Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Olá, caríssimo leitor!
Nesta segunda coluna do glorioso ano de 2023, trataremos de um tema candente no cenário jurídico-laboral brasileiro, especialmente quanto se leem, nos noticiários nacionais, os anúncios de uma nova tentativa de reforma do direito sindical e coletivo do trabalho, antecipando futuras rodadas de discussão sobre os papéis legítimos cometidos aos sindicatos no espaço normativo tupiniquim. Assim, p. ex., circula a notícia de que, “[e]m carta enviada ao Congresso, Lula confirma plano de reforma sindical” (<a href="https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/em-carta-enviada-ao-congresso-lula-confirma-plano-de-reforma-sindical-1.981565">veja-se, p. ex</a>). E, ao mesmo tempo, sentem-se fortes pressões para que a malsinada <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-trabalhista">reforma trabalhista</a> (Lei 13.467/2017) seja revista, se não revogada, inclusive (ou sobretudo) nos novos ditames para o regramento das relações coletivas de trabalho.
Nesse contexto, um tema ganha especial atenção em tempos de incertezas – e esperanças – quanto ao crescimento do PIB e à dinamização da economia, como de polêmicas quanto às taxas de juros: o regime jurídico das dispensas plúrimas e coletivas, que seguem ocorrendo no dia-a-dia das empresas, ainda que mais erraticamente. 
O que temos, atualmente, na legislação e na jurisprudência nacionais?
Vejamos.
O novel art. 477-A da CLT, como se sabe, dita que “[a]s dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”. 
Ora, é sabido e consabido que tal redação veio sob medida, para “enquadrar” certa jurisprudência da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tst">TST</a>) que jamais fora digerida pelo patronato nacional.
Com efeito, desde o rumoroso caso Embraer – quando houve a dispensa repentina de 4.273 trabalhadores, em fevereiro de 2009, por supostas perdas concorrenciais no mercado internacional –, a jurisprudência do TST e dos tribunais regionais estava pacificada no sentido de que, em se tratando de dispensas coletivas, haveria a necessidade de prévia negociação com a entidade sindical obreira, sob pena de nulidade das rescisões. Foi o que enfim se decidiu, para as situações futuras, no EDcl-RODC n. 30900-12.2009.5.15.0000 (<a href="https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:tribunal.superior.trabalho;secao.dissidios.coletivos:acordao;rodc:2009-08-10;30900-2009-0-15-0">TST, SDC, rel. Min. GODINHO DELGADO, j. 10.8.2009</a>), relativo ao referido caso Embraer.
A partir desse julgado, a tese espalhou-se, como tinha de ser, pela doutrina e pela jurisprudência nacionais; e, depois, pelas rotinas trabalhistas. Em 2017, a prática já estava praticamente incorporada aos costumes sindicais e patronais, ao menos entre as grandes empresas, a ponto de diversas categorias profissionais e econômicas internalizarem, em suas convenções e acordos coletivos de trabalho, as pertinentes cautelas de comunicação e negociação prévias, antes de qualquer demissão em massa.
O legislador ordinário, porém, não viu com bons olhos esse valioso progresso cultural que a jurisprudência trabalhista havia carreado às relações entre capital e trabalho e resolveu aboli-la, equiparando, para todos os efeitos, as dispensas individuais, as dispensas plúrimas e as dispensas coletivas ou “massivas”.
Aliás, no que diferem, a rigor, dispensas plúrimas e coletivas (ou, direi eu, massivas)? O art. 477-A da CLT faz referência a ambas as figuras; e, se a lei não tem palavras inúteis – valha-nos a sagrada memória de Carlos Maximiliano –, é de se presumir que não se confundem. Como, de fato, não se confundem.
As dispensas coletivas ou massivas tendem a ser, por natureza, necessariamente multitudinárias, à diferença das dispensas plúrimas “stricto sensu”, que envolvem grupos menores de trabalhadores. Mais importante que o dado numérico, porém, as dispensas coletivas ou massivas derivam de motivo único, por iniciativa de um mesmo empregador, operando-se sem substituição imediata dos demitidos e correlacionando-se diretamente com a necessidade ou a estratégia da empresa (e não com o comportamento dos empregados). Já as dispensas plúrimas podem ter, inclusive, causas disciplinares (p. ex., dez trabalhadores demitidos com justa causa porque se envolveram em um mesmo ato de improbidade praticado contra os interesses do empregador).
A despeito da questão conceitual, porém, a conclusão será a mesma: pelo novel art. 477-A da CLT, o empregador brasileiro passaria a ter o direito potestativo de resilir os contratos de trabalho, em qualquer dimensão socioeconômica ─ a do indivíduo, a dos grupos ou a das multidões ─, independentemente de quaisquer cautelas, e a despeito de quão nefastas pudessem ser as consequências sociais do seu ato.
