Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Ana Paula Miskulin

Apresentado em 7 de abril de 2020 por diversos parlamentares do PSOL, o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2244218">PL 1665/2020</a> pretendeu cuidar da condição jurídica dos entregadores de mercadorias em suas relações com as plataformas de “intermediação” dos respectivos serviços e, bem assim, com os estabelecimentos “clientes”. Foi finalmente aprovado, sancionado e promulgado como Lei 14.297/2022, <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.297-de-5-de-janeiro-de-2022-372163123">com publicação no DOU de 6 de janeiro de 2022</a>.
Pois bem. Inicialmente concebida para conferir direitos aos “entregadores que prestam serviços a aplicativos de entrega durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do coronavírus (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/covid-19">Covid-19</a>)”, o texto legal chegou tarde (o que não o dispensa, em absoluto). E chegou falho, porque rigorosamente incompleto. Deixa evidente, em síntese, a dificuldade do Parlamento em acompanhar os temas inerentes à dita “gig economy” – ou, diriam alguns, à “economia de plataformas” – e, portanto, em atualizar as fontes formais do direito e adaptá-las às necessidades dos novos fenômenos socioeconômicos.
À crítica, pois, para que melhores leis possam ser editadas a respeito.
A Lei 14.297/2022 peca inicialmente por seu caráter temporário – ao menos em boa parte de seu texto –, como também pela restrição de seus destinatários e pela regulação ínfima que entrega aos envolvidos, sem lhes assegurar o “minimum minimorum” de direitos sociais. Não equaciona, ademais, os impactos coletivos do problema, em detrimento de toda a sociedade civil, que há anos espera uma solução legislativa para a profunda insegurança jurídica que cerca os trabalhadores por aplicativos.
Nada obstante, traduz alguns poucos progressos que, por mínimos que sejam, não podem ser desprezados. Assim, e.g., garanta-se – em pleno século 21 (!) – o direito de os entregadores terem acesso a banheiros e à água potável, como obrigação das próprias empresas-clientes dos respectivos aplicativos. Garante-se-lhes o direito a um seguro contra acidentes, sem franquia, pelas empresas de aplicativos. E, bem assim, garante-se o direito de os entregadores perceberem, das empresas de aplicativos, uma “assistência financeira”, calculada de acordo com a média dos três últimos pagamentos mensais do entregador, para os períodos de afastamento em razão de infecção pelo Sars-Cov-2 (por 15 dias, prorrogáveis por mais dois períodos).
Vejamos com maior vagar, começando pela questão mais candente: a duração dos efeitos da lei.
<h3>Uma lei temporária tardia </h3>
O PL 1665/2020 foi apresentado ao Parlamento no dia 7 de abril de 2020, bem no início da pandemia da Covid-19, o que explica, em boa medida, a sua falsa percepção do problema quanto à dimensão temporal. Foi protocolado, na verdade, poucos dias após a publicação do Decreto Legislativo 6, de 18 de março de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil.
Naquele momento de incertezas, talvez se justificasse a adoção de medidas sanitárias provisórias para proteger os entregadores, a vigorar apenas durante o estado de calamidade pública. No entanto, no momento atual, passados quase dois anos do início da pandemia, as medidas de emergência, conquanto relevantes, já não se justificam mais: seja pelas mudanças no cenário atual (com várias atividades retomadas paulatinamente), seja pela constatação de que a pandemia apenas incrementou ensejos anteriores de agressão sub-reptícia a direitos humanos comezinhos (como o acesso a sanitários e a água potável, as medidas preventivas em saúde e segurança no trabalho e a informação mínima sobre os motivos de bloqueio ou exclusão de conta em plataforma), a política das intervenções emergenciais – temporárias por natureza (vejam-se, e.g., as Medidas Provisórias 927, 936, 944 e 946, todas de 2020)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> – revela-se, neste momento, por tudo insuficiente.
A legislação de trato tuitivo deve se dedicar, com primazia, às necessidades permanentes dos trabalhadores em geral (para além, portanto, do universo restrito dos trabalhadores subordinados, i.e., dos empregadores), que não guardam relação alguma com a preexistência/subsistência de uma pandemia. E, para tanto, não podem ser temporárias.
Nesse diapasão, aliás, interessa apontar que a redação original do PL 1665/2020 foi alterada, durante a tramitação legislativa, para que a adstrição temporal originária –  vigência “durante o estado de calamidade pública” (que, para o bem ou para o mal, estabeleceu-se com marcos cronológicos claros a partir do Decreto Legislativo 6/2020) – fosse substituída por outro parâmetro, mais fluido e incerto.
