Opinião e Análise

Frederico de Almeida

Nos dias 2 e 3 de dezembro deste ano aconteceu virtualmente o Fórum Permanente “Raça, gênero e classe na justiça brasileira”, promovido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os Fóruns Permanentes são um programa institucional mantido pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Unicamp, que anualmente seleciona e apoia a organização de debates sobre temas contemporâneos, privilegiando a interlocução entre universidade, instituições públicas e sociedade.
O fórum “Raça, gênero e classe na justiça brasileira” foi organizado pelo Laboratório de Estudos de Política e Criminologia (PolCrim) em parceria com duas organizações da sociedade civil que atuam na cidade de Campinas: o Coletivo de Mulheres Negras Lélia Gonzales e as Promotoras Legais Populares – Cida da Terra. Entre outros projetos e intervenções, essas duas organizações atuam juntas na educação popular e na garantia de direitos de pessoas presas, com foco nos impactos da seletividade penal e do encarceramento em massa sobre mulheres negras.
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O primeiro dia do evento contou com a participação da cientista social e escritora Juliana Borges, autora dos livros O que é encarceramento em massa? <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e Prisões: espelhos de nós<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Em sua conferência de abertura, Juliana tratou da seletividade estrutural dos sistemas punitivos, do ponto de vista da criminologia crítica e abolicionista, trazendo ainda a contribuição das feministas negras estadunidenses para a renovação desse debate.
Ainda no primeiro dia de eventos, a primeira mesa de debates tratou das relações entre raça, gênero e classe no acesso à justiça. Carla Benitez Martins, professora da Universidade Federal de Goiás e autora de uma tese sobre capitalismo dependente, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do PT<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, mostrou como desigualdades socioeconômicas, racismo e divisão sexual do trabalho se articulam na produção de obstáculos ao acesso à justiça e à efetivação de direitos pelas classes populares. Sidélia Silva, cientista política, uma das organizadoras do evento e ativista do Coletivo Lélia Gonzales, fez uma análise sobre os impactos da COVID na população carcerária, refletindo sobre interseccionalidade, desigualdades e seletividade penal<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O segundo dia de evento começou com um debate entre Luciana Gross Cunha, professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, membra do Conselho da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e especialista em acesso à justiça e desigualdades<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>; e Isadora Brandão, coordenadora do Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública paulista<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Nesse debate, foi possível compreender os limites e as potencialidades da defesa institucional de direitos junto ao Judiciário, e da assistência jurídica gratuita prestada pela Defensoria Pública.
Na sequência, e encerrando o evento, um painel de experiências de ativismo e defesa de direitos reuniu Magali Mendes, uma das organizadoras do evento, representando as Promotoras Legais Populares – Cida da Terra<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>; Raquel Balbina Teixeira, advogada e militante do Coletivo Lélia Gonzales; e Sheila Carvalho, advogada da Coalizão Negra por Direitos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Este painel serviu para que o público conhecesse o trabalho dessas organizações e também as dificuldades por elas enfrentadas, e assim demonstrou a diversidade e a força do ativismo por direitos mantido pelos movimentos negros e de mulheres.
Todas essas exposições permitiram que o fórum “Raça, gênero e classe na justiça brasileira” apresentasse ao público um panorama de questões e perspectivas teóricas e políticas que atualizam o debate sobre desigualdades e justiça no Brasil. Destaco um ponto que considero especialmente importante para o desenvolvimento futuro desse debate: embora a criminologia e as sociologias da violência e da justiça brasileiras sempre tenham apresentado graus variados de engajamento no debate público, no ativismo ou na gestão pública<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, parece haver uma mudança significativa ocorrendo – tanto na perspectiva acadêmica quanto na da relação da sociedade civil com as políticas de justiça e segurança.
<blockquote class="jota-article__eye">No debate acadêmico, a influência crescente e recente do feminismo negro estadunidense em diversos campos das humanidades tem levado a uma mudança, no campo dos estudos criminais, das perspectivas epistemológicas e teóricas que informam a produção científica.</blockquote>
As análises institucionais, etnográficas e sociológicas que caracterizam a sociologia da violência e da justiça no Brasil, e as teorias hegemônicas que orientam boa parte da criminologia crítica brasileira tem sido acompanhadas, em tempos mais recentes, pelas referências aos trabalhos de intelectuais negras como Angela Davis, Patricia Hill Collins e Michele Alexander (cujas obras têm sido traduzidas e publicadas em português nos últimos anos)<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, incorporadas no debate local por intelectuais negras brasileiras como Juliana Borges, Carla Akotirene e Winnie Bueno<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> (cujas publicações e intervenções no debate público extrapolam os muros da academia).
