Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Voltamos, querido leitor!
Daremos seguimento, como o leitor já sabe, ao tema iniciado na coluna passada, a saber, a condição do advogado associado (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm">Lei 8.906/1990</a>, art. 17-A) e o uso da figura como forma de elidir o reconhecimento do vínculo empregatício. O assunto conecta-se, vamos insistir, com o tema da coluna de maio, que certamente também está na sua memória: a fraude trabalhista e as muitas dimensões do art. 9º da CLT, à luz da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) – com aportes das nossas próprias convicções, claro.
Lembrávamos, ademais, que o tema dos ilícitos trabalhistas em sociedades de advogados voltava à baila com toda força neste mês de julho, seja em razão da realização, no dia 7/7/2023, do Congresso da Advocacia Assalariada da OAB-SP, seja em razão da sanção da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14612.htm">Lei 14.612/2023</a>, a prever o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito da advocacia.
Pois bem.
Havíamos deixado para discutir nesta coluna as teses de repercussão geral em relação às quais se têm reconhecido “aderências” muito laterais para se cassar decisões dos juízos e tribunais trabalhistas em matéria de fraude na configuração de relações civis (CLT, art. 9º), incluindo a hipótese dos falsos advogados associados (e sócios) de sociedades advocatícias. Vejamo-las agora.
Na ADPF 324, de relatoria do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luis-roberto-barroso">Luís Roberto Barroso</a>, foi firmada a seguinte tese de julgamento: “1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”. Já no RE 958.252, de relatoria do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luiz-fux">Luiz Fux</a>, firmou-se a seguinte tese: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. Como se extrai da leitura da íntegra do acórdão, todavia, o Supremo não validou a chamada intermediação ilícita de mão de obra<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, ressalvando as fraudes (CLT, art. 9º).
Na ADC 48 e na ADI 3.961, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo firmou a seguinte tese: “1. A Lei 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2. O prazo prescricional estabelecido no art. 18 da Lei 11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o art. 7º, XXIX, CF. 3. Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”. Entretanto, nos debates entre os ministros <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/edson-fachin">Edson Fachin</a> e Barroso, ficou claro que a tese não se aplicaria quando demonstrada a fraude à relação de emprego<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Na ADI 5.625, de relatoria do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/nunes-marques">Nunes Marques</a>, a ressalva em relação a situações fraudulentas constou já na tese de julgamento: “I - É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352, de 27 de outubro de 2016; II - É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores”.
Bem compreendidos, pois, os precedentes comumente apontados como violados nas reclamações constitucionais em questão, vejamos como as duas Turmas do STF as tem analisado.
No âmbito da 1ª Turma, firmou-se o entendimento de que os precedentes acima apresentados demonstram a posição reiterada do Tribunal no sentido de respaldar constitucionalmente formas alternativas da relação de emprego regida pela CLT, tendo como principal vetor a livre iniciativa<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Há, contudo, nas reclamações de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, a indicação de parâmetros a serem observados para aplicação dos paradigmas: (i) a base principiológica do Direito do Trabalho, ou, mais precisa e justamente, o princípio da primazia da realidade (nas palavras do ministro Barroso, o contrato deve ser real, isto é, não deve haver “relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação”)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>; (ii) o trabalhador não deve ser hipossuficiente; e (iii) a ausência de coação na contratação.
No âmbito da 2ª Turma, por outro lado, a controvérsia parece não estar pacificada. Em acórdão proferido em fevereiro deste ano, o colegiado afirmou a ausência de aderência estrita entre a decisão da Justiça do Trabalho e os paradigmas indicados<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>(o que parece ser a solução tecnicamente mais adequada). No entanto, recentemente, foram proferidas decisões monocráticas por ministros integrantes da 2ª Turma que reconhecem a aderência entre as decisões reclamadas e os paradigmas, terminando por cassar as decisões da Justiça do Trabalho<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> ou mesmo a reconhecer a sua incompetência material.
Nesse cenário, é importante que a Justiça do Trabalho, por suas instâncias institucionais e associativas – o que inclui a atuação do Tribunal Superior do Trabalho (como se deu, muito recentemente, com o "Seminário Internacional sobre Direitos Constitucionais e Relações de Trabalho”, ocorrido nos dias 2 e 3 de março2023<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>) e da própria Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anamatra">Anamatra</a>) –, aprofunde o diálogo jurídico-político e o afinamento semântico com o Supremo Tribunal Federal, de modo a apresentar, com um ônus de fundamentação reforçado, os elementos concretos e específicos que justificam, nos casos-tipos que têm sido objeto presencial de reclamações constitucionais (transportadores autônomos, trabalhadores de “salões parceiros”, trabalhadores de aplicativos e, neste caso em especial, falsos associados/sócios de sociedades de advogados), o afastamento da relação de natureza civil e o reconhecimento do vínculo de emprego, “ex vi” do art. 9º da CLT.