O texto sancionado refere, tanto na ementa da lei como no caput do artigo 1º, a aplicabilidade das medidas de proteção por ele asseguradas “durante a vigência, no território nacional, da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela Covid-19”. Assim, será necessário definir o que se deve entender e até quando se prolongará o dito período de “emergência de saúde pública decorrente do coronavírus”, bem como quais serão os reflexos da lei para as situações posteriores.
Nesse particular, dois elementos devem merecer particular atenção.
No plano internacional, há que ver os andamentos da matéria junto aos órgãos oficiais do Sistema das Nações Unidas. Com efeito, a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020.
Poucos dias depois, no plano nacional, o Ministério da Saúde brasileiro também o fez, por intermédio da Portaria n<a href="https://legislacao.presidencia.gov.br/atos?tipo=PRT&amp;numero=188&amp;ano=2020&amp;data=03/02/2020&amp;ato=9ecUTW61EMZpWT815">º 188, de 3 de fevereiro de 2020</a>,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que ainda criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) – então referido como “mecanismo nacional da gestão coordenada da reposta à emergência no âmbito nacional” (artigo 2º) –, sob a responsabilidade da Secretaria de Vigilância em Saúde, e lhe incumbiu, nos termos do artigo 3º, V, “d”, a competência de propor ao ministro da Saúde, justificadamente, o encerramento da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/espin">ESPIN</a>).
Ainda no plano nacional, mas na esfera judiciária, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) decidiu, na ADI 6.625/DF (da Rede Sustentabilidade), prorrogar a vigência das medidas de proteção sanitária contra a Covid-19, a despeito do término de vigência do Decreto Legislativo 6/2020, que teria apenas efeitos fiscais. Com efeito, em decisão plenária de 8.2.2021, referendando medida liminar cautelar do ministro Ricardo Lewandowski, assim se pronunciou o Excelso Pretório:
<blockquote class="jota-article__citation">"TUTELA DE URGÊNCIA EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONCESSÃO MONOCRÁTICA. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO PARA CONFERIR SOBREVIDA A MEDIDAS TERAPÊUTICAS E PROFILÁTICAS EXCEPCIONAIS PARA O ENFRENTAMENTO DA COVID-19. PROVIDÊNCIAS PREVISTAS NA LEI 13.979/2020 CUJA VIGÊNCIA FINDOU EM 31 DE DEZEMBRO DE 2020. RECRUDESCIMENTO DA PANDEMIA COM O DESENVOLVIMENTO DE NOVAS CEPAS VIRAIS. EMERGÊNCIA DE SAÚDE PÚBLICA QUE SE MANTÉM INALTERADA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO. CAUTELAR REFERENDADA PELO PLENÁRIO. I - A Lei 13.979/2020, com o propósito de enfrentar de maneira racional e tecnicamente adequada o surto pandêmico, permitiu que as autoridades adotassem, no âmbito das  respectivas competências, determinadas medidas profiláticas e terapêuticas. II – Embora a vigência da Lei 13.979/2020, de forma tecnicamente imperfeita, esteja vinculada àquela do Decreto Legislativo 6/2020, que decretou a calamidade pública para fins exclusivamente fiscais, vencendo em 31 de dezembro de 2020, não se pode excluir, neste juízo precário e efêmero, a conjectura segundo a qual a verdadeira intenção dos legisladores tenha sido a de manter as medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas naquele diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença. III - A prudência - amparada nos princípios da prevenção e da precaução, que devem reger as decisões em matéria de saúde pública - aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia. IV - Medida cautelar referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 8º da Lei 13.979/2020, com a redação dada pela Lei 14.035/2020, a fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos arts. 3º, 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E, 3º-F, 3º-G, 3º-H e 3º-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas". (STF, ADI 6.625/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 8/3/2021, Tribunal Pleno, publ. 12/4/2021).</blockquote>
É certo, portanto, que todas as medidas previstas na Lei 14.297/2022 seguiam em vigor, apesar das limitações do seu artigo 1º (e mesmo após o prazo fatal do Decreto Legislativo n. 6/2020), porque, para todos os efeitos, a “emergência de saúde pública” decorrente do novo coronavírus ainda vigorava, seja na perspectiva da OMS, seja na perspectiva do Ministério da Saúde (que até então não havia encerrado a ESPIN); e, ademais, todas as medidas sanitárias de proteção das pessoas contra o SARS-Cov-2 – incluídos entre tais pessoas, obviamente, os trabalhadores – seguiam igualmente vigentes, por determinação do Excelso Pretório, “pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença” (5ª lauda do voto).
