Opinião e Análise

Guilherme Guimarães Feliciano

Caro leitor, cá estamos. E estamos, por assim dizer, a recolher cacos emocionais.
No último dia 17 de maio, perdi meu irmão Antônio César Guimarães Feliciano, que nos deixou para habitar a pátria celeste, depois de longa luta contra um quadro grave de sepse. Por isso, aliás, não tivemos a coluna do mês anterior. César também era Antônio por conta do dia de Santo Antônio, quando nasceu, há quase 55 anos. Faria aniversário daqui a poucos dias.
Meu querido irmão – o nosso Cesinha – era pessoa do espectro autista; e, talvez por isso mesmo, uma das pessoas mais transparentes, puras e ingênuas que conheci. Incapaz de entabular enganos ou ardis em detrimento das pessoas. E, no entanto, o mundo o cercou, como sempre nos cerca, desses tantos maus ensejos. É disso que vamos falar hoje, querido leitor. De fraudes.
Não sem antes, porém, dedicar esta coluna ao meu Cesinha, em toda a sua pureza, afeto e amor. Esta, de hoje, e todas as demais, pretéritas e pósteras.
Saudades eternas, meu irmão.
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O<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm#:~:text=Art.%209%C2%BA%20%2D%20Ser%C3%A3o%20nulos%20de,direitos%20adquiridos%20por%20seus%20empregados."> artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)</a> é, sem favor algum, um dos mais importantes preceitos da legislação trabalhista em vigor, de que dimana importante norma-regra para a assepsia ético-nomológica das relações de trabalho, sejam as de tipo subordinado – por expressa previsão legal (“[...] preceitos contidos na presente Consolidação”, que rege essencialmente o trabalho subordinado, ut arts. 2º e 3º da CLT), sejam as de outra natureza, por interpretação sistemático-teleológica, desde que presentes graus relevantes de vulnerabilidade jurídica e assimetria econômica nos negócios jurídicos em questão (assim, e.g., em casos de trabalho avulso, voluntário, eventual,  autônomo dependente etc.).
Em perspectiva alexyana (ALEXY, 1996), a regra antifraude também confere concreção a normas-princípios comezinhas do Direito do Trabalho, como o princípio da proteção, o princípio da irrenunciabilidade e o princípio da primazia da realidade (PLÁ RODRIGUES, 1996), coibindo, de modo geral, todas as modalidades de fraudes no contrato individual de trabalho (e, por extensão, também nas relações jurídicas de trato coletivo), de modo muito mais abrangente do que, p. ex., o instituto da fraude contra credores do art. 158 do Código Civil de 2002. Como pondera DELGADO (2018), o objetivo último do artigo é garantir a efetivação dos direitos sociais fundamentais do trabalhador, evitando práticas fraudulentas que possam prejudicar a sua dignidade e/ou a fruição dos direitos trabalhistas que lhe são devidos.
Extrai-se da jurisprudência dominante do Tribunal Superior do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/TST">TST</a>), por outro lado, que o artigo 9º da CLT encerra norma de ordem pública social estrita, que não pode ser afastada por acordo entre as partes e tampouco por convenção ou acordo coletivo de trabalho. Noutras palavras, a proteção legal contra as fraudes nas relações de trabalho integra o núcleo essencial irredutível da proteção do hipossuficiente econômico nas relações de trabalho, configurando direito individual e coletivo absolutamente indisponível para os próprios fins do Tema de Repercussão Geral 1046 do Supremo Tribunal Federal (por cuja tese “[s]ão constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”).
Suas possibilidades semânticas, ademais, são de notável largueza: entende-se, p. ex., que a aplicação do dispositivo não depende sequer da existência de fraude efetiva, bastando a finalidade fraudulenta do ato praticado (TST, AIRR-282-32.2011.5.09.0665). Na mesma ordem de ideias, entendemos que o artigo 9º deve ser interpretado de forma ampla, abrangendo não apenas a fraude no contrato de trabalho, mas também outras práticas que possam levar à precarização do trabalho, como as simulações maliciosas que mascaram relações subordinadas, as terceirizações ilícitas e, de um modo geral, todas as hipóteses de intermediações precarizantes de mão de obra.
