Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Olá, caro leitor! Seguindo com a nossa gloriosa coluna <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor">Juízo de Valor</a>, neste mês gostaria de tratar de um assunto algo diferente, fora dos lindes estritamente legal-trabalhistas que têm geralmente circunscrito as nossas colunas: cuidarei do direito fundamental à privacidade (ou à intimidade e à vida privada, como reza a nossa Constituição) e, nesse marco, do papel do devido processo legal e do processo judicial.
Mas, é claro, a remissão à temática juslaboral será inevitável: são óbvias, afinal, as conexões que se estabelecem entre esses dois mundos – direito à privacidade e relação de emprego –, notadamente a partir da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (que, sobre não dedicar um artigo sequer às relações de trabalho, tumultuou sensivelmente a cena jurídica laboralista, como não poderia deixar de ser).
Aliás, falando no assunto, não posso deixar de dizer: lancei no final do mês passado, aos 24 de agosto, a obra Proteção de dados pessoais e os impactos nas relações de trabalho, pela Revista dos Tribunais/Thomson Reuters (um gostoso encontro na queridíssima Livraria Martins Fontes da avenida Paulista, em São Paulo). Para os interessados pelo assunto, é evidente, recomendo a leitura. E outros lançamentos ocorrerão... Diremos por aqui. Mas isso é outra história.
Vamos ao nosso tema, que dividirei em três colunas. Nesta aqui, apresentarei os lineamentos essenciais do problema e as raízes norte-americanas do debate... Para quem não conhece o tema, será talvez a mais impactante. Segurem-se, pois, em suas cadeiras.
A complexificação dos processos de contratação, documentação e controle nas relações de trabalho sugere que o equacionamento dos litígios relativos à inviolabilidade constitucional da privacidade e da intimidade de empregados já não se faça por intermédio de uma aplicação monolítica da norma do art. 5º, X, da Constituição.
Ao contrário, é preciso basear a solução desses litígios em uma garantia constitucional mais abrangente, que permita otimizar a capacidade de aprendizagem das normas constitucionais incidentes. Para esse fim, propõe-se combinar a interpretação/aplicação dos incisos X, LXXIX e LIV do art. 5º da Constituição, ressignificando a proteção da privacidade a partir da cláusula do devido processo legal. E, nessa direção, torna-se imprescindível recorrer à tradição dogmática norte-americana.
E como seria isso?
Voilà.
<h3>Primeiras aproximações do problema</h3>
O direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, textualmente positivado no inciso X do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, deve dialogar, como direito humano fundamental, com os direitos sociais previstos nos artigos 7º a 11 da mesma Constituição; e, de modo mais geral, com todos os aspectos jurídicos ínsitos ao mundo do trabalho.
Isso é assim porque, queira-se ou não, a subordinação jurídica torna o empregado especialmente vulnerável às intromissões em sua vida privada e, mais reconditamente, em sua própria intimidade (i.e., no seu modo de ser, na sua identidade, nas suas relações afetivas mais intensas etc.). Outrossim, a partir do último quartel do século 20 e do advento das novas tecnologias da informação – paulatinamente agregadas às rotinas de trabalho –, esse quadro de exposição agravou-se exponencialmente.
Pense-se, e.g., no monitoramento audiovisual dos locais de trabalho, no monitoramento das comunicações pessoais (por dados estáticos ou dinâmicos, inclusive telemáticos), nas próprias revistas pessoais por instrumentos de detecção etc.; e, mais recentemente, com as técnicas e ferramentas inerentes à dita revolução 4.0, pense-se nas seleções para vagas de emprego mediante tratamento de dados pessoais sensíveis, nas investigações pessoais a partir das informações disponíveis em redes sociais abertas ou fechadas e, ainda mais além, no tratamento automatizado de dados pessoais, por softwares de inteligência artificial, no âmbito da relação de emprego.
A complexificação desses processos sugere que o equacionamento dos consequentes litígios por intermédio de uma aplicação monolítica da norma-princípio do art. 5º, X (ou mesmo daquela ínsita ao art. 5º, LXXIX), tende a ser insuficiente. É preciso ancorar esse raciocínio em uma norma-garantia mais abrangente, que permita otimizar a capacidade de aprendizagem das normas constitucionais incidentes. E, nesse caso, a opção hermeneuticamente mais promissora, ainda que pouco evidente, é aquela que combina a interpretação/aplicação dos incisos X e LXXIX do art. 5º com o inciso LIV do mesmo preceito.
Mas o que o “devido processo legal” teria a ver com a inviolabilidade da vida privada e da intimidade do trabalhador?
Uma boa resposta exigirá, em termos geográficos, um pequeno deslocamento para o norte. Afinal, a ideia de devido processo legal não surge no texto da Constituição brasileira de 5 de outubro de 1988. Ao revés, deita raízes em tradições bem mais antigas. E as raízes mais próximas já não são romano-germânicas (ainda que as mais distantes, contemporâneas da Lex Salica, de Clóvis I, fossem). São anglo-saxônicas.
Expliquemos com algum vagar. Dados os limites físicos para este ensaio, porém, partamos já do século 20.
<h3>O devido processo legal na tradição estadunidense</h3>
A doutrina corrente identifica, a propósito da “due process clause” norte-americana (Emendas V e XIV da Constituição dos EUA), três fases bem distintas de compreensão da garantia constitucional do devido processo legal: a fase do “procedural due process”, a fase do “economic substantive due process” e a fase do “noneconomic substantive due process”. Essa terceira fase da hermenêutica constitucional da referida garantia – a do “noneconomic substantive due process” – resplandece a partir de 1937 e chega a nossos dias. Sobre ela nos debruçaremos.
Vinte anos antes, porém, ainda em 1917, esta derradeira fase já vinha anunciada no caso Buchanan v. Warley. Neste conhecido precedente, a U.S. Supreme Court derrubou, em elaborado voto do justice DAY, ordenança administrativa do município de Louisville (Kentucky, 1916) que, sob o pálio do chamado “police power”, proibia a venda, a negros, de casas situadas em blocos residenciais habitados por maioria branca. Detectou-se uma arbitrária intromissão do Estado no direito de propriedade dos brancos — que afinal poderiam querer vender imóveis a negros —, com consequente violação ao princípio do devido processo legal vazado na Emenda XIV (ainda na perspectiva da “economic doctrine”).
Na fundamentação, DAY recusou a tese de que a restrição consubstanciaria exercício razoável do poder de polícia regulatório (a bem da pacificação social, da manutenção dos preços dos imóveis e até da “redução da miscigenação”); e a recusou não por razões econômicas, mas sobretudo por razões humanitárias (ligadas aos princípios da isonomia e da não discriminação): nenhuma iniciativa pública, ainda se válida e bem-intencionada, poderia chancelar a segregação e a própria discriminação racial<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Era o começo da viragem hermenêutica, a reboque das próprias reflexões jurídicas da corte.
Mas não foi só.
<h3>Ainda a vereda do non economic substantive due process ao noneconomic substantive due process: as razões econômicas</h3>
Em paralelo àquela espontânea inflexão de tendência, também é certo que o “ativismo judicial” deflagrado na Suprema Corte com a doutrina do “economic substantive due process” passou a representar, na década de 1930, um grande empecilho ao projeto econômico e às políticas públicas eleitas pelo governo federal. Com efeito, muitos julgados se opunham visceralmente às políticas intervencionistas do New Deal de Franklin Roosevelt, na intenção de preservar a propriedade, a liberdade contratual, o livre comércio ou mesmo o federalismo. Vejam-se, por exemplo, Panama Refining Company v. Ryan (1935), Schechter v. United States (1935), Louisville Bank v. Radford (1935), Carter v. Carter Coal Company (1936), e assim sucessivamente.
Por conta disso, colimando sepultar o ativismo judicial de pendor liberal que arrevesava as políticas econômicas e sociais do governo, Roosevelt tentou aprovar no Congresso Nacional, em 1937, o Court-packing plan, alterando a dinâmica de composição da Suprema Corte com o alegado propósito de “renovar” mais frequentemente os seus quadros, adequando-a às complexidades da vida moderna. O presidente dos Estados Unidos foi então autorizado a indicar um membro a mais do número de justices existente na Suprema Corte sempre que um juiz que houvesse servido por pelo menos dez anos deixasse de se aposentar nos seis meses ulteriores ao seu aniversário de setenta anos. No ano de 1937, isso significaria possibilitar a Roosevelt nomear até seis juízes novos, todos provavelmente alinhados com a “nova visão”.
No entanto, uma vez que nem mesmo seu Partido Democrata o apoiou, e diante da forte reação negativa experimentada junto à imprensa e à opinião pública, Roosevelt terminou amargando a rejeição de seu Court-packing plan no Congresso Nacional. Nada obstante, a referida tentativa marcou, ao menos para efeitos didáticos, o fim da chamada era Lochner na hermenêutica da “due process clause”. 
É que a partir de então, sentindo-se aparentemente intimidada<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a Suprema Corte retraiu-se, passando a adotar linhas de entendimento menos arrojadas e mais dóceis para com o intervencionismo estatal (outorgando aos respectivos atos normativos uma inédita presunção de constitucionalidade). Ao menos tempo, precipitou-se a viragem semântica já insinuada em 1917, que realmente convergia para a ideia de um Estado-interventor que garantisse a realização dos chamados direitos de prestação (habitação, educação, previdência social, direitos sociais em sentido estrito etc.).
Assim é que, no caso West Coast Hotel Co. v. Parrish (300 U.S. 379) — julgado naquele mesmo ano de 1937 —,  a Suprema Corte dos EUA infletiu bruscamente a tendência de sua série histórica de decisões. Ao examinar lei do Estado de Washington que fixava um salário mínimo para as mulheres (como outrora se viu em Adkins v. Children’s Hospital, sob a censura final da Suprema Corte), refutou a tese de inconstitucionalidade fundada na violação do devido processo substantivo (Emenda XIV), argumentando tratar-se de legítimo exercício do “policy power” estatal para a garantia de direitos sociais mínimos.
Na dicção do Justice Huges<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, “[d]eprivation of liberty to contract is forbidden by the Constitution if without due process of law, but restraint or regulation of this liberty, if reasonable in relation to its subject and if adopted for the protection of the community against evils menacing the health, safety, morals and welfare of the people, is due process”. E, por outro lado, “[t]he State has a special interest in protecting women against employment contracts which through poor working conditions, long hours or scant wages may leave them inadequately supported and undermine their health; because: (1) The health of women is peculiarly related to the vigor of the race; (2) Women are especially liable to be overreached and exploited by unscrupulous employers; and (3) This exploitation and denial of a living wage is not only detrimental to the health and wellbeing of the women affected, but casts a direct burden for their support upon the community”. 
É realmente notável a inflexão discursiva, particularmente em relação aos teores das decisões prolatadas na fase anterior. O excerto acima ilustra com perfeição, ademais, o fenômeno que os constitucionalistas têm denominado de “mutação constitucional”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> (em relação ao texto da Emenda XIV). Superava-se, em definitivo a perspectiva “econômica” da tutela proporcionada pela “due process clause”, para debelar, por um lado, o ativismo judicial de fundo ultraliberal que obstaculizava as políticas do New Deal; e, por outro, para estendê-la (a tutela) a todo e qualquer direito fundamental consagrado na Constituição norte-americana — e com especial cautela para os “noneconomic rights” (até então negligenciados, no marco do devido processo, pela jurisprudência da Suprema Corte dos EUA), amiúde na perspectiva da “equal protection”, como já se anunciava em Buchanan v. Warley<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.  
A terceira fase, porém, é a que mais nos interessa.
Trataremos dela na próxima coluna, querido leitor. Até lá!
Gostou, caro amigo? Esse tema lhe interessa? Aponte outros que possam palpitar o seu coração: <a href="mailto:dunkel2015@gmail.com">dunkel2015@gmail.com</a>. E sobre tudo reflita, sempre. Você é réu do seu juízo!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre o teor desse mesmo julgado e suas repercussões sociais, com contextualização judicial e histórica, v. ainda Roger L. Rice, “Residential Segregation by Law: 1910-1917”, in The Journal of Southern History, Southern Historical Association, v. 34, n. 2 (May, 1968), pp. 179-199 (<a href="http://www.jstor.org/stable/2204656">http://www.jstor.org/stable/2204656</a>, acesso em 14.5.2023).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Nesse sentido, cf. David M. O’Brien, What process is due? Courts and science-policy disputes, New York, Russel Sage Foundation, 1987, p.111.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Mas a decisão foi, como se poderia intuir, francamente dividida. Com HUGHES votaram BRANDEIS, STONE, ROBERTS e CARDOZO (cinco votos). E com o voto dissidente (de SUTHERLAND), que mantinha a tendência anterior (do “economic due process”), votaram VAN DEVANTER, McREYNOLDS e BUTLER (quatro votos).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf., por todos, Gilmar Mendes et al., Curso..., p.130. Disso tudo não poderia haver exemplo mais exato que Roe v. Wade (aborto). 
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  A aproximação desses âmbitos de tutela constitucional chega, por exemplo, a Booling v. Sharte (347 U.S. 497, 1954).

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JOTA

Breves reflexões a partir do caso norte-americano

O devido processo legal como concretização do direito à privacidade

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