Como é cediço, o caráter “plúrimo” ou mesmo "multitudinário" não foi balizado pelo legislador; e, logo, uma solução geralmente alvitrada pela doutrina passa pelo recurso ao direito comparado (art. 8º, caput, CLT) – o que, de fato, passa a ser uma solução adequada para a integração normativa do sistema jurídico-laboral brasileiro. Trata-se, aliás, de equacionamento que tenho sugerido para outros tantos ensejos, desde que publiquei a obra "Do pré-contrato de trabalho", <a href="https://repositorio.usp.br/item/002670108">fruto da tese de livre-docência defendida perante a FDUSP</a> e publicada pela querida Editora LTr há exatos treze anos.
Nessa ordem de ideias, tenho como mais apropriado, pelos critérios que aponto no referido estudo (capítulos 2 e 3), adotar-se o conceito de dispensa coletiva desenhado pela ordem jurídico-legal portuguesa, pelo qual se considera despedimento coletivo a cessação de contratos de trabalho promovida pelo empregador e operada simultânea ou sucessivamente no período de três meses, abrangendo, pelo menos, dois ou cinco trabalhadores, conforme se trate, respectivamente de microempresa ou de pequena empresa, por um lado, ou de média ou grande empresa, por outro, sempre que aquela ocorrência dê lugar a encerramento de uma ou várias seções ou estruturas equivalentes ou, ainda, a redução do respectivo número de trabalhadores, e seja determinada por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos (art. 359, n. 1, do Código do Trabalho de Portugal).
Para mais, e independentemente desse critério quantitativo, sempre entendi que o flagrante propósito de promover o retrocesso na jurisprudência trabalhista fixada para o tema padecia de inconstitucionalidade. Isto porque, desde a origem do debate judiciário no Brasil ─ com o caso Embraer, o caso Usiminas e tantos outros ─, a necessidade de procedimentos prévios às demissões massivas, com transparência e boa-fé nas negociações, ancoravam-se em valores constitucionais (e não apenas legais). A ementa vazada no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região para o caso Embraer, sob a pena do Desembargador José Antonio Pancotti, bem o revelava: entre os fundamentos da decisão estavam a livre iniciativa, a intervenção no domínio econômico para a realização da justiça social, a boa-fé objetiva, a função social da propriedade, a razoabilidade/proporcionalidade etc.
Por essas e outras razões ─ de ordem supralegal e constitucional ─, diversos juízes passaram a reconhecer, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 477-A da CLT, anulando dispensas coletivas que, após a entrada em vigor da Lei n. 13.467/2017, passaram a ocorrer mais amiúde, especialmente no segmento da educação privada superior, entre novembro de 2017 e janeiro de 2018. Assim, p. ex., na ACP n. 0012347-59.2017.5.15.0153, o juiz titular da 6ª Vara de Ribeirão Preto, Dr. José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva, acatou pedido do Sindicato dos Professores e Auxiliares de Administração Escolar de Ribeirão Preto e Região (SINPAEE) para suspender, no âmbito da sua jurisdição, a demissão coletiva abrupta de dezenas de professores dezenas de professores da Sociedade de Ensino Superior Estácio de Sá (que demitiu, em todo o Brasil, cerca de 1,2 mil professores). A decisão determinava a reintegração imediata de 58 professores e estabelecia, para o caso de descumprimento, multa diária de R$ 58 mil reais.
Da mesma maneira, na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, a plenária – que tive a honra de presidir no já distante ano de 2017 – aprovou o Enunciado n. 57, pelo qual “[o] art. 477-A da CLT padece de inconstitucionalidade, além de inconvencionalidade, pois viola os artigos 1º, III, IV, 6º, 7º, I, XXVI, 8º, III, VI, 170, caput, III e VIII, 193, da Constituição Federal, como também o artigo 4º da Convenção nº 98, o artigo 5º da Convenção nº 154 e o art. 13 da Convenção nº 158, todas da OIT. Viola, ainda, a vedação de proteção insuficiente e de retrocesso social. As questões relativas à dispensa coletiva deverão observar: a) o direito de informação, transparência e participação da entidade sindical; b) o dever geral de boa-fé objetiva; e c) o dever de busca de meios alternativos às demissões em massa".
No entanto, diante dos vários casos de inconstitucionalidade incidentalmente reconhecida por juízes do Trabalho de todo o país, a propósito da equiparação das dispensas coletivas às individuais no art. 477-A da CLT, o então presidente do Tribunal Superior do Trabalho, o ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, no exercício regimental das funções de Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho (em face das férias do ministro titular), cassou administrativamente diversas dessas decisões judiciais (inclusive a que transcrevi), a partir de dezembro de 2017, fiando-se no  art. 13, parágrafo único, do Regimento Interno da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, que já era objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI n. 4168/DF, ajuizada pela ANAMATRA e distribuída ao ministro Celso de Mello; sem julgamento até hoje, há parecer da Procuradoria-Geral da República pela procedência da ação).
