Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Ana Paula Miskulin

Seguimos, caro leitor, com a nossa <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/lei-14-297-22-entregadores-de-aplicativos-ainda-estao-protegidos-24062022">trilogia </a>sobre a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14297.htm">Lei 14.297, de 5 de janeiro de 2022</a>, que “[d]ispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19”. A isto, pois.
Não é novidade para ninguém que a pandemia intensificou a utilização das tecnologias de informação e comunicação e nos revelou a possibilidade de realizar de forma telepresencial diversas atividades que antes só fazíamos pessoalmente.
Um dos benefícios que o distanciamento social nos impôs foi a comodidade de fazer compras, trabalhar, estudar e nos relacionar, sem sair de casa e, assim, conseguir conciliar atividades profissionais com atividades pessoais.
Por outro lado, não é exagero dizer que, para que essa mudança dos hábitos de vida se tornasse possível durante o período pandêmico, foi fator determinante o indispensável serviço dos trabalhadores intermediados por aplicativos, especialmente o dos entregadores, cuja atividade inclusive foi reconhecida como essencial pelo <a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%2010.282-2020?OpenDocument">Decreto</a><a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%2010.282-2020?OpenDocument"> nº 10.282, de 20 de março de 2020</a>.
E foi precisamente nesse contexto que o PL 1665/2020 foi apresentado ao Parlamento, no dia 7 de abril de 2020, originando a Lei 14.297/2022, ora sob comento.
Embora o avanço legislativo tenha sido muito tímido, diante dos poucos direitos concedidos à categoria (e voltaremos a tratar disso), a pior característica da lei foi o seu marco temporal reduzido. Isso porque ela menciona em seu artigo 1º, parágrafo único, que “as medidas previstas nesta Lei devem ser asseguradas até que seja declarado o término da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/espin">Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin)</a> em decorrência da infecção humana pelo coronavírus Sars-CoV-2”.
Mas como poderiam o direito de acesso a banheiros e a água potável se restringirem apenas ao período de emergência em saúde pública? Como pode o dever de informação e transparência sobre as hipóteses de bloqueio, de suspensão ou de exclusão da conta do entregador vigorar apenas durante esse período? E o direito ao seguro contra acidentes? Será razoável supor que, após o período de emergência em saúde pública, o entregador não estará mais estará sujeito a ocorrência de sinistros? De um modo geral, poderíamos afirmar, com convicção, serem as limitações supra constitucionalmente razoáveis/proporcionais?
A resposta é obviamente negativa. Nada disso é plausível e tampouco se justifica. 
A uma porque, sem levar em conta as divergências sobre a natureza jurídica dessas relações de trabalho (autonomia vs. subordinação), é inegável que a atividade dos entregadores é um trabalho produtivo; e, mais, trabalho sob dependência econômica (ainda que não se vislumbre, à primeira mirada, “subordinação” de corte fordista-taylorista — como, por óbvio, sequer seria encontradiço, se estamos tratando de uma típica contratação dos novos espectros engendrados pela “gig economy”, na linha do que M. R. PALMA RAMALHO designou outrora como “contratos-lixo”).
Nessa medida, trata-se de atividade indispensável para a subsistência dos trabalhadores; e, se é assim, reconhecer a atividade dos entregadores como trabalho sob dependência econômica é o ponto de partida para uma construção hermenêutico-constitucional que não permita, em qualquer contexto, o prevalecimento do arbítrio de uma das partes, dando-lhe poder absoluto para alterar unilateralmente o contrato e ditar as regras do jogo. É igualmente a condição hermenêutica básica para se reconhecer, a esses trabalhadores — ainda se não forem “subordinados” à maneira clássica — direitos sociais fundamentais mínimos, como o direito à vida e à integridade física (CRFB, art. 5º, caput), o direito à saúde (CRFB, art. 196), o direito à dignidade (CRFB, art. 1º, III), o direito redução dos riscos inerentes ao trabalho (CRFB, art. 7º, XXII), o direito à desconexão (CRFB, art. 7º, XIII), etc.
O trabalho humano, com efeito, é objeto da Declaração Universal dos Direitos Humanos; e, nos termos de seu artigo 23, deve reunir condições satisfatórias para o seu  desenvolvimento. A valorização do trabalho humano constitui, igualmente, uma das bases da ordem econômica brasileira (CRFB, art. 170). O trabalho decente, ademais, está na pauta da Agenda 2030 da ONU, especificamente no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 8.
Para quem vive de fazer entregas e passa a maior parte dos seus dias retirando mercadorias entre um estabelecimento e outro, acomodando-se às ordens de um aplicativo que lhe indica para onde deve seguir — eis, afinal, a subordinação em sentido algorítmico —, o acesso à água potável e a sanitários evidentemente está no rol de requisitos indispensáveis a um trabalho decente.
E se, para realizar esse trabalho, o entregador se utiliza de motocicleta ou bicicleta, aventurando-se no trânsito caótico das cidades grandes, também se vislumbra como direito mínimo o de ter um seguro para acidentes, independentemente de crises sanitárias e afins, até porque, se não há nenhum tipo de cobertura civil, o custo econômico com a assistência social e os cuidados de saúde será totalmente transferido para a sociedade civil, por intermédio do Regime Geral de Seguridade Social e do Sistema Único de Saúde.
