembro. E a nossa homenagem a um futuro menos usurpador, que certamente virá.
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O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
https://youtu.be/a6M2upbiCFY
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">*</a> Os autores compõem o Núcleo de Pesquisa e Extensão “O Trabalho além do Direito do Trabalho”, que funciona junto ao Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), sob a coordenação do Prof. Guilherme Guimarães Feliciano.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2"></a><a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftnref7" name="_ftn7">[1]</a> A ONU Mulher lança a partir de hoje uma campanha em que ativistas e mulheres sobreviventes à violência doméstica ganharão voz para falar sobre suas ideias e histórias ocorridas após o início da pandemia do COVID-19. A “16 days of activism” pretende inspirar e dar força para que mulheres de todo o mundo falem, denunciem e ajam, fortalecendo a luta da eliminação da violência contra a mulher, que ainda carece de mais investimento, lideranças e medidas efetivas.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[2]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42125587" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42125587</a>&gt;. Acesso em 25 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[3]</a> Veja-se, e.g., em: &lt;<a href="https://veja.abril.com.br/brasil/assassinato-brutal-de-tres-irmas-choca-cidade-no-interior-de-sc/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://veja.abril.com.br/brasil/assassinato-brutal-de-tres-irmas-choca-cidade-no-interior-de-sc/</a>&gt;. Acesso em 25 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[4]</a> Veja-se, e.g., em: &lt;<a href="https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/095/05/PDF/N9409505.pdf?OpenElement" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/095/05/PDF/N9409505.pdf?OpenElement</a>&gt;, p. 15. Acesso em 24 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[5]</a> Veja-se em: &lt;<a href="https://www.istoedinheiro.com.br/violencia-contra-a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-sobem-40/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.istoedinheiro.com.br/violencia-contra-a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-sobem-40/</a>&gt;. Acesso em 25 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[6]</a> Desde que a pandemia de coronavírus começou, 497 mulheres perderam suas vidas. Foi um feminicídio a cada nove horas entre março e agosto, com uma média de três mortes por dia. São Paulo, com 79 casos, Minas Gerais, com 64, e Bahia, com 49, foram os estados que registraram maior número absoluto de casos no período.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[7]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil</a>&gt;. Acesso em 24 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[8]</a> V. ONU Mulher. Disponível em: &lt;<a href="https://www.unwomen.org/en/news/in-focus/end-violence-against-women" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.unwomen.org/en/news/in-focus/end-violence-against-women</a>&gt;. Acesso em 25 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[9]</a> No Brasil, com o tardar de sempre, Decreto nº 4.277/2002.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[10]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://news.un.org/pt/story/2020/01/1700382#:~:text=A%20ag%C3%AAncia%20da%20ONU%20analisou,salarial%20m%C3%A9dia%20%C3%A9%20de%2014%25" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://news.un.org/pt/story/2020/01/1700382#:~:text=A%20ag%C3%AAncia%20da%20ONU%20analisou,salarial%20m%C3%A9dia%20%C3%A9%20de%2014%25</a>&gt;. Acesso em 25 de novembro de 2020.

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JOTA

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