No campo da argumentação jurídica, ademais, para evitar decisões monocráticas de cassação mediante reclamações constitucionais, os interessados podem se prevenir com alguns cuidados, seja nas petições e recursos, seja nas próprias decisões judiciais. Da leitura dos parâmetros apresentados nas decisões do Supremo (Supra), seria relevante, de um modo geral:
<ul>
<li> (1) demonstrar a existência de vícios formais ou desconformidades em relação ao modelo legal de contratação (quando se tratar de uma fraude perpetrada a partir de contratos civis formalmente previstos em lei, como, p. ex., os da Lei 13.352/2016<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, da Lei 11.442/2007<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, da Lei 4.886/1965<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, dos artigos 593 a 609 do Código Civil<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, e ainda, no caso específico deste breve estudo, os do art. 17-A do EOAB);</li>
<li>(2) evidenciar didática e sistematicamente os elementos específicos daquela relação de trabalho que comprovam a presença dos requisitos da relação de emprego (subordinação, não eventualidade, pessoalidade, onerosidade), com apontamento dos fatos e provas (a evidenciar que não se trata de pura “questão de direito”);</li>
<li>(3) evidenciar as circunstâncias que revelam a hipossuficiência econômica do trabalhador naquela hipótese; e/ou, quanto o caso,</li>
<li>(4) evidenciar os elementos de coação.</li>
</ul>
Eis o caminho das pedras. Que, a rigor, não perfaz garantia alguma de sucesso; aliás, por vezes, serão essas exatamente as pedras do naufrágio...
Melhor mesmo seria fixar, nas cortes superiores, a compreensão de que a discussão de fraudes trabalhistas não desafia, “prima facie”, o instrumento da reclamação constitucional. Mas, ao que tudo indica, estamos bem distantes desse porto seguro.
*
E então, assíduo leitor? Sente-se mais seguro para discutir casos de fraudes trabalhistas envolvendo contratos civis com usos desviados? Tem sugestões, críticas ou propostas de temas? Escreva-nos: <a href="mailto:dunkel2015@gmail.com">dunkel2015@gmail.com</a> . E não se esqueça: você é réu do seu juízo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O voto do ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, traz tópico específico de diferenciação entre os conceitos de “terceirização de atividade-fim” e de “intermediação de mão de obra”. O Ministro ressalta que “caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos” (ADPF 324, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. em 30/08/2018).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Transcrevo, para melhor elucidação, a seguinte observação explicitada pelo Min. Barroso: “Logo, se a hipótese que se puser concretamente for a de alguém que esteja trabalhando como empregado, eu concordo com o Ministro Fachin. Mas, se esta for a hipótese, não incide a Lei. A hipótese que está prevista na Lei eu considero que é válida e legítima. Portanto, entendo a posição do Ministro Fachin de explicitar isso, mas não há uma divergência de fundo, porque acho que a lei, com clareza, exclui a possibilidade desta malversação, salvo hipóteses de fraude”. (ADI 3.961, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. em 15/04/2020).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A título exemplificativo, destaco os seguintes julgados: Rcl 58.587 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. em 25.04.2023; Rcl 57.761 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. em 03.04.2023
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Rcl 56.285 AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, j. em 27.03.2023
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nas palavras do Min. Edson Fachin, relator, “A despeito do entendimento desta Corte relativo à compatibilidade dos valores do trabalho e da livre iniciativa com qualquer forma de divisão do trabalho, bem como da compatibilidade com a Constituição Federal de outras formas de contratação que não somente a prevista na CLT, constata-se que o contrato de advogado associado foi afastado diante da constatação, à luz das provas dos autos, da presença dos elementos caracterizadores da existência do vínculo de emprego, nos termos do art. 3º, da CLT, capazes de afastar o contrato celebrado” (Rcl 55.786 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, j. em 22.02.2023).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Nesse sentido: Rcl 59.106, Rel. Min. André Mendonça, j. em 05.06.2023 e Rcl 57.606, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 26.05.2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Com maior exatidão, “Seminário Internacional sobre Direitos Constitucionais e Relações de Trabalho: Caminhos das Cortes Superiores para a Efetividade da Justiça Social”, realizado pelo Supremo Tribunal Federal pelo Tribunal Superior do Trabalho e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho, com a participação direta de ministros do STF e de ministros, desembargadores e juízes da Justiça do Trabalho, além de advogados e membros do Ministério Público.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Trabalhadores em salões de beleza (“salão parceiro”).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Transportadores autônomos.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Representantes comerciais autônomos.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Contrato civil de prestação de serviços (geral).

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