Cumpre entender, aliás, que a fraude no campo trabalhista dispensa inclusive o elemento subjetivo que geralmente se exige, para os institutos similares, no âmbito do Direito Civil; veja-se, p. ex., na doutrina civilista tradicional (PONTES DE MIRANDA, 2012), o “consilium fraudis” para a precitada fraude contra credores (e, mesmo nessa esfera, com relativizações mais recentes: STJ, REsp 1.294.462, rel. Des. Conv. Lázaro Guimarães – exigindo-se tão somente a “scientia fraudis”). No Direito do Trabalho, a fraude configura-se também objetivamente, ainda que não haja, por parte do empregador e/ou do tomador de serviços, qualquer conluio ou adesão subjetiva (consilium), ou sequer a ciência da elisão maliciosa de direitos (scientia).
Nessa ordem de ideias, por aplicação direta do princípio da primazia da realidade, os juízes do Trabalho tendem a reconhecer a relação de emprego, quando presente certa gama de indícios de subordinação, ainda que nos autos se aboje um instrumento de contrato de representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965), cuja genuinidade e autenticidade não é negada nem pelo réu, nem pelo autor: ambos acreditavam, no momento da assinatura do instrumento e durante o desenvolvimento da relação jurídica, não se tratar de relação de emprego.
Não há, portanto, qualquer “objetivo” de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação da lei trabalhista (art. 9º da CLT); tampouco há, por parte dos terceiros envolvidos (empresa “representada”, clientes etc.), “consilium fraudis” ou “scientia fraudis”. Mesmo assim, sob o pálio do princípio da primazia da realidade e da regra da nulidade plena dos atos fraudulentos (“in casu”, o contrato de representação comercial), estando presentes os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, deferem-se ao trabalhador todos os direitos trabalhistas do período, ainda que se reconheça que ambos, “representante” (rectius: empregado) e “representado” (rectius: empregador), estiveram de boa-fé durante a contratação.
Do mesmo modo, é indene de dúvidas que as renúncias gerais e/ou antecipadas de direitos trabalhistas estão fora de cogitação no Direito do Trabalho, desafiando sanção de nulidade, “ex vi” dos artigos 9º e 444 da Consolidação, como decorrência lógica e imanente do princípio da irrenunciabilidade, a informar os próprios direitos humanos fundamentais (de que os direitos sociais são subespécies). E será assim mesmo que, no curso da relação de trabalho, empregado e empregador não tenham se dado conta da ilegalidade da cláusula. Então, p. ex., padeceriam de nulidade “pleno iure” (art. 9º da CLT) atos de renúncia geral ao direito de gozar férias e de perceber horas extras, como ainda atos de renúncia antecipada às verbas resilitórias.
Veja-se, a propósito, a própria Súmula 276 do TST, pela qual “[o] direito ao aviso prévio é irrenunciável pelo empregado. O pedido de dispensa de cumprimento não exime o empregador de pagar o respectivo valor, salvo comprovação de haver o prestador dos serviços obtido novo emprego”. Logo, não se admite a renúncia prévia do aviso prévio (i.e., o “pedido de dispensa de cumprimento”), como direito social que é, porque configura fraude na acepção do art. 9º da CLT (ato praticado com o tendencial resultado de impedir, na espécie, a aplicação do art. 7º, XXI, da Constituição).
A jurisprudência do TST tem reconhecido, de outra parte, que a terceirização ilícita que visa a burlar a aplicação das normas trabalhistas e prejudicar os direitos dos trabalhadores pode desafiar o tratamento jurídico do caso sob a ótica do art. 9º da CLT (TST, RR 10877-89.2017.5.03.0132, j. 17.5.2023; RR 767-88.2012.5.03.0105, j. 7.12.2022).
Noutras palavras, a intermediação de mão de obra caracterizada pela contratação de trabalhadores que não se subordinam diretamente às empresas interpostas, mas sim às empresas tomadoras de serviços, é considerada uma prática fraudulenta, sujeita à declaração de nulidade do contrato de trabalho (mesmo sob  a égide da tese fixada pelo STF na ADPF 324 e no RE 958.252, quanto à licitude da terceirização de atividade-fim).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O TST também tem reiterado sua jurisprudência no sentido de que a subordinação jurídica mascarada, ou seja, a tentativa de disfarçar a relação de emprego por meio de um contrato civil de prestação de serviços, é uma prática fraudulenta, sujeita à declaração de nulidade do contrato civil e ao reconhecimento do vínculo de emprego (TST, RR 906-04.2012.5.05.0196, j. 18.3.2015).