Do ponto de vista do ativismo, historicamente a militância por direitos humanos que se dedicou a problemas de justiça, segurança e direitos humanos esteve em geral associada a posições sociais e políticas de elite: as Comissões de Justiça e Paz da Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil, as organizações de direitos humanos formadas principalmente por advogados, financiadas e inspiradas por organizações internacionais<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>; recentemente, porém, temos visto crescer o protagonismo de movimentos populares, especialmente ligados ao movimento negro e às mães de vítimas da violência de Estado, que direcionam suas reflexões e ações para os problemas da seletividade penal, da violência policial e do genocídio da juventude negra<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Esses dois processos de mudança, na academia e no ativismo, não parecem ser totalmente independentes um do outro. Como apontam Aline Passos e Lucas Alencar de Araújo a respeito do abolicionismo penal brasileiro (e acredito que sua análise pode se estender, ao menos como hipótese, a todo o campo da sociologia da violência e da justiça, e à criminologia em geral no Brasil<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>), “os fluxos entre o abolicionismo na academia e nos movimentos sociais são hoje tão intensos que não seria exagero dizê-los um só, tudo junto e misturado.”<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> Isso se deve, muito provavelmente, ao aumento do ingresso de pessoas negras nos cursos superiores nas últimas décadas, à difusão e à circulação de informações pela internet e, também, às reconfigurações do movimento negro e das políticas públicas de inclusão e igualdade que colocaram o feminismo e a luta antirracista como pautas políticas centrais no Brasil contemporâneo, apesar dos retrocessos dos últimos anos e dos bloqueios de sempre<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>.
Do ponto de vista das políticas de justiça e segurança, por fim, a mudança mais perceptível é a da piora de todos os indicadores que demonstram a incapacidade da justiça brasileira em proteger a vida e os direitos, ao mesmo tempo em que intensifica suas intervenções seletivas no sentido do aumento das mortes e do encarceramento de jovens negros e pobres, com efeitos perversos e difusos sobre toda a rede de relações sociais que envolvem sujeitos, famílias, comunidades e territórios historicamente violentados e segregados. A esse processo, soma-se ainda a ascensão recente de militares, policiais e populistas de direita – atores que, embora há anos sejam protagonistas das políticas e dos debates sobre justiça e segurança, ganharam recentemente ainda mais centralidade com a crise de governos e partidos de esquerda e a eleição de Bolsonaro em 2018.
A essas mudanças nas esferas acadêmica, do ativismo e do Estado, o campo de estudos sobre justiça e segurança no Brasil deve responder aumentando seu raio de interlocução com novas referências teóricas e novos sujeitos políticos, a partir da constatação de que as possibilidades reformistas colocadas pelo regime de 1988 muito dificilmente se apresentarão novamente tão cedo ou da mesma forma, e de que não se pode mais compreender ou transformar o atual estado de coisas sem se articular raça, gênero e classe como ponto de partida e de observação de futuras investigações.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/roD5SwCzhLI
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Juliana Borges, O que é encarceramento em massa?, Feminismos Plurais (Belo Horizonte: Letramento, 2018).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Juliana Borges, Prisões: espelhos de nós (São Paulo: Todavia, 2020).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Carla Benitez Martins, “Distribuir e punir? Capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)” (Tese de Doutorado em Sociologia, Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 2018), http://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/8995/5/Tese%20-%20Carla%20Benitez%20Martins%20-%202018.pdf.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Sobre o trabalho do Coletivo Lélia Gonzales, entre outras organizações de mulheres negras na cidade de Campinas, ver Sidélia Luiza de Paula Silva, “Articulação feminista em Campinas-SP: uma reflexão sobre interseccionalidade e partidade política” (Paper, IV Conferência Internacional Greves e Conflitos Sociais, São Paulo, 2018), http://www.iassc2018.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozMzoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjI6IjkxIjt9IjtzOjE6ImgiO3M6MzI6ImMzMDBmNmY1NTM4NTI1ZjBhNjc3Njk3MzA5YmNhODc5Ijt9.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ver, entre outros: Fabiana Luci de Oliveira e Luciana Gross Cunha, “Medindo o acesso à Justiça Cível no Brasil”, Opinião Pública 22, no 2 (2016): 318–49, https://doi.org/10.1590/1807-01912016222318.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Para conhecer o trabalho desse Núcleo da Defensoria Pública paulista, ver https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=3322
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Sobre o trabalho das Promotoras Legais Populares em Campinas, ver “Promotoras Legais Populares de Campinas ganham espaço para orientar mulheres". Rádio Brasil Campinas, acessado 17 de dezembro de 2020, https://brasilcampinas.com.br/promotoras-legais-populares-de-campinas-ganham-espaco-para-orientar-mulheres.html.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> “Coalizão Negra Por Direitos”, Coalizão Negra Por Direitos, acessado 17 de dezembro de 2020, https://coalizaonegrapordireitos.org.br/.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Luiz Eduardo Soares, “A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas”, Estudos Avançados 21, no 61 (2007): 77–97; Luiz Eduardo Soares, “Novas políticas de segurança pública”, Estudos Avançados 17, no 47 (2003): 75–96, https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000100005; Máximo Sozzo, “Criminología, mundo del derecho y modos de compromiso público: exploraciones sobre el caso de Argentina.: Exploraciones sobre el caso de Argentina”, Tempo Social 32, no 3 (2020): 109–46, https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2020.176931.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Angela Davis, Estarão as prisões obsoletas?, 2o ed (Rio de Janeiro: Difel, [s.d.]); Patricia Hill Collins, Pensamento feminista negro (São Paulo: Boitempo, 2019); Michelle Alexander, A nova segregação: racismo e encarceramento em massa (São Paulo: Boitempo, 2018).
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Borges, O que é encarceramento em massa?; Borges, Prisões: espelhos de nós; Winnie Bueno, Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins (Porto Alegre: Zouk, 2020); Carla Akotirene, Ó pa í, prezada! Racismo e sexismo institucionais tomando bonde nas penitenciárias femininas (São Paulo: Pólen, 2020).
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Para um histórico e análises sobre mudanças da advocacia em direitos humanos no Brasil, ver Fabiano Engelmann, “Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas”, Lua Nova: Revista de Cultura e Política, no 69 (2006): 123–146; Fábio Sá e Silva, “Hegemonia e contra-hegemonia na globalização do direito: a ‘advocacia de interesse público’ nos Estados Unidos e na América Latina”, Revista Direito e Práxis 6, no 10 (2015): 310–376, https://doi.org/10.12957/dep.2015.15408; Flávia Carlet, “Advocacia Popular: práticas jurídicas contra-hegemônicas no acesso ao direito e à justiça no Brasil”, Revista Direito e Práxis 6, no 10 (2015): 377–411, https://doi.org/10.12957/dep.2015.15409.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Sobre os movimentos populares contra a violência de Estado, ver Vera da Silva Telles et al., “Combatendo o encarceramento em massa, lutando pela vida”, Caderno CRH 33 (2020): 1–16; Adriana Vianna e Juliana Farias, “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”, Cadernos Pagu, no 37 (2011): 79–116, https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200004; Adriana Vianna e Laura Lowenkron, “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens”, Cadernos Pagu, no 51 (8 de janeiro de 2018): e175101, https://doi.org/10.1590/18094449201700510001.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> No mesmo sentido, ver Camila Cardoso de Mello Prando, “A Criminologia Crítica no Brasil e os estudos críticos sobre branquidade”, Revista Direito e Práxis 9, no 1 (2018): 70–84, https://doi.org/10.1590/2179-8966/2017/25378.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Aline Passos, “O abolicionismo penal brasileiro e o desembarque da branquitude”, Revista Cult, 15 de dezembro de 2020, https://revistacult.uol.com.br/home/o-abolicionismo-penal-brasileiro-e-o-desembarque-da-branquitude/.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Sobre as mudanças no movimento negro brasileiro, ver Cristiano dos Santos Rodrigues, “Movimentos Negros, Estado e participação institucional no Brasil e na Colômbia em perspectiva comparada” (Tese de Doutorado em Sociologia, Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2014); sobre as divisões do movimento negro em resposta ao recente assassinato de João Alberto Freitas pela equipe de segurança de uma loja da rede Carrefour de supermercados, ver Serge Katembera, “Ação institucional ou confronto: morte de João Beto escancarou a divisão no movimento negro”, The Intercept Brasil, 17 de dezembro de 2020, https://theintercept.com/2020/12/17/acao-institucional-ou-confronto-morte-de-joao-beto-escancarou-a-divisao-no-movimento-negro/.

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JOTA

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