Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Nesta coluna de março, caro leitor, trataremos de um tema atualíssimo e, a médio e longo prazos, relevantíssimo: para onde devem ir as indenizações por danos morais coletivos ou sociais? Quem legitimamente deve se favorecer com tais valores?
Vejamos o porquê da atualidade. E, na sequência, o porquê da relevância.
No último dia 16 de fevereiro, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) a ADPF 944-DF, que pretende ver reconhecida a inconstitucionalidade das decisões judiciais que destinam indenizações (rectius: compensações) por danos morais coletivas e/ou danos sociais para fundos ou finalidades outras que não sejam aquelas previstas literalmente no art. 13 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm">Lei 7.347/1985</a> (Lei da Ação Civil Pública, doravante, LACP).
Na opinião da CNI, com­ efeito, essas destinações “atípicas” configurariam reprovável elemento de ativismo judicial, cabendo ao STF dar cobro dessa prática e determinar, com vinculatividade abstrata e eficácia “erga omnes”, a estrita aplicação dos dinheiros obtidos em condenações judiciais por danos morais coletivos ou sociais, no âmbito da Justiça do Trabalho, adstrita ao fundo do art. 13 da LACP; ou, se muito, ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/fat">FAT</a>), instituído pela Lei 7.998, de 11.1.1990 (art. 10).
O feito foi distribuído à ministra Rosa Weber e, até este momento, não houve apreciação liminar. É certo, porém, que se identifica uma importante resistência a destinações que não revertam aos fundos de defesa de direitos difusos (LACP, art. 13), federal ou estaduais, e/ou ao FAT, inclusive na jurisprudência (v., e.g., TST, RR 18543220105030111, rel. Min. Maria de Assis Calsing, j. 24/6/2015, 4ª Turma, publ. 26/6/2015).
Há, com todas as vênias, tanto naquele repto judicial como nesse pendor jurisprudencial mais restritivo, ao menos três equívocos — e, com eles, um grande retrocesso argumentativo — que devem ser trazidos à luz.
Em primeiro lugar, a ADPF não admitiria sequer conhecimento, porque viola o princípio da subsidiariedade, ínsito à regência processual das arguições de descumprimento de preceito fundamental, nos precisos termos da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm">Lei 9.882/1999</a>. Com efeito, tal ação de controle abstrato de constitucionalidade é de restritíssima via, eis que "a petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta lei ou for inepta” (art. 4º); e, na forma do respectivo parágrafo 1º, “[n]ão será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade". Ora, o cabimento ou não da destinação das indenizações por danos sociais e morais coletivos a determinado fundo, e a suficiência das respectivas  instâncias de gestão (i.e., se atreladas ou não a um “conselho federal”), são questões a serem aferidas caso a caso, sob o rigor da garantia do juiz natural, nas ações civis públicas e coletivas que reclamem tais compensações<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em segundo lugar, deve-se ter em conta que os preditos “fundos de defesa de interesses difusos”, previstos no art. 13 da LACP, não estão sequer completamente constituídos em todos os estados da Federação; e, de um modo geral, os usos previstos pelas respectivas regulamentações não dizem respeito, por exemplo, à saúde e à segurança do trabalho (ou, dir-se-á com melhor técnica e maior abrangência, ao meio ambiente do trabalho, ut art. 200, VIII, in fine, c.c. art. 225, caput, da CRFB).
Não raro, prestam-se a intervenções restaurativas no meio ambiente natural ou no patrimônio cultural brasileiro, por exemplo. Ora, a finalidade das “indenizações” de índole coletiva que se obtêm após o reconhecimento de danos ao meio ambiente — inclusive o do trabalho — é precisamente recuperar o bem jurídico coletivo, na sua especificidade ontológica; ou, se menos, minorar os impactos deletérios da atividade lesiva ou perturbadora. Essa é a razão, aliás, pela qual a Lei 12.288, de 20 de julho de 2010 (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm">Estatuto da Igualdade Racial</a>) introduziu, no precitado art. 13 da LACP, o seu atual parágrafo 2º.
Com efeito, é da melhor doutrina que todo dano merece uma reparação justa e, preferencialmente, passível de reverter fenomenicamente a situação criada (de lesão a um determinado bem jurídico) ao seu “status quo ante”, evitando-se a transformação maciça de todos os direitos em pecúnia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> (= patrimonialização); e essa é, a rigor, a ideia mais adequada de “reparação integral” que deve informar o tratamento jurídico dos danos difusos e coletivos.