Sigo, portanto, para concluir que, na dimensão juslaboral, o conceito de fraude deita raízes na natureza mais íntima do contrato individual de trabalho – a de ser um contrato-realidade (DE LA CUEVA, 1943) – e no próprio princípio da primazia da realidade (PLÁ RODRIGUEZ, 1996). Noutras palavras, serão atos fraudulentos, porque praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos trabalhistas, todos aqueles que de algum modo se prestam a mascarar a realidade dos fatos e substituí-la por modelagens jurídicas impróprias e antinaturais.
Atribui-se ao sociólogo estadunidense DaShanne Stokes, de memoráveis aulas na Universidade de Pittsburgh, a afirmação de que “facts are threatening to those invested in fraud” (“fatos são ameaçadores para aqueles que investem em fraudes”). E é como é. Ora, justamente no Direito do Trabalho – da primazia dos fatos sobre as formas – poderia ser diferente? Não. Menos civilismo, mais juslaboralismo.
<hr />
ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
DE LA CUEVA, Mario. Derecho Mexicano del Trabajo. 2. ed. México: Porrúa, 1943. t. I.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 2018.
PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: validade, nulidade e anulabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. IV.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “[...] III - REEXAME DO RECURSO DE REVISTA DO SEGUNDO RECLAMADO . TERCEIRIZAÇÃO. FRAUDE. ARTS. 2º, 3º E 9º DA CLT. VÍNCULO DIRETO COM O TOMADOR DE SERVIÇOS. DISTINGUISHING DA TESE FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 324 E NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 958.252. A possibilidade de terceirização de forma ampla, nas atividades-meio e atividades-fim das empresas, foi tema objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958.252, julgados pelo Supremo Tribunal Federal, em regime de repercussão. Além disso, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 791.932, a Suprema Corte reafirmou o seu entendimento de que "é lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada ". Assim, não se cogita mais da formação de vínculo de emprego direto com a empresa tomadora de serviços sob o fundamento de que houve terceirização de sua atividade-fim. Todavia, remanesce a possibilidade de reconhecimento do vínculo de emprego quando comprovados os requisitos do artigo 3º da CLT em relação à empresa tomadora de serviços. No caso concreto , o TRT, ao apreciar as provas dos autos, constatou a fraude na terceirização. Foi destacado no acórdão recorrido que o reclamante atuava como preposto do banco réu e era seu único representante na localidade da prestação dos serviços . Premissas insuscetíveis de revisão nesta instância extraordinária - óbice da Súmula 126/TST . Nesse contexto, constata-se que o caso dos autos não é abarcado pela citada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois as especificidades comprovam a subordinação direta do reclamante ao tomador de serviços e a caracterização de fraude - violação do art. 9º da CLT -, o que desassemelha a hipótese vertente daquelas que originaram as teses vinculantes editadas pela Suprema Corte - distinguishing . Dessa forma, a conclusão do Tribunal Regional , que reconheceu o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços e a aplicação das normas correlatas, está de acordo com a diretriz consubstanciada na Súmula 331, I, deste Tribunal Superior. Incidência dos óbices da Súmula 333/TST e do art. 896, § 7º, da CLT. Precedentes específicos. Recurso de revista do reclamado não conhecido”.

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JOTA

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A fraude no Direito do Trabalho: do que se trata, afinal?

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