Ocorre, porém, que, no plano nacional, a ESPIN terminou “oficialmente” em 22 de abril de 2022, com a assinatura da Portaria GM/MS n. 913/2022 pelo ministro Marcelo Queiroga. De acordo com o artigo 1º da referida portaria, “[f]ica declarado o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCov), de que tratava a Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020”. Não deveria ter acontecido, a nosso ver, notadamente porque a pandemia segue tendo criticidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Mas aconteceu.
Sendo assim, cabe agora indagar: e o que será da Lei 14.297/2022? Todos os direitos nela previstos (supra) já não são devidos aos entregadores de aplicativos, diante do que dispõe o seu artigo 1º, parágrafo único? Restaurantes-clientes já podem negar, aos entregadores, acesso a água potável ou a banheiros, porque já não está em vigor o artigo 6º, II e III da lei?
A nossa irônica provocação já sinaliza o nosso entendimento: seguramente, tais direitos ainda são devidos, até mesmo em razão da decisão do Eg. STF (ou de sua “ratio iuris”). Noutras palavras, os preceitos legais seguem em vigor, mormente para preservar um patamar de mínima civilidade.
Mas como pode ser assim?
É o que vamos explicar na próxima coluna.
Paciência, caro leitor! Você é réu do seu juízo!
Gostou do tema do mês? Seguiremos discutindo a Lei 14.297/2022, à maneira de comentários, nas próximas colunas, respeitando os limites deste espaço, mas também a sua necessidade de uma informação mais completa sobre essa “nova modalidade” de tutela trabalhista – que independe da natureza jurídica da relação (v. artigo 10), alcançando tanto o entregador empregado como o que seja supostamente um “trabalhador autônomo” (porque todos, indistintamente, estão em situação de inegável condição de vulnerabilidade/dependência econômica) –, que tende a ser cada vez mais presente e relevante nos próximos anos.
Essa é, aliás, a principal fonte das nossas inquietações: a dita “gig economy” trará consigo um “gig labour law” (i.e., um direito do trabalho de “bicos”)? Estamos convictos de que não pode ser assim. E não pode ser, entre outras, por razões constitucionais, convencionais e éticas. Mas você, amigo leitor, o que acha? Responda, sugira, pondere, critique... sempre no endereço <a href="mailto:dunkel2015@gmail.com">dunkel2015@gmail.com</a>. Até o mês que vem!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Dessas todas – que compunham o chamado “Direito do Trabalho de Emergência” (ou, como chegamos a denominar, “Direito do Trabalho de exceção”, realçando as inconstitucionalidades que várias delas versaram) –, converteram-se em lei apenas a MP 944/2020 (Lei 10.043/2020, que “[i]nstitui o Programa Emergencial de Suporte a Empregos; altera as Leis n os 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e 13.999, de 18 de maio de 2020; e dá outras providências”) e a MP 936/2020, com alterações (Lei 14.020/2020, que “[i]nstitui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis nºs 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.101, de 19 de dezembro de 2000, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 10.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências”). Sobre as inconstitucionalidades dessa mesma MP 936/2020, em particular, cfr. FELICIANO, G. G.; BERNANDES, F.; TRINDADE, R. Sobre odisseias e portos seguros: a pandemia, a ADI 6.363/DF e o parecer da Fenaban. Migalhas. Migalhas de Peso, 15.4.2020. Disponível em: <a href="https://www.migalhas.com.br/depeso/324784/sobre-odisseias-e-portos-seguros--a-pandemia--a-adi-6-363-df-e-o-parecer-da-fenaban">https://www.migalhas.com.br/depeso/324784/sobre-odisseias-e-portos-seguros--a-pandemia--a-adi-6-363-df-e-o-parecer-da-fenaban</a>. Acesso em: 25.2.2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Revogada pela Portaria n. 913, de 22/4/2022, que referiremos logo a seguir.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ao tempo em que encerrávamos este primeiro estudo, em 21.6.2022, o Brasil computava 31,8 milhões de casos de contaminação pelo SARS-Cov-2,­ com tendência de alta. Tínhamos, à altura, mais de 669 mil mortos por Covid 19 no país. A média de casos novos, nos últimos sete dias, era de 37.298 (variação em 14 dias: 6%). Quatro meses antes, em 24.2.2022, a média de casos novos era de 95.899/dia, contra uma média de 92.731 casos novos/dia para os sete dias anteriores

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JOTA

Direitos previstos na lei já não são devidos aos entregadores com o fim da ESPIN?

Lei 14.297/22: Entregadores de aplicativos ainda estão protegidos?

Direitos previstos na Lei 14.297/22 já não são devidos aos entregadores de aplicativos depois do fim da ESPIN?