Opinião e Análise

Isabela Araújo

Ludmila Ribeiro

Nos primeiros dias de dezembro de 2019, à beira do término do ano, um marco significativo foi alcançado: foi aprovada a <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2158716">PEC 372/2017</a>, resultando na criação de uma nova força policial no artigo 144 da Constituição Federal de 1988. Após duas décadas de intensa mobilização política por parte dos sindicatos estaduais e federais dos agentes prisionais da época, e diante de várias rejeições de propostas enviadas ao Congresso, a categoria finalmente conquistou a inclusão nos seguintes termos:  
<blockquote class="jota-article__citation">"CF/1988 - Artigo 144 §5º-A. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais".</blockquote>
Para esses profissionais, essa inclusão representava mais do que uma mera valorização de sua atuação na custódia da população prisional brasileira. Era, sobretudo, o reconhecimento do papel que desempenhavam – um reconhecimento que, até então, lhes era negado não apenas de fato, mas também "de direito": o de serem considerados uma força de segurança pública.
Entretanto, a aprovação da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc104.htm">Emenda Constitucional 104/2019</a> foi apenas o primeiro passo de um processo mais abrangente. Era necessária uma regulamentação em nível federal e estadual e, por fim, a criação de uma Lei Orgânica para as Polícias Penais. Apesar de já constarem no artigo 144 da Constituição e serem referidos como "policiais penais", havia um caminho a ser trilhado para definir toda a estrutura organizacional dessa nova polícia, incluindo regulamentos e planos de carreira. Era crucial delinear as esferas de atuação para evitar sobreposição de funções com outras polícias, notadamente as civis, militares e federais. 
Vale destacar que houve resistência significativa à aprovação, vinda de várias instituições, incluindo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC). Essas entidades manifestaram publicamente suas preocupações com as justificativas que embasaram a alteração.
De um lado, a transformação dos agentes prisionais em policiais penais era vista como uma maneira de valorizar a profissão (uma vez que a categoria policial desfruta de mais prestígio do que a de agentes prisionais) e de oferecer proteção aos guardas que enfrentavam insegurança e medo, em relação ao reconhecimento dos desafios de suas funções. Por outro lado, usando exemplos das demais polícias, esses institutos demonstraram que a mudança para o status de "polícia" não garantia, por si só, valorização ou proteção aos profissionais. Os números de letalidade e, especialmente, de vitimização policial expõem a vulnerabilidade imposta pelo Estado aos agentes encarregados da manutenção da ordem. 
Mas o que a mudança constitucional significou em termos concretos para as polícias penais? Quais são as velhas e as novas atividades que essas polícias desempenham? O que esperar das polícias penais num contexto de aumento da violência estatal? Essas são as perguntas que queremos responder neste texto. 
<h3>Mudança no papel, alteração na prática? </h3>
Engana-se quem acredita que apenas a aprovação da Emenda Constitucional foi suficiente para transformar os agentes prisionais em policiais penais. Para além da alteração na nomenclatura, a institucionalização da Polícia Penal depende de regulamentação estatal, posto que, assim como as polícias militares e civis, ela também está subordinada aos governadores. E é justamente este processo que permitiu uma forma de resistência mais institucionalizada.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021 revelaram que, até então, nem todos os estados da federação tinham avançado na regulamentação desta nova polícia. Apenas Santa Catarina, Goiás, Maranhão e Rio Grande do Norte haviam regulamentado os agentes prisionais como policiais penais. Alguns estados, como Bahia, Roraima, Piauí e Sergipe, sequer haviam iniciado discussões parlamentares sobre o assunto. Outros estados estavam em diferentes fases de tramitação de propostas nas Assembleias Legislativas. Inclusive, após essa publicação, os próprios agentes mobilizaram-se para pressionar pela regulamentação, resultando na aprovação de uma Lei Orgânica em Minas Gerais e na implementação da nova força em São Paulo.  
Apesar da mudança constitucional ainda não ter ressonado em regulamentação em boa parte dos estados e, com isso, os agentes prisionais não apenas se consideram policiais em todas as dimensões, como rechaçam qualquer outra nomenclatura. Para eles, ser nominados como polícia penal tem como efeito 1) acesso mais fácil a armamento de maior e menor potencial ostensivo, 2) não atuar cotidianamente nas unidades prisionais, o que diminuiria a suposta contaminação, 3) ter mais prestígio dentro e fora da instituição em razão de seu uniforme, seus equipamentos e a atuação padronizada serem muito semelhante às polícias militares.
Vale pontuar ainda que, de acordo com o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os policiais penais somavam quase 100 mil profissionais, um quantitativo maior do que o de policiais civis, o que significa uma grande força de segurança à disposição para a realização de distintas atividades policiais.  
<h3>Nova nomenclatura, novas atribuições para a polícia? </h3>
Idealmente, a pena privativa de liberdade tem duas funções principais: punir o sujeito, retribuindo a ele o mal causado à sociedade, e ressocializá-lo, para que ele possa voltar ao coletivo sem produzir dor e sofrimento. Por isso, as unidades prisionais deveriam ser, também teoricamente, empresas modificadoras de indivíduos, compreendendo os fatores que levaram a pessoa à prática do crime e atuando sobre eles, de forma que o fim do encarceramento não tenha como consequência a reincidência.
No cerne desta tarefa estariam os agentes prisionais, que deveriam se desdobrar nas funções de 1) manutenção da ordem (para evitar conflitos que possam, por exemplo, desaguar em morte) e 2) cuidado e ressocialização, contribuindo para que a pessoa privada de liberdade possa efetivar o seu plano individual de ressocialização e, assim, retornar à sociedade. Para a realização dessas tarefas, alguns países têm investido na contratação de assistentes sociais e psicólogos, que teriam a formação necessária para dispensar tamanha atenção a outrem. Mas o caminho seguido pelo Brasil foi a institucionalização da polícia e, com ela, vêm os bacharéis em direito, o que abre espaço para algumas reflexões que nos parecem fundamentais. 
Primeiramente, é notável o silêncio predominante por parte do Poder Público em face dessa transformação. Num momento em que as forças policiais assumem um papel central na segurança pública, a criação dessa nova entidade não desencadeou discussões públicas substanciais. Os policiais penais passaram a mimetizar os uniformes, as armas (diversas de elevado potencial ofensivo), as estratégias de seleção (com a requisição do bacharelado em direito) e a formação semelhante à da polícia militar (muitas vezes com o apoio desses profissionais), sem que os deputados estaduais e governadores rechaçassem esse processo. Consequentemente, a militarização das prisões torna-se o ponto central de nossas preocupações, considerando que a natureza repressiva da polícia não se alinha ao caráter ressocializador que justifica a existência do sistema prisional.  
Outro aspecto desse debate peremptoriamente negligenciado é a atuação externa da nova polícia penal. Há um interesse notável por parte da categoria em se distanciar da estigmatização ligada ao trabalho nas prisões e à suposta contaminação que os detentos representariam para quem atua nessas unidades. Neste contexto, não é coincidência que, nos últimos três anos, as operações policiais conjuntas, lideradas pelas Promotorias Especializadas no Crime Organizado, tenham recebido um novo participante: a polícia penal. Essa força tem atuado de forma muito extensiva para desmantelar organizações criminosas, patrulhar em datas especiais ou conduzir blitz educativas. Com isso, tem se destacado, por contribuir, “em pé de igualdade”, com as polícias militares e civis na "proteção da sociedade livre" e no "combate ao crime", tanto dentro quanto fora das prisões.
A justificativa central para incluir os policiais penais nessas operações está na dupla formação desses profissionais: 1) patrulhamento ostensivo, no papel de vigiar os detentos e evitar conflitos e rebeliões que poderiam resultar em mortes; 2) investigações, visto que a inteligência penitenciária tem adquirido destaque, uma vez que se acredita que estudar os presos pode fornecer informações cruciais para a resolução de crimes e desmantelamento de organizações criminosas. 
A pergunta crucial é se estamos preparados para acolher mais uma força policial, cuja estrutura segue uma abordagem militarista e, portanto, letal, atuando tanto dentro quanto fora das prisões. Desse cruzamento surgem preocupações quanto à ausência de debate sobre os índices de letalidade policial dentro das prisões.  
<h3>Por que a violência policial não inclui os estabelecimentos penais? </h3>
De acordo com o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2023, a taxa de mortes violentas criminais dentro das prisões é quase duas vezes a encontrada fora delas. Assim, encarcerar alguém é, em última instância, aumentar a chance dessa pessoa ser assassinada. O problema é que essa mesma publicação não apresenta qualquer dado sobre as mortes que são ocasionadas pelos policiais penais, mas somente pelos civis e militares. Talvez essa seja a opacidade que chame mais a nossa atenção, posto que as mortes em ambientes de privação de liberdade são muitas vezes atribuídas a conflitos entre facções, enquanto as violências institucionais subjacentes não são devidamente exploradas. Apenas as famílias dos detentos têm destacado essa questão, mas devido ao estigma associado, ainda são marginalizadas nas discussões institucionais. 
Nossa indagação é em que medida os óbitos sem causa definida dentro do sistema prisional, que somam mais de 40 mortes por 100 mil pessoas privadas de liberdade, não contam com a violência estatal. Afinal, quando falamos de polícia penal, estamos nos referindo a uma polícia cada vez mais armada, mais voltada para a “guerra” em razão do seu mimetismo com a polícia militar e, cada vez mais interessada em apresentar-se fora das unidades prisionais, em detrimento de preocupadas com o bem estar e ressocialização das pessoas privadas de liberdade. 
O cenário atual é de uma nova polícia, e "nova" aqui significa a ausência de regulamentação e de uma Lei Orgânica específica, atuando nas ruas, investigando dentro e fora das prisões e se imiscuindo na lógica de “bandido bom é bandido morto”. Se a ela não cabe atividades de investigação, correcional e de policiamento ostensivo, por que sua atuação na rua já é uma realidade e por que essas demandas são consideradas? <span data-ccp-props="{&quot;134233117&quot;:false,&quot;134233118&quot;:false,&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559731&quot;:720,&quot;335559738&quot;:0,&quot;335559739&quot;:0,&quot;335559740&quot;:360}"> 
Os policiais penais esquecem-se, contudo, de que as pessoas privadas de liberdade deveriam a razão de ser de sua missão, cabendo a eles auxiliar na execução do Plano Individual de Ressocialização por meio de serviços e atividades conduzidas por esses profissionais. Os perigos da maior atuação fora da prisão estão precisamente no esquecimento desta missão e passam despercebidos por boa parte da sociedade, que aplaude as megaoperações com a sua participação.

policiais

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JOTA

É notável o silêncio predominante por parte do Poder Público em face dessa transformação

Será que estamos criando uma super polícia?

É notável o silêncio predominante por parte do Poder Público em face dessa transformação na atuação dos policiais penais