Opinião e Análise

Lígia Mori Madeira

Kálita Hilário Trindade de Medeiros

Apesar de eleito sob a bandeira da segurança pública, Bolsonaro passou mais da metade de seu governo sem uma agenda ou ações significativas de políticas públicas na área. No início do governo o Pacote Anti-crime era uma preocupação quase exclusiva do Min. Sérgio Moro, sendo que sua aprovação no congresso, a despeito dos cortes e das alterações que descaracterizaram um pouco a proposta, resultou em uma guinada em relação às ideias que vinham orientando a segurança pública do período democrático, com oscilações entre perspectivas mais repressivas, ora maior preocupação com políticas preventivas em busca de uma segurança cidadã.
Após Sérgio Moro sair da pasta, Bolsonaro deixou de lado esse tema. Durante dois anos e meio as políticas públicas de segurança não foram parar nem mesmo no papel, com a produção de um plano capaz de ditar alguma proposta para a área.
O mesmo não se pode dizer da flexibilização do acesso a armas e munições, cujos treze decretos emitidos desde o início do governo  e em questionamento por várias ações no STF, dão conta da concepção de segurança pública almejada no país do bolsonarismo, com liberdade para portar armas, reforço da segurança privada, ampliação da dicotomia nós X eles, com tentativas de desresponsabilização de agentes de segurança que extrapolem seu exercício de função.
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Com a segurança pública à deriva em um país marcado pela crise econômica, pela pandemia e toda a sorte de problemas sociais decorrentes, não tardou a se verificar aumentos nos índices de violência e criminalidade: os homicídios cuja tendência de declínio se estancou em 2019 e cuja reversão demonstra a gravidade do tema; os feminicídios, cujo recrudescimento do isolamento e maior tempo de convivência das famílias; e a violência e letalidade policial, com dados cada vez mais alarmantes.
Tal cenário até então não havia motivado uma preocupação coordenadora do Executivo Federal, como demonstra um levantamento das ações em segurança do governo Bolsonaro feito pelo Instituto Sou da Paz<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, revelando a maneira com que a área vinha sendo tratada e as consequências em termos de elevação de indicadores de violência e criminalidade em várias áreas.
As políticas vigentes e a necessária implementação do SUSP, cuja aprovação no governo Temer implicava na operacionalização do plano, nunca mereceram atenção por parte do governo federal. O SUSP teria a capacidade de desenvolver governança através da padronização de dados, integração tecnológica, de inteligência e operacional, sendo ele um instrumento de Estado cuja responsabilidade pela gestão ficaria centrada no antigo Ministério da Segurança Pública.
Eis que, faltando pouco mais de um ano para as eleições presidenciais, depois de críticas da própria bancada da bala de que o Presidente Bolsonaro havia tirado a segurança pública de suas prioridades, vem sendo feitos afagos às forças policiais, importante base de apoio do governo, especialmente das polícias militares (como é o caso do Programa Habite-se Seguro, um programa habitacional exclusivamente para profissionais da segurança pública; assim como a aprovação de  IPI zero para aquisição de automóveis por esses profissionais).
Os gestos não param por aí. Um novo projeto de Lei Orgânica das polícias civis e militares tem o intuito de regularizar a autonomia, retirando o poder dos governadores, garantindo “autonomia administrativa e financeira das polícias, propondo a criação do Conselho Nacional de Comandantes Gerais da Polícia Militar, com assento nos ministérios da Defesa e da Justiça, o que deslocaria o poder das polícias do âmbito estadual para o federal”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Mesmo com essas propostas, se o apoio das polícias militares cresce, outras categorias da segurança pública têm ampliado o rechaço ao presidente, dentre elas as de policiais civis e federais<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Além disso, políticos ligados à própria bancada da bala não veem uma postura do governo em prol da valorização dos profissionais da área de segurança. Pelo contrário, agentes de segurança estão preocupados em diminuir as perdas com a reforma da previdência e também preocupa-lhes a reforma administrativa, em relação a qual estão pedindo para serem enquadrados como carreiras exclusivas de estado.
Junto a essas mudanças, o Ministério da Justiça e Segurança Pública iniciou um movimento tardio de reedição dos planos em segurança oriundos do governo Temer: a reedição da Política Nacional de Inteligência (PNI), que transforma-se em Política Nacional de Inteligência de Segurança Pública (PNISP) e dá guarida à Estratégia Nacional de Inteligência de Segurança Pública (ENISP) e mais recentemente a revisão que culmina no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
As produções em inteligência de segurança pública não explicitam claramente paradigmas conservadores, mas possíveis usos e direcionamentos dos instrumentos de inteligência em direção a opositores políticos revelam-se sempre como riscos.
Já o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2021-2030), publicado em 28 de setembro, através do Decreto n. 10.822-2021, estabelece uma política de longo prazo cujas previsões podem acarretar importantes mudanças na área, claro que se a edição normativa perseguir esforços de implementação tal qual previsto. Trata-se de plano com prazo de duração de dez anos com ciclos de implementação de dois anos, sendo um total de cinco ciclos de implementação:’’ a) Ciclo I: 2021-2022; b) Ciclo II: 2023-2024; c) Ciclo III: 2025-2026; d) Ciclo IV: 2027-2028; e e) Ciclo V: 2029-2030). Conforme dito acima, trata-se de uma atualização do antigo Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
O novo plano traz treze metas divididas em cinco grupos e além disso doze ações estratégicas. As metas novas buscam redução de homicídios, criminalidade violenta e revelam uma preocupação específica com a vitimização policial, seja por homicídio, seja por suicídios.
Ao analisar os outros planos formulados e implementados no Brasil desde o Governo FHC, percebe-se que o atual plano deixa de lado questões importantes como, por exemplo, a questão da violência juvenil, principalmente de jovens negros na faixa-etária dos 15-29 anos, cujo crescimento nos últimos anos da taxa de homicídios entre jovens tem mostrado como é importante a questão da juventude. Indicadores como taxa de homicídios entre jovens de 15-29 anos não são discutidos e não se vislumbra quaisquer políticas a serem desenvolvidas neste âmbito.
O plano coloca juntas questões complexas que precisam ser tratadas separadamente. Em uma única ação estratégica (ação estratégica 12) consideram-se mulheres, jovens e outros grupos vulneráveis sem especificar que grupos são esses e onde estão alocados, além de ainda incluir desaparecidos, tráfico de pessoas e citar crianças e adolescentes.
Outro ponto que merece destaque é a questão penitenciária. Fica evidente a tentativa do governo em incentivar a iniciativa privada através de parcerias público-privadas. A situação prisional se arrasta no Brasil ao longo de anos, há um vácuo de políticas penitenciárias. Apesar disso, o plano prevê uma agudização ainda maior desse problema, uma vez que estabelece uma meta de aumento de vagas do sistema prisional da ordem de 60% até 2030, prevendo-se atingir pouco mais da metade desse universo com atividade laboral e cerca de apenas um terço com atividades educacionais.
Especialistas têm se debruçado sobre as propostas buscando compreender as intenções e as possibilidades de usos desses instrumentos. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública fez várias análises, cuja síntese ressalta a concentração de poder no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o plano prevendo mudanças quanto à redução do poder dos governadores sobre as forças policiais. Ao mesmo tempo são retomadas as preocupações com crime organizado, corrupção, tráfico de drogas, todos eles presentes na agenda do ex-ministro Sérgio Moro.
A centralização no ministério atinge inclusive o monitoramento e avaliação. No plano anterior o monitoramento seria feito a partir da criação do Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social (SINAPED), integrado por uma comissão permanente de avaliação, a qual desempenharia as suas atribuições com o auxílio das comissões temporárias.
No atual, o monitoramento do acompanhamento da implementação das ações estratégicas e o monitoramento dos indicadores e das metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030 competem ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Embora o atual governo tenha editado alguns decretos, publicado novos e lançado alguns programas como o Em frente, Brasil, descontinuado sem atingir o número de cidades do desenho inicial, ainda não temos uma política pública de segurança concreta. Sabemos que a violência e a criminalidade são multicausais e que necessitam de soluções que envolvam os diferentes setores da sociedade. Além disso, questões caras para a área da segurança estão sendo deixadas de lado, como a juventude e a violência contra mulher.
No novo plano a questão da violência doméstica e dos feminicídios não são devidamente considerados, conforme já salientado pelo FBSP<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. O plano traz apenas violência contra mulher, sem especificar quais tipos e formas de violência, e não cita o feminicídio como meta de redução, não considerando esse indicador nem para acompanhamento. Estudos recentes têm mostrado que a violência doméstica tem crescido no Brasil, sendo agravada com a situação da pandemia<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem alertado também para a invisibilização promovida em relação a mortes cometidas por agentes de segurança, cujos dados não têm previsão de monitoramento. Enquanto a política e a estratégia em inteligência permitem ao Ministério da Justiça amplas possibilidades de monitoramento e coleta de informações, o novo plano desequilibra a balança na relação de forças policiais cuja atuação violenta será camuflada, enquanto contabiliza e dá grande visibilidade à sua vitimização (o que está devidamente correto, contanto que a violência policial exista como indicador).
Para além da conjuntura e do risco de ter planos como esses à disposição de governos, uma análise retrospectiva e comparativa dos diferentes planos de segurança produzidos no período democrático permite vislumbrar o retrocesso no que tange ao modelo de segurança desenhado na carta constitucional e seus desenvolvimentos posteriores<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Ao longo de mais de trinta anos foram estabelecendo-se bases normativas quanto ao papel da União na coordenação da área, mantida a competência dos estados e estabelecida a importância da atuação dos municípios; a concepção de segurança pública, cuja preocupação com ordem pública e incolumidade é reforçada nos planos de agora, havia cedido lugar a uma concepção de segurança cidadã, que embora não tenha saído dos documentos da forma esperada, orientava que tipo de segurança construir em um Estado democrático de direito. Retrocedendo em todos esses aspectos, o governo atual tem voltado a segurança principalmente para questões de segurança nacional e aparato policial, transitando no paradigma de segurança pública com fortes traços da segurança nacional.
Resta saber o quanto de efetividade tais políticas contarão, e até quando.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a><a href="https://soudapaz.org/o-que-fazemos/mobilizar/sistema-de-justica-criminal-e-seguranca-publica/participacao-no-debate-publico/seguranca-publica/?show=documentos#4914">https://soudapaz.org/o-que-fazemos/mobilizar/sistema-de-justica-criminal-e-seguranca-publica/participacao-no-debate-publico/seguranca-publica/?show=documentos#4914</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a><a href="https://www.conectas.org/noticias/como-os-projetos-de-autonomia-das-policias-ameacam-a-democracia/">https://www.conectas.org/noticias/como-os-projetos-de-autonomia-das-policias-ameacam-a-democracia/</a>
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<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a><a href="https://www.fontesegura.org.br/news/108?utm_campaign=Fonte+Segura+-+edi%C3%A7%C3%A3o+108+-+p%C3%BAblico+geral&amp;utm_content=%5BNo+title%5D+%281%29&amp;utm_medium=email&amp;utm_source=EmailMarketing&amp;utm_term=Fonte+Segura+-+edi%C3%A7%C3%A3o+108+-+p%C3%BAblico+geral#ersfazt29t">https://www.fontesegura.org.br/news/108?utm_campaign=Fonte+Segura+-+edi%C3%A7%C3%A3o+108+-+p%C3%BAblico+geral&amp;utm_content=%5BNo+title%5D+%281%29&amp;utm_medium=email&amp;utm_source=EmailMarketing&amp;utm_term=Fonte+Segura+-+edi%C3%A7%C3%A3o+108+-+p%C3%BAblico+geral#ersfazt29t</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2633.pdf">https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2633.pdf</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> TRINDADE, Kálita; MADEIRA, Lígia. Da segurança nacional à segurança cidadã e o retorno ao endurecimento penal: uma análise dos planos nacionais de segurança pública no Brasil recente. IN: LIMA, Luciana Leite; PAPI, Luciana Pazini. Planejamento e políticas públicas: intencionalidades, processos e resultados. Porto Alegre: EDUFRGS, 2020.

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JOTA

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