Finalmente, e não menos importante, saber quais são as hipóteses que justificam a suspensão, o bloqueio e/ou a extinção da conta do trabalhador de uma plataforma eletrônica é um direito igualmente fundamental, que não pode ser “transitório” e em nada se relaciona com a persistência do estado de emergência em saúde pública. Trata-se da chamada transparência algorítmica, cujas dimensões já exploramos em outros estudos. Aliás, se não pelo ângulo da dignidade humana ou da boa-fé objetiva que norteia os contratos em geral (CC, art. 422), tais obrigações de transparência impõem-se  pelo dever insculpido no artigo 20 da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">Lei Geral de Proteção de Dados</a>, segundo o qual “o titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade”. O preceito é seguramente aplicável a essa espécie, a despeito da própria vigência da Lei 14.297/2022. Aliás, recentemente houve decisão nesse sentido, a determinar que a conta de uma trabalhadora por aplicativo fosse reativada, sob o fundamento de que a motivação da decisão de exclusão da conta não restou esclarecida (TRT 4, Processo nº 0020882-91.2021.5.04.0201).
Finalmente, cabe recordar que o Brasil é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, cujo artigo 2º, n. 1, reconhece a obrigação dos Estados-membros de adotar medidas, inclusive legislativas, para assegurar “progressivamente” o exercício pleno dos direitos econômicos, sociais e culturais nele reconhecidos. Na mesma direção segue o artigo 26 do Pacto de San José da Costa Rica, de que o Estado brasileiro é igualmente signatário, positivando internacionalmente os princípios da progressividade e da não regressividade dos direitos sociais (= proibição do retrocesso social). E, em paralelo, o art. 4.º do Protocolo de San Salvador consagra o princípio “pro homine”, ao dispor que “não se poderá restringir ou limitar nenhum dos direitos reconhecidos ou vigentes num Estado em virtude de sua legislação interna ou de convenções internacionais, sob o pretexto de que este protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau”.
De outra parte, em relação ao direito do artigo 4º da Lei 14.297/2022 — pelo qual “[a] empresa de aplicativo de entrega deve assegurar ao entregador afastado em razão de infecção pelo coronavírus responsável pela covid-19 assistência financeira pelo período de 15 (quinze) dias, o qual pode ser prorrogado por mais 2 (dois) períodos de 15 (quinze) dias, mediante apresentação do comprovante ou do laudo médico a que se refere o § 2º deste artigo” —, impende reconhecer que a pandemia da Covid 19 não “terminou” propriamente, nem com grande esforço de imaginação. Em 22 de julho, o Brasil registrava 276 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, totalizando 678.147 desde o início da pandemia; com isso, a média móvel de mortes dos últimos 7 dias era de 228, com uma variação foi de -9% em comparação à média de 14 dias atrás; ainda assim, uma média relativamente elevada. 
Não por outra razão, conquanto o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-saude">Ministério da Saúde</a> tenha “decretado” o fim da ESPIN em 22 de abril p.p. (pela Portaria GM/MS n. 913/2022, subscrita pelo Ministro Marcelo Queiroga, como apontado na coluna de junho), é certo que a Organização Mundial da Saúde havia comunicado, poucos dias antes (em 13 de abril), a que a pandemia de Covid-19 continuava a ser uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional”, considerando-se a evolução dos números em todo o planeta e os próprios sucessos (e insucessos) das ciências médicas. E segue a ser assim: declaração similar veio a lume muito recentemente, neste mês de julho, pela palavra do presidente da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Diante disso, a bem da própria saúde pública (CRFB, art. 196) — e para que o trabalhador não seja sacrificado, nem o RGPS sobrecarregado —, como à vista dos mesmos argumentos jurídico-positivos anteriormente expendidos, entendemos razoável supor que os entregadores por aplicativos — e, por analogia, outros trabalhadores por aplicativos (“on demand”) economicamente dependentes — seguem com o direito de exigir das respectivas empresas de aplicativo a assistência financeira do art. 4º da Lei 14.297/2022, mediante aprovação de comprovante ou laudo médico, se tiverem de se afastar do trabalho em razão dos sintomas da Covid 19. A rigor, tal proteção deverá se postergar até o encerramento da ESPII; e não antes.
Daí porque, malgrado a natureza aparentemente transitória da Lei 14.297/2022 (pela sua própria ementa), convém entender que o direito de acesso a água e a banheiro, o direito ao seguro contra acidentes, o direito à informação e o próprio direito à compensação econômica (ao menos durante a vigência da ESPII) seguem em vigor no Brasil, mesmo após a decretação ministerial do fim da ESPIN (Portaria GM/MS n. 913/2022), como vimos na coluna anterior. São, todos, direitos inerentes à dignidade humana, predicamentos do trabalho decente e, como tal, determinantes para que o trabalho dos entregadores não se reduza à mesma natureza mercantil das mercadorias que diuturnamente fazem chegar aos consumidores. Não são “res”, nem “instrumenta”. São pessoas.
*
O que achou, querido leitor? Dê o seu feedback enviando mensagem para <a href="mailto:dunkel2015@gmail.com">dunkel2015@gmail.com</a>. Você é réu do seu juízo! Na próxima coluna, a última parte das nossas considerações em torno da Lei 14.297/2022. Até lá.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> OLEA, M. A; BAAMONDE, M. E. Derecho del Trabajo. Madrid: Civitas, 2000, passim.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Miskulin, A.P.S.C. Aplicativos e Direito do Trabalho a era dos dados controlados por algoritmo. São Paulo Juspodivum, 2021, passim.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cfr. <a href="https://www.who.int/news/item/13-04-2022-statement-on-the-eleventh-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-coronavirus-disease-(Covid-19)-pandemic">https://www.who.int/news/item/13-04-2022-statement-on-the-eleventh-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-coronavirus-disease-(Covid-19)-pandemic</a>. Acesso em: 29.7.2022.

entregadores

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JOTA

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