E, justamente por isso, mesmo a destinação ao FAT termina sendo, ao mais das vezes, algo inservível para a recomposição do bem jurídico coletivo especificamente lesado ou ameaçado, quando estivermos tratando de direitos difusos e coletivos de cariz laboral. Imagine-se, p. ex., a hipótese de uma indenização por dano moral coletivo derivado da exploração de mão-de-obra análoga a de escravo (CP, art. 149); ou ainda a de uma indenização por dano social derivado do reiterado descumprimento das regras de saúde e segurança do trabalho impostas pela NR 18 para o setor da construção civil. Caso esses valores sejam revertidos para o FAT (Lei 7.998/1990, art. 11, V), servirão basicamente para custear benefícios previdenciários “lato sensu”, como são o seguro-desemprego (Lei 7.998/1990, arts. 3º e 4º) e a bolsa de (re)qualificação profissional (Lei 7.998/1990, art. 2º-A). Tais benefícios são concedidos difusamente, por todo o território nacional, de acordo com as políticas do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat).
Logo, é certo que, no final das contas, se destinados aos tais “fundos geridos por conselhos federais”, os recursos não beneficiarão própria e especialmente a comunidade ou o município diretamente afetado pela cooptação de trabalho escravo contemporâneo, no primeiro caso; ou tampouco a categoria profissional diretamente prejudicada (trabalhadores da construção civil), no segundo caso. A finalidade da indenização, que se alinha à ideia-força do princípio da “restitutio in integrum” — ainda que nem sempre se alcance a plena restauração (o que, diga-se claramente, é natural e aceitável, precisamente porque estamos lidando com uma norma-princípio, i.e., com um “Optmierungsgebot”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>) —, estará larga e severamente comprometida.
Em terceiro lugar, a impugnação judicial da CNI prefere desconhecer as lições da hermenêutica clássica em torno dos métodos de interpretação; neste caso, em especial, os métodos de interpretação histórica, sistemática e teleológica, que devem preferir à própria interpretação gramatical. Essa via de inteleção, a propósito, não é “facultativa”, nem pressupõe juízes mais “progressistas”; ao revés, deriva do expresso e positivo teor da legislação vigente: nos termos do Decreto-lei 4.657, de 4.9.1942 (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-introducao-as-normas-do-direito-brasileiro">Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro</a> – doravante, LINDB), “[n]a aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum”.
Ora, a interpretação histórica supõe que a fonte formal do direito seja interpretada de acordo com as condições do meio social e do momento em que a fonte foi elaborada, impondo um olhar para o passado. Já a interpretação teleológica requer, na direção do art. 5º da LINDB, que o intérprete ultrapasse os baremas da lógica formal e construa uma semântica que assegure o melhor proveito ao bem da vida ou ao interesse jurídico tutelado pela fonte.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> E a interpretação sistemática, enfim, busca construir objetivamente o sentido e o alcance da norma, no contexto do sistema jurídico-positivo em que ela se insere – com seus princípios, regras e valores (“mens legis”) —, relativizando a intelecção do legislador histórico (“mens legislatoris”).<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Para questões como a deste estudo, as duas últimas são as que devem prevalecer, considerando-se sobretudo o tempo considerável que medeia entre a publicação da LACP (1985) e o tempo presente: são praticamente 37 anos de evolução processual (com um <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/novo-cpc">novo CPC em 2015</a>) e de transformações institucionais (com a ressignificação da Justiça do Trabalho pela EC 45/2004) que não podiam ser sequer cogitadas em meados dos anos 1980.
Neste caso, é de rigor considerar que, em diversas hipóteses, o sistema legal brasileiro revela a estrita necessidade de que os ativos derivados de condenações por danos coletivos sirvam essencialmente à reparação/promoção dos próprios bens jurídicos coletivos lesados ou ameaçados.