Mais recentemente, porém, ainda a respeito desse tema, ao julgar o Recurso Extraordinário n° 999.435 (com repercussão geral), o STF fixou a tese de que "[a] intervenção sindical prévia é exigência procedimental imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, que não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção ou acordo coletivo" (Tema de Repercussão Geral n° 638).
Não se reconheceu, portanto, a inconstitucionalidade "tout court" da equiparação entre as dispensas coletivas/massivas e individuais; optou-se pela interpretação conforme a Constituição (como havia de ser, permitam-me).
Sendo assim, emerge uma segunda questão: qual passa a ser o equacionamento jurídico para o alcance hermenêutico do art. 477-A da CLT, diante do que decidiu o STF? Noutras palavras, qual seria o "procedimento mínimo" para que se possa proceder às dispensas coletivas, já que não se exige necessariamente uma convenção ou acordo coletivo?
A nosso ver, a letra do preceito desde sempre dispensou, para as demissões individuais e coletivas “lato sensu”, qualquer espécie de “autorização” sindical (que, ademais, jamais se exigiu ou entendeu necessária, em qualquer momento da jurisprudência ou da doutrina dominante); e, na mesma direção, sempre dispensou, para o mesmo efeito, a celebração prévia de uma convenção ou acordo coletivo de trabalho. É o que derivava da própria interpretação literal do preceito, como também de qualquer interpretação sistemática ou teleológica que se pudesse razoavelmente empreender. E, agora, é precisamente o que decorre da tese fixada pelo STF.
Não se afasta, porém, a exigência de prévia comunicação à entidade sindical, nem das consequentes tentativas de negociação que devem sucedê-la (ou, na linha do Enunciado n. 57 da 2ª Jornada, o “dever de busca de meios alternativos à demissão em massa”, com os rigores da boa-fé objetiva, como, p. ex., a vedação do “venire contra factum proprium” e o reconhecimento das ditas “inalegabilidades formais”); tudo isso, antes de se consumar qualquer movimento rescisório coletivo, sob pena de se reconhecer a nulidade “ab ovo” desse(s) ato(s).
Essa compreensão deixa incólume a redação do art. 477-A da CLT, na sua literalidade, e ao mesmo tempo respeita a mínima eficácia, em sede de demissões coletivas e massivas, do art. 5º, XXIII, do art. 7º, I (que tem eficácia própria- ainda que restrita –, independentemente da edição de lei complementar, e já discutimos isso nesta coluna), do art. 114, §§1º e 2º, e do art. 170, III, todos da Constituição da República, além dos artigos 4º da Convenção OIT nº 98, 5º da Convenção OIT nº 154 e 13 da Convenção OIT nº 158.
Como procedimento mínimo, ademais, pode-se uma vez mais recorrer ao direito comparado (de novo o art. 8º, caput, da CLT) e adotar, como padrão ou paradigma, o modelo europeu vazado pelo art. 2º da <a href="https://op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/4536855b-5b01-4f1a-a4b0-f83f971714c8">Diretiva n. 98/59/CE</a>, do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998. É o que tenho sugerido, se não como padrão cogente – o que envolve a difícil discussão das fontes formais do direito estrangeiro como fontes formais subsidiárias do direito interno (“ex” art. 8º da CLT) –, ao menos como modelo ideal a ser buscado pelas partes coletivas em (pré-)litígio.
Enfim, como diriam os meus queridos alunos mais novos (ou já nem tanto), #ficaadica. Especialmente para sindicatos e empresas nas futuras negociações coletivas, que bem podem se adiantar e reger, pela via autonômica, o vácuo regulatório que decorre do julgamento do RE 999.435.
Que tal ousar um pouco?
Gostou da coluna, caro leitor? Qual será, na sua opinião, o futuro das dispensas coletivas no Brasil, especialmente após a decisão do STF para o Tema de Repercussão Geral n. 638?
Mande suas sugestões, opiniões ou críticas para <a href="mailto:dunkel2015@gmail.com">dunkel2015@gmail.com</a>, como de praxe. Até a próxima coluna!

adolfo-felix-PG8NyM_Mcts-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O que temos, atualmente, na legislação e na jurisprudência nacionais?

O futuro das dispensas coletivas no Brasil: de vias e desvios

O que temos, atualmente, na legislação e na jurisprudência nacionais sobre as dispensas coletivas?