Desde o advento da Reforma do Poder Judiciário, com a Emenda Constitucional nº 45/2004, passou-se a entender que, para o julgamento de mérito dos ditos dissídios coletivos de natureza econômica (i.e., aqueles em que a Justiça do Trabalho efetivamente emprega o seu poder normativo, fixando novas condições de trabalho para trabalhadores e empregadores, em caráter imperativo, geral, abstrato e bilateralmente atributivo), exigir-se-ia das partes coletivas, no campo procedimental, um inaudito “comum acordo”.

Na exata expressão do art. 114, §2º, da Constituição, “[r]ecusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente” (g.n.).

Desde então, muitas águas doutrinárias se passaram sob a ponte do art. 114, §2º, da CRFB; e, da mesma maneira, a jurisprudência trabalhista se esforçou sobremaneira para extrair, do texto normativo, a melhor hipótese de regência para os conflitos coletivos de trabalho. A E. Seção de Dissídios Coletivos do C. Tribunal Superior do Trabalho, em particular, tem amadurecido o tema, com zelo e reflexão, há exatos dezesseis anos. Evoluiu-se, sem dúvida, para além da letra fria do texto. Mas talvez ainda haja uma vereda a trilhar.

Vejamos.

Se o Direito é uma ciência – como todos insistimos em afirmar (e apenas isso mereceria uma volumosa tese de filosofia) –, seus conceitos e sentidos devem harmonizar-se internamente. Na álgebra, os estudos de derivadas e integrais não podem ignorar o conceito de limites; na física, as lições de gravitação não são compreensíveis sem as premissas da dinâmica; e assim sucessivamente. Na ciência jurídica não poderá ser diferente.

Nessa alheta, se o art. 187 do Código Civil proscreve o abuso de direito – e o faz com evidente ancoragem constitucional (na tutela da boa-fé, na higidez dos contratos, na salvaguarda do ato jurídico perfeito, na dignidade da pessoa humana etc.) –, está claro que afirmar a constitucionalidade do comum acordo, a reboque do precitado art. 114, §2º, não pode significar convalidar o abuso do direito, em hipótese alguma.

Noutras palavras, para negar o comum acordo e recusar ao “ex adverso” o acesso ao poder normativo da Justiça do Trabalho, deve existir motivo firme na ordem jurídica; não uma mera recusa formal e emulatória, sem base em qualquer consideração de ordem material, econômica ou social.

Eis a nossa premissa: o agir das partes nos conflitos coletivos de trabalho deve ser pautado pela boa-fé, como há de ser o agir em sociedade, em qualquer circunstância; e não se entende ou admite que, no sentido contrário, tolere-se a recusa do “mútuo acordo” fora da sua genuína função social, de modo a “excede[r] manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CC, art. 186). Cabe pensar, pois, a validade da recusa ao comum acordo na perspectiva da funcionalidade do instituto (e já não apenas da sua estrutura).

Se é assim, o preceito do art. 114, §2º, da CF não pode ser lido de modo isolado; ao contrário, deve ser compreendido em conjunto com o todo da Constituição e à luz das atuais dinâmicas sociais, deixando ao largo exegeses presas à estrita literalidade. Na tarefa de estabelecer o sentido e o alcance do preceito, o intérprete não pode magoar o espírito da Magna Carta, nem tampouco se afastar sensivelmente dele.

Em tal direção caminha, a propósito, a manifestação do Ministério Público no RE 1.002.295/RJ, no sentido de que do referido art. 114, §2º, da Carta não se pode extrair solução jurídica tendente à exclusão do acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV).

Antes, deve-se reconhecer ali tão somente uma condição de procedibilidade específica da ação de dissídio coletivo de natureza econômica, que não se exclui quando a negativa de uma das partes tem propósito manifestamente emulatório ou protelatório.

Além disso, como também se consignou naquele parecer, a solução de dissídio coletivo não constitui atividade jurisdicional típica, já que a sentença normativa – que, repise-se, dispõe sobre novas condições de trabalho nas relações entre trabalhadores e empregadores – mais se aproxima da atividade legislativa, em vários aspectos.

Por isso mesmo, não se pode exigir tanto rigor formal, do ponto de vista processualístico, para que o dissídio coletivo tramite e culmine em uma sentença normativa. Na dúvida fundada, deve-se resolver em favor da intervenção do Estado-juiz (e não o oposto), porque o que está em jogo vai além da esfera privatística dos interesses individuais.

Daí porque, nessa ordem de ideias, estabelecer uma condição potestativa para o processamento dos dissídios coletivos de natureza econômica significa criar um obstáculo praticamente irremovível para o acesso à jurisdição, em afronta à garantia do art. 5º, XXXV, da Constituição.

A prevalecer tal entendimento, fere-se de morte a própria capacidade institucional de pacificação social da Justiça do Trabalho, como ainda algumas das características elementares da jurisdição estatal – a sua imperatividade e a sua substitutividade –, já que uma das partes do conflito coletivo poderia, “sponte sua”, escapar do prumo judicial e se blindar indefinidamente da atuação do Estado-juiz (ressalvados, por óbvio, os casos de atividades essenciais, “si et quando” presentes os requisitos do art. 114, §3º, da CRFB).

O conflito coletivo poderia, a rigor, eternizar-se, pela pura e exclusiva vontade de uma empresa ou sindicato, ainda que “vazia” (i.e., sem razão jurídica, social ou econômica relevante, a não ser o mero desejo de emulação).

Assim, vale insistir na indagação: conforma-se ao princípio da boa-fé (CC, art. 422) e ao princípio da solidariedade (CRFB, art. 3º, I), numa relação que perdura no tempo – o que, por si só, implica em dever de cooperação recíproca –, a recusa, pura e simples (sem motivo, injustificada) ao predito “comum acordo” para a instauração de instância perante o tribunal?

A parte coletiva (e notadamente as empresas e sindicatos patronais) poderá, por interesse pungentemente egoísta, negar-se a resolver o impasse e também obstaculizar que o Estado-juiz o faça?

É certo que a exigência do comum acordo está no texto constitucional, como já apontado (CRFB, art. 114, §2º); mas o preceito não deverá ser compatibilizado, em linha de concordância prática (K. HESSE), com a vedação do abuso do direito, igualmente constitucionalizada (vejam-se, e.g., art. 5º, XXXIV, “a”, LXVIII e LXIX, art. 9º, §2º, art. 14, §§ 9º e 10, art. 55, §1º, art. 71, IX, art. 173, §4º, art. 227, §4º etc.)?

Mais: resistir emulativamente à jurisdição atende aos fins da ordem jurídica positiva, em seus propósitos de pacificação e harmonia da existência em sociedade?

Vale lembrar, ademais, que o Direito também tem por função, ainda que mediata (mas nem por isso negligenciável), legar às futuras gerações o pensamento daquilo que, em determinada época, certa sociedade consolidou eticamente, inclusive quanto às pessoas que viveram do seu trabalho, macro e micrologicamente.

Nessa linha de ideias, tendo em conta os atuais pruridos do próprio Direito Civil (e, por eles, a provável evolução de todos os ramos do direito privado), parece correto afirmar que, se a recusa ao comum acordo puder ser hoje compreendida como algo que fique apenas ao alvedrio de tal ou qual empregador (ou à sua representação coletiva), em viés sentidamente individualista, o Direito de agora será objeto de duro reproche pelos que virão, inclusive à vista das perdas e tensões que se acumularão ao longo de conflitos desarrazoadamente prolongados no tempo.

Reproche que, aliás, atualmente verbalizamos em relação aos tempos que nos antecederam, dos horrores da 1ª Revolução Industrial (do “sweating system”, do trabalho infantil generalizado e da sinistralidade descontrolada), ou mesmo antes (com a “legalidade” da mão-de-obra apresada e escravizada), quando o Direito do Trabalho sequer existia, dogmática ou legislativamente.

Eis porque a Justiça do Trabalho deve promover essa reflexão, até mesmo para a sua afirmação institucional em perspectiva história. Quem interpreta se revela. Como vamos construir a norma que emana do art. 114, §2º, da CRFB desnudará o que pensamos e o quanto nos preocupamos com o homem-que-vive-do-seu-trabalho (com toda a sua circunstância, como diria Ortega y Gasset: o seu sustento e de sua família, a formação de seus filhos, a condição de melhoria progressiva de sua condição social).

Esses aspectos, que impactam fortemente no plano individual, podem ser condicionados ao exclusivo talante de uma das partes no conflito coletivo? Ou tal entendimento significa conferir ao “comum acordo” contornos hermenêuticos incompatíveis com o seu fim econômico e social – a saber, o de coibir intervenção judicial excessiva nos conflitos coletivos (a reboque do próprio art. 8º, I, da CRFB) –, ou mesmo com o primado da boa-fé (CC, art. 187)?

E, em relação à boa-fé e à sua configuração jurídico-positiva (CC, art. 422), semelhante entendimento não significaria ignorar a tutela jurídica da confiança, se por um lado se cobra do trabalhador, cada vez mais, envolvimento, dedicação e lealdade para com seu contratante, e, por outro, negar-se-ia ao seu sindicato, que lhe verbaliza as aspirações, a possibilidade de encaminhar soluções satisfatórias, a tempo e modo, para as respectivas demandas coletivas?

A nosso ver, a resposta é óbvia: a bem da boa-fé objetiva, da vedação do abuso de direito e da proteção da confiança devida, a recusa ao comum acordo, para os efeitos do art. 114, §2º, da CRFB, não pode ser “vazia”. A ser vazia, estaremos diante do que, em boa doutrina, identifica-se como desequilíbrio no exercício das posições contratuais; ou, na dicção de MENEZES CORDEIRO, “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem” (CORDEIRO, António Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2011. p.857).

A solução constitucionalmente adequada para os conflitos coletivos passa por negociações prévias que, frustradas, em algum momento deverão ser submetidas ao Poder Judiciário; e tal submissão não poderia ficar ao estrito talante do empregador, que pode recusá-la sem qualquer motivação séria.

Pode-se ir além. Ainda no tema da boa-fé objetiva, CÉSAR FIUZA pondera que “[se] [e]spera [...] que cada um de nós não faça aos outros aquilo que não desejamos para nós mesmos” (FIUZA, César. Para uma compreensão integral do abuso de direito no contexto da responsabilidade delitual e da boa-fé objetiva. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de (coord.). Direito Civil: Princípios jurídicos no direito privado: Atualidades III. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009, p. 371).

Se bem pensarmos, é quase uma premissa cristã (João, 13:34). Naturalmente, a curiosidade humana levaria a indagar: uma empresa, ao procurar o sindicato representante de seus empregados para resolver algo de seu interesse, aceitaria a hipótese de que, malogradas as negociações, a respectiva solução, em sede judicial, dependesse exclusivamente da vontade da entidade sindical? O critério da absoluta potestatividade pode valer para um e para outro não, ou caberá generalizar a exigência em maiores latitude e casos? Uma singela análise kantiana – em torno dos imperativos categóricos e das condutas que podem ou não ser universalizadas – já bem revelaria, sem grande esforço, o absurdo desse caminho.

A recusa egoísta e vazia ao comum acordo, se permitida sem fundados motivos a embasá-la, faz com que ressoe em nossos ouvidos a aguda observação de Osvaldo ROCHA TORRES:

“O homem é considerado diferente das outras criaturas do universo por possuir a capacidade de reflexão. Os animais agem por instinto, mas o homo sapiens pensa e, por meio da reflexão, isto é, da projeção de sua imagem no espelho, tem capacidade de discernimento, escolha, análise. [...] Todavia, a realidade nos parece diferente quando vemos um homem cada vez mais intimista e egoísta. Apenas vive em sociedade, dela participa com objetivos claros de buscar tirar proveito e não de compartilhar.”

(TORRES, Osvaldo Rocha. Do princípio da solidariedade às determinações do termo social para uma teoria da interpretação no direito privado. In: FIUZA, César et. al. Op. cit., p. 383)

Volta ao nosso palco, por essa via, o princípio da solidariedade social (CRFB, artigo 3º, I); e, por essa via, a conhecida advertência de BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS: “Solidariedade não é palavra vã”. Ou, ainda, com BODIN DE MORAES: “a solidariedade social, na juridicizada sociedade contemporânea, já não pode ser considerada como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas, tendo-se tornado um princípio geral do ordenamento jurídico, dotado de completa força normativa e capaz de tutelar o respeito devido a cada um” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 49-50).