É o que se dá com os danos ambientais, para os quais foram originalmente pensados para o(s) fundo(s) de defesa de interesses difusos do art. 13 da LACP; ou com os danos coletivos derivados de atos de discriminação ética, como dito há pouco, cujas indenizações também devem reverter para aquele(s) fundo(s) do art. 13 da LACP, mas com afetação específica às “ações de promoção de igualdade étnica, conforme definição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racional […] ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial estaduais ou locais” (LACP, art. 13, §2º), conforme a extensão geográfica do próprio dano; ou, ainda, para os danos coletivos derivados de ilícitos praticados contra crianças e adolescentes, cujas indenizações devem reverter para o Fundo da Criança e do Adolescente (FDCA).<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Ocorre, porém, que esse nível de especialização gerencial não se verifica (ainda) em todas as hipóteses-modelos de lesões a interesses difusos e coletivos; não há, por exemplo, um fundo para a promoção da saúde e da segurança do trabalho, ou um fundo para a promoção da liberdade sindical (e nem haverá, diante da atual resistência do próprio Poder Executivo federal — e, por consequência, de setores importantes do Congresso Nacional — à criação de “fundos autônomos” que impactem ou imobilizem parcialmente o orçamento da União)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Para situações como essas, a única maneira de se conferir coerência ao sistema jurídico-positivo e atender minimamente a finalidade da indenização judicialmente deferida, convergindo para o princípio da “restitutio in integrum” (e sua especificidade intrínseca), é admitir que o juiz ou tribunal, na condição de sujeito político concretizador das normas-princípios<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> (e revelador da capacidade de aprendizagem das normas constitucionais em geral)<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, possa estabelecer destinações especiais, sob balizas claras de gestão — o que não significa, registre-se, criar fundos “judiciais” a esmo, à base da caneta, sem diálogo interinstitucional e mínimas condições de viabilidade a longo prazo —, que atendam à especialidade do dano e sirvam à reparação/promoção específica do bem da vida lesado ou ameaçado.
Já se afirmou que o ato humano de julgar, nos foros e tribunais, dá-se por empréstimo divino. Jamais cheguei a tanto: a justiça dos homens é, para mim, genuinamente humana, como tem de ser, com todos os predicamentos inerentes à humanidade: é racionalizante, mas também intuitiva; é limitada e ocasionalmente falha, mas também pacificadora. Tanto mais pacificadora, aliás, quanto mais se aproxime dos valores subjacentes à norma jurídica. O que nos autoriza, com o perdão do clichê, ressignificar a máxima de Coríntios 2, 3: “A letra mata, mas o Espírito vivifica”. O art. 13 da LACP, nesse sentido, deve ser entendido além da sua letra, com vislumbres mais francos do seu espírito.
*
E então, querido leitor, o que achou? Concorda? Comente, aqui ou pelo email <a href="mailto:darkggf@uol.com.br">darkggf@uol.com.br</a>. Lembre-se: você é réu do seu juízo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> V., e.g., STF, ADPF 172-RJ (MC), rel. Min. Marco Aurélio Mello, Tribunal Pleno, j. 10.6.2009. V. ainda RTJ 184/373, RTJ 189/395.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> TRAMONTE, Marina Silva; MELHADO, Reginaldo; NATALI, Heiler Ivens de Souza. A inadequação da destinação de recursos obtidos pelo MPT ao Fundo de Amparo ao Trabalhador e sua utilização em ações de política pública social. Revista de Direito Público. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, v. 7, n. 1, p. 149-164, jan./abr. 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5433/1980-511X.2012v7n1p149. Acesso em: 8/3/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “Mandado de otimização”. Cf. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, pp.75-77 e 122-125.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> V., por todos, JUNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Interpretação. Revista AJURIS. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 16, n. 45, p.7 e ss., mar. 1989.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> V., e.g., LOBO, Jorge. Hermenêutica, interpretação e aplicação do Direito. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 72, p.125-146, abr./jun. 2019.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Lei 8.069/1990, art. 260.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Veja-se, p. ex., o caso do PL n. 6.786/2016 (que advém de anteprojeto elaborado no âmbito da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho., quando a presidimos, e que “[r]egulamenta o art. 97 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), no âmbito da União, cria o Fundo de Modernização do Poder Judiciário da União e dá outras providências”):  conquanto se trate de iniciativa legislativa destinada a basicamente regulamentar um fundo já previsto pela legislação em vigor (CPC/2015, art. 97), a resistência à sua tramitação é de tal ordem que, até o presente momento, o projeto sequer foi votado na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP) da Câmara dos Deputados.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> V. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp.1086-1087.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Id., ibid., p. 1085. V. também FELICIANO, Guilherme Guimarães. Por um processo realmente efetivo: Inflexões do “due process of law” na tutela processual de direitos humanos fundamentais. São Paulo: LTr, 2016, subseção 12.2, IV.  Entre os autores alemães, procure-se pela expressão “Lehre-Fähigkeit”.

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JOTA

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