Opinião e Análise

Roberto Fragale Filho

Quando ouvi falar pela primeira vez em profissionalização precoce, eu era um protagonista da discussão sobre as diretrizes curriculares para o ensino do Direito, que, depois de muitas idas e vindas, desembocaria na edição da já revogada Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004. Profissionalização precoce era parte do diagnóstico feito por Édson Nunes em seu livro “Futuros possíveis, passados indesejáveis”, que discutia o sistema de avaliação do ensino superior, o selo de qualidade criado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Exame Nacional de Cursos, popularmente conhecido como Provão.
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Embora tudo aquilo fosse para mim uma discussão abstrata, ela fazia enorme sentido, seja porque ela me fazia reviver os dilemas pessoais que enfrentara quando fiz minhas escolhas acadêmico-profissionais, seja porque, como professor, eu testemunhava as hesitações de meus alunos diante de alternativas profissionais precárias e incertas.
Não foram poucas as ocasiões em que com ele discuti o sentido daquela expressão e o impacto que ela carregava sobre o modelo de ensino superior que havíamos abraçado, sem formações genéricas de transição, sem troncos comuns por áreas. A especialização inicia-se na porta de entrada do ensino universitário. Nesse debate improvável, Édson era como um amigo imaginário que contestava permanentemente meus argumentos. Eu quisera ser professor de história e terminara juiz do trabalho, além de escritor frustrado. Em outras palavras, nossas escolhas profissionais não são um resultado necessário de nossas trajetórias acadêmicas.
Peço licença ao leitor para seguir em uma toada pessoal, pois esse debate abstrato, cujas angústias foram apagadas pelo tempo, ganhou, contudo, contornos radicalmente concretos durante o primeiro ano pandêmico, que correspondeu justamente ao terceiro ano do ensino médio de minha filha mais velha. O que era para ser celebrado e vivido como uma transição relativamente tranquila para o ensino superior transformou-se em uma enxurrada de incertezas. De fato, por conta da pandemia, ela fez a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em um contexto totalmente diferente, marcado por um ensino precário, distanciamento social e absenteísmo. O resultado positivo do ENEM foi devidamente celebrado, mas, quando chegou o momento de fazer suas escolhas por meio do Sistema de Seleção Unificada (SISU), o sentido abstrato da profissionalização precoce ganhou assustadora concretude, pois se fazia necessário escolher uma carreira e um lugar para realizar seus estudos.
Embora não houvesse dúvidas quanto à sua opção pelo curso de cinema, a escolha do lugar se revelou bastante complexa. Com pontos suficientes para ingressar no curso desejado na Universidade Federal de Pernambuco, ela resistia à ideia de desistir de seu desejo de ingressar na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Embora tivesse pontos suficientes para migrar para o Nordeste, ela preferiu esperar por uma reclassificação que não veio.
Passados alguns meses, ela se inscreveu na chamada do segundo semestre do SISU, sem que houvesse mudança nas circunstâncias de seu dilema universitário. Classificada em sétimo lugar na fila de espera do curso desejado, que não havia reclassificado ninguém no certame anterior, ela optou por inscrever uma segunda opção com mudança de curso para jornalismo.
Quando o resultado saiu e ela foi chamada para sua segunda opção, o júbilo foi imediato. Era uma escolha racional que fazia sentido, pois a chance de ser chamada para sua primeira opção era ínfima, afinal, no semestre anterior, ninguém da lista de espera fora chamado. Comemoramos e ficamos todos felizes pelo seu sucesso. Dez dias mais tarde, quando saiu a reclassificação, o mundo desabou com a informação que haviam sido chamados onze candidatos da lista, ou seja, se ela tivesse apostado no improvável, ela teria sido chamada para sua primeira opção. Repito: o mundo desabou levando de roldão a frustrada escolha, que não mais era possível. A alegria do êxito foi obscurecida pela frustração do percurso acadêmico idealizado como antessala da profissionalização desejada.
No mesmo dia, comentei a situação com meus poucos alunos de uma disciplina optativa do curso de Direito e a reação me surpreendeu. Com efeito, a conversa ganhou contornos inimagináveis, quando eles compartilharam comigo suas improváveis trajetórias. Eram pouco mais de dez alunos, todos com um percurso errático, cheio de reviravoltas. Entre meus alunos, havia dois que tinham concluído seus estudos em informática e engenharia do petróleo, antes de migrar para o curso jurídico. Havia também quem tivesse realizado um percurso mais errático, sem conclusão prévia de curso superior.
Estupefato, descobri que um aluno tinha começado o curso de economia e migrado para medicina veterinária, antes de dirigir-se para o Direito. Outro havia cursado, inicialmente, um semestre de relações internacionais. Havia também quem tivesse começado o curso de biologia, migrado em seguida para o curso de química e, finalmente, chegado ao Direito. Havia ainda quem tivesse desejado e tudo feito para ingressar no curso de Direito da Universidade de São Paulo, mas se encontrado no campus de Macaé, da Universidade Federal Fluminense.
Ao cabo, nenhum dos meus alunos parecia estar ali como fruto de sua primeira e precoce opção profissional. Eu estava, portanto, diante de uma dezena de estudantes extremamente qualificados, que descreviam os dramas de uma profissionalização precoce, que sequer lhes permitia a certeza inequívoca de suas escolhas.
Compartilhei com minha filha aquelas incertezas discentes na expectativa que elas ajudassem a entender que suas escolhas comportavam uma mais que compreensível indecisão também presente no seu drama. Não há escolha profissional inequívoca aos dezoito anos, talvez nem mesmo aos vinte e poucos. Foram necessários alguns dias para digerir a surpresa e para entabular uma reflexão sobre o significado dessas escolhas, ainda mais diante de um contexto em que os dados estatísticos evidenciam que menos da metade dos egressos do ensino superior apresentam uma adequada aderência entre formação e exercício profissional.
<blockquote class="jota-article__eye">No Direito, conforme alertava o próprio Édson Nunes, menos da metade dos alunos terminam trabalhando em alguma profissão correlata.</blockquote>
Mas, como diziam meus pais, o curso de Direito abre possibilidades: o egresso pode fazer um concurso público, pode tentar a carreira diplomática, pode postular uma carreira de Estado ou pode até mesmo advogar. Estudar Direito seria, portanto, como abrir um leque profissional, cujas dimensões seriam gigantescas. Na verdade, são tão ironicamente gigantescas que entre os egressos do curso jurídico há cineastas, jornalistas e até mesmo cantor de ópera. Mesmo assim, quis acreditar nessa perspectiva aparentemente positiva, mas que, no fundo, só faz ressaltar que nossas escolhas acadêmicas estão profundamente marcadas por uma profissionalização precoce, pelo peso de uma decisão profissional para a qual, aos dezoito anos, nossa caixa de ferramentas ainda está bem desprovida.
Minha filha fez sua matrícula e segue pensando sobre o impacto de suas escolhas acadêmicas sobre seu futuro profissional. Efetivamente, não sei se suas escolhas atuais irão refletir sobre o que ela fará como profissão em um futuro talvez ainda distante, mas tenho certeza que minha resposta de pai é válida para todos os leitores: há tempo para recomeçar. No final, talvez ela não termine nem cineasta nem tampouco jornalista.
Há algo mais importante que o êxito no ENEM ou o ingresso no curso ou na universidade de sua escolha: satisfação profissional. Não é simples, nem tampouco garantido, mas a certeza de que os ambicionados caminhos prováveis não resultam necessariamