Há quase um ano, com a iminência da aposentadoria compulsória de Celso de Mello, começaram a se organizar as apostas em torno da indicação inédita de Jair Bolsonaro para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Não empenhei meus trocados mas cheguei a registrar neste veículo – naquela ocasião, em parceria com Paulo Alkmin Costa Junior – o peso que a conjuntura política deveria exercer no resultado do processo. Relacionando a evolução do protagonismo político da corte com o crescente engajamento dos atores políticos no processo de indicação, buscávamos apontar para o fato de que se tratava de “uma operação complexa” que demandava, do presidente, capacidade de negociação com as elites política e jurídica nacionais, sem descurar das expectativas da opinião pública.
Sem negar protagonismo ao presidente da República, com a consideração do elemento conjuntural, buscávamos, alinhados à literatura especializada, ressaltar seus poderes relativos, decorrentes do modelo republicano de separação dos poderes, dando destaque à capacidade de outras lideranças políticas (especialmente, no Senado) de se posicionarem como atores relevante no processo. Ademais, considerando a tradição teórica que enfatiza o papel das corporações no processo político decisório, argumentávamos que a elite jurídica nacional também tinha função a desempenhar. Recolhíamos, nesse sentido, evidências (anedóticas) que apontam para a existência de “toda uma rede informal de sociabilidade [que] tem peso”, o que, ao fim e ao cabo, acaba por multiplicar (e diversificar) o número de atores relevantes, intervenientes no processo de indicação de um ministro do STF.
Como conclusão, argumentávamos que a capacidade do presidente para determinar o resultado do processo, aproximando-o de sua preferência mais sincera, dependia de dois fatores, inter-relacionados: (i) o apoio popular e (ii) a governabilidade. Presidentes com altos índices de aprovação tendem a reunir melhores condições de emplacar seus candidatos preferenciais. Foi assim no caso em que o ex-presidente Lula nomeou Dias Toffoli. Ao contrário, governos que sofrem com baixa popularidade (e/ou enfrentam severas crises institucionais, o que, em geral, anda junto) enfrentam altos custos de negociação junto ao Senado, socorrendo-se, por vezes, das elites jurídicas nacionais. Forçoso lembrar das dificuldades da ex-presidente Dilma Rousseff: o lapso temporal transcorrido entre a aposentadoria de Joaquim Barbosa e a nomeação de Edson Fachin é o mais longo já registrado após a redemocratização.
O fato é que nem sempre o ministro nomeado pelo presidente da República é a expressão de suas preferências mais sinceras. E não foi diferente com Jair Bolsonaro, que inobstante a simpatia manifesta por Jorge Oliveira e André Mendonça, dado o alinhamento de ambos ao bolsonarismo raiz, viu obstruída essa via de indicação diante de um cenário de profunda crise institucional a ampliar os custos de negociação com o Senado e com as elites jurídicas nacionais, particularmente refratários à falta de robustez das respectivas trajetórias profissionais dos candidatos. Naquele momento, outras possibilidades pareciam melhor acomodar as preferências em presença: Augusto Aras, o Procurador-Geral da República; dois ministros do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha e Humberto Martins; e, ainda, o jurista Ives Gandra Martins Filho apareceram entre os nomes mais cotados para assumir a vaga de Celso de Mello.
Nesse sentido, pode-se dizer que a indicação de Kássio Nunes Marques foi uma grande surpresa. Mas não de todo.
É o que argumento no capítulo em que analiso, junto com Lucas Magalhães, as relações entre o Supremo Tribunal Federal e o Executivo nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro (AVRITZER; KERCHE; MARONA, 2021). A indicação de Nunes Marques aparece como resultado decorrente da crise política, econômica e sanitária sem precedentes, a empurrar Bolsonaro para uma posição defensiva, forçando-o a sacrificar suas preferências mais sinceras “em favor do restabelecimento de parâmetros mínimos de governabilidade” (p. 129). A intermediação de lideranças políticas do centrão, fundamental para a aprovação do indicado junto ao Senado, pode ter resultado na nomeação de um desconhecido dos juristas e da opinião pública em geral, mas mitigou sua potencial oposição. Nunes Marques contava com um background profissional avalizado pelo cargo de desembargador federal e a função de presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que ocupava. No final, Nunes Marques “encontrou maior resistência nas fileiras do bolsonarismo do que na oposição” (p. 131), o que forçou Bolsonaro a vir a público se justificar com as suas bases sociais. O fato de que se tratava de um ministro católico, de tendências conservadoras no campo dos costumes e garantista em matéria penal, certamente não satisfazia as expectativas do populismo constitucional contido no discurso e nas práticas do bolsonarismo. O presidente sabia disso e dobrou as apostas: às suas bases renovou a promessa de que, na próxima oportunidade, indicaria para o STF um ministro “terrivelmente evangélico”.
Passados oito meses desde sua posse, Nunes Marques é festejado pelo governo como um grande acerto. De fato, a indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal é um mecanismo institucional colocado à disposição do presidente da República para exercer influência a priori sobre o judiciário – ou, pelo menos, sobre a corte constitucional. É de se esperar, portanto, que o sucesso (ou fracasso) das indicações seja medido pela atuação do ministro indicado em face da agenda e dos interesses do governo responsável por sua indicação.
E Nunes Marques já se posicionou pelo menos vinte vezes em consonância com os interesses e a agenda do governo. E não apenas seus votos revelam alinhamento; sua atuação no processo decisório indica mobilização estratégica que privilegia Bolsonaro.
Governabilidade de Bolsonaro
Entretanto, a adesão do ministro à agenda do governo, por si só, não pode servir como medida da capacidade do presidente da República de determinar o resultado do processo de indicação, dependente, conforme já argumentamos, do apoio popular e da governabilidade. Daí porque parece precipitado avançar análises que descaracterizam a indicação de Nunes Marques como expressão de uma solução de compromisso que envolvia a necessidade de Bolsonaro governar, tendo como único indicador o fato de que o ministro vem atuando, sistematicamente, em atenção à agenda e às preferências do governo Bolsonaro.
Em primeiro lugar é preciso considerar o componente lógico de uma equação que opera com o elemento de vitaliciedade, como característica do mandato de ministro do Supremo, em contraste com o princípio da alternância de poder, como característica de constituição dos governos. Quer dizer que não é possível determinar, sem considerável decurso de tempo – pelo menos o necessário para que se sucedam os governos -, se a postura do ministro Nunes Marques é deferente à agenda e às preferências desse governo ou se expressa um traço estrutural de sua atuação, eventualmente orientada pela deferência genérica ao governo de plantão. Em segundo lugar, existem inúmeras razões pelas quais um ministro do STF pode aderir à agenda e aos interesses de um governo, a reforçar ou mitigar os incentivos provenientes do mecanismo de indicação presidencial. A atuação dos ministros do Supremo está orientada pela dinâmica de relação entre os poderes da República; contudo, há que se considerar o adensamento da interlocução entre o tribunal e a opinião pública, complexificando a questão, pela consideração de uma nova audiência. E, ainda, é possível supor, que haja maiores ou menores custos reputacionais, considerando a dinâmica interna à corte.
CPI da Pandemia
Pois bem, às vésperas de uma nova nomeação para o Supremo Tribunal Federal, desta vez em razão da aposentadoria de Marco Aurélio Mello, Bolsonaro se vê, novamente, diante de enormes desafios para ter um ministro pra chamar de seu. O presidente tem insistido no nome de André Mendonça, mesmo em face de um cenário pouco propício à sua nomeação. É verdade que Mendonça ganhou alguma envergadura tendo passado pelo Ministério da Justiça, mas nada que torne sua trajetória profissional minimamente robusta em face do cargo para o qual é cotado. As elites judiciais não estão confortáveis. Ademais, à diferença do contexto político em que se deu a indicação de Nunes Marques, a aliança do governo com o centrão estertora e, particularmente no Senado, Bolsonaro enfrenta forte oposição – concretizada em uma CPI cuja extensão dos danos ainda não se pode medir com clareza. No mínimo, é possível afirmar que se ampliam os custos de negociação para a aprovação de André Mendonça, atual Advogado-Geral da União, e quem o presidente apresenta publicamente como sua escolha pessoal para o Supremo. As elites políticas estão arredias.
Desaprovação popular
Os baixos índices de apoio popular ao governo complicam as coisas um pouco mais para Bolsonaro. A opinião pública não anda satisfeita com o presidente. Substituir Mendonça também é uma tarefa complexa pois o cardápio de opções de Bolsonaro não variou substancialmente: os mesmos Augusto Aras, João Otávio de Noronha e Humberto Martins aparecem como nomes cotados, segundo os articulistas. Augusto Aras, que para os senadores se apresenta como um nome mais palatável, especialmente pela sua atuação implacável contra a Lava Jato, é fundamental na estratégia de proteção do governo, em face das investidas do sistema de justiça contra Bolsonaro e seus aliados. As inúmeras denúncias de irregularidades que achacam o governo em diversas frentes têm encontrado em Aras uma barreira sólida, pelo menos até aqui. E Bolsonaro sabe disso – não parece a melhor estratégia movimentar essa peça agora. Humberto Martins se apresentaria então, sem surpresas, à cadeira de Marco Aurélio. Atual presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conhece bem os meandros da política da Capital Federal, onde está sediado o tribunal que integra há mais de 15 anos. Evangélico, quando Corregedor Nacional de Justiça Martins chegou a pedir investigação disciplinar do juiz responsável pelo famigerado “Caso Queiroz”, pelo que ganhou a simpatia (e o apoio) de Flávio Bolsonaro. Justamente em razão disso parece temerário deslocar Humberto Martins para o STF, onde Bolsonaro já conta com os escudos de Aras e – por que não? – de Nunes Marques, deixando descoberto seu filho – zero um. Similar constatação forçoso advir da consideração de João Otávio de Noronha para a vaga deixada por Marco Aurélio. Considerado um aliado de Bolsonaro no STJ, o ministro, que é mineiro, protagoniza campanha pela criação de um novo Tribunal Regional Federal em Minas Gerais, o TRF-6 – pelo que conta também com a simpatiza corporativa de parte da elite jurídica nacional.
Contudo, todas essas são considerações que tomam como pressuposto o arcabouço democrático constitucional liberal. Em resumo, apostam em uma dinâmica política de relação entre os poderes da República que tende ao equilíbrio. Sem descartá-la de todo, é preciso considerar também o impacto dos traços marcadamente populistas do governo Bolsonaro, arredio em face da institucionalidade e avesso ao pluralismo, o que se expressa também no processo de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Condizente com aspectos mais gerais de seu governo, Bolsonaro tem mobilizado publicamente o processo de indicação dos ministros do Supremo, explorando-o como uma oportunidade política de reafirmar uma postura anti-institucional e avessa ao pluralismo. O mantra pronunciado à exaustão pelo presidente de que indicará um ministro “terrivelmente evangélico” é aceno às bases sociais de apoio para que se unifiquem e renovem sua identificação direta com o líder do governo.
Nessa mesma linha, o apelo anti-insitucional – mitigado no processo de indicação de Nunes Marques pela composição com o centrão – pode vir à superfície em uma estratégia de enfrentamento inédito com o Senado. Não deveria causar surpresa, portanto, que Bolsonaro insista com o nome de André Mendonça, ainda que eventualmente tenha de se movimentar em direção a outro candidato – talvez Noronha, talvez Martins – em uma jogada de dois tempos. Se for esse o caso, Bolsonaro lograria capitalizar com sua base de social de apoio, apontado o eventual fracasso da indicação de Mendonça como resultado do embargo do Senado, reaquecendo a narrativa de que se está diante de um cenário de boicote a seu governo por parte dos demais poderes da República. Na sequência, o nome de Noronha ou de Martins (ou análogo) apareceria como o resultado de sua disposição para negociar, enfraquecendo as críticas de que a indicação pudesse estar relacionada às estratégias de proteção do governo e aliados, mas principalmente de seus familiares.
Diante do intrincado jogo da nomeação presidencial para a vaga no Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro tem, mais uma vez, de lidar com a conjuntura, dentro de um quadro institucional que tem resistido bravamente ao populismo constitucional. Em todo caso, Bolsonaro ainda tem a oportunidade de, na eventualidade de ver obstruído seu desejo de nomeação do ministro terrivelmente evangélico, chegar a um desfecho que pode atender pragmaticamente ao governo, ampliando seu escudo de proteção institucional e garantindo sobrevida a um governo que fez da não-política seu lugar de excelência.