Negar o assentimento à instauração de instância por emulação ou mero capricho é, pois, conduta que, à toda evidência, tampouco se coaduna com a norma-princípio constitucional da solidariedade. A resistência vazia em nada combina com o espírito da dita “Constituição cidadã”, mesmo porque o ser “cidadã” já leva a que se tenha por necessários o diálogo e a escuta ativa como pilares procedimentais incontornáveis, especialmente se o que está em jogo é o direito fundamental de acesso à Justiça. A empresa ou o sindicato patronal poderá, sim, por essa vereda, obstar a judicialização do conflito coletivo, nos lindes do art. 114, §2º, da CRFB; mas somente se houver motivação explícita e minimamente razoável para a recusa ao comum acordo.

A não ser assim, pela via reversa, estaremos diante de quadros mais ou menos explícitos de abuso de direito, o que permitirá ao tribunal, pela via do art. 187 do Código Civil, superar o óbice procedimental e conhecer do dissídio coletivo. A isso se chega, a propósito, pelas balizas conceituais que a própria doutrina já construiu a propósito desse fato jurídico.

Assim, e.g., PERLINGIERI observa que, “[n]o ordenamento moderno, o interesse é tutelado se, e enquanto for conforme não apenas ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte das hipóteses, o interesse faz nascer uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações, ônus” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 2. ed, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 121).

CARDOSO, por sua vez, bem aponta que, “[n]uma perspectiva civil-constitucional, limitam o exercício do direito todos os interesses merecedores de tutela em jogo numa determinada situação jurídica, na qual o direito se insere, conforme a estipulação valorativa do legislador, máxime do constituinte. [...] O direito encontra, dessa forma, limites na sua função social, em vista da qual veio a ser previsto e assegurado pelo ordenamento, não em favor do titular considerado isolado e egoisticamente, mas em benefício da sociedade” (CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do direito na perspectiva civil-constitucional. In: MORAES, op. cit., p. 87-88).

O que se arremata, enfim, com BODIN DE MORAES (citada por CARDOSO à p. 88): “O problema do abuso diz respeito, propriamente, à comparação de interesses que estão em conflito, tanto no desenvolvimento de uma determinada relação jurídica quanto na regulamentação dos interesses privados, quando a prevalência há de ser, então, atribuída ao interesse consentâneo com as finalidades sociais da norma de tutela e excluído aquele que se manifesta despido de legítima motivação”.

É isto: o “comum acordo” não está previsto no art. 114, §2º, da CRFB para a mera dileção de empregadores e sindicados patronais. Há uma razão sistêmica de ser, ligada ao tipo de tutela social que animou a norma (a saber, o da mínima intervenção judicial em conflitos coletivos). Naquilo em que a recusa já não atenda a essa função social, mas antes sirva para assegurar ao “ex adverso” uma condição potestativa de nenhuma intervenção judicial, ingressará na esfera do abuso de direito.

Tudo, pois, para concluir que a norma-regra do art. 114, §2º, da Constituição, quanto à exigência do comum acordo como condição de procedibilidade do dissídio nos conflitos coletivos de natureza econômica, introduziu no sistema jurídico-trabalhista brasileiro um novo elemento, válido e eficaz, que temperou o poder normativo da Justiça do Trabalho; e nem poderia ser diferente, porque a constitucionalidade do preceito já foi estabelecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal (no já citado RE 1.002.295/RJ, j. 22.9.2020).

Essa validade, porém, pressupõe fundamentada justificativa para a recusa externada, a bem da interpretação harmônica do ordenamento jurídico em vigor. O que, por fim, termina por nos remeter à sabedoria do insuperável empirista JOHN LOCKE, em obra menos conhecida de sua lavra (“An essay concerning human understanding”, 1689). Disse LOCKE: “Sempre considerei as ações dos homens os melhores intérpretes de seus pensamentos”...

Que seja assim, também na sociologia – e no direito – dos conflitos.

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Eis a coluna do mês, caro leitor, sobre um tema que, a nosso ver, está merecendo uma maior atenção da doutrina e dos tribunais brasileiros. O que lhe parece? Quer sugerir outros temas? Sugira: dunkel2015@gmail.com. Você é réu do seu juízo.

O 'comum acordo' na Justiça do Trabalho e o acesso à Justiça: sensibilizando o olhar

Talvez ainda haja uma vereda a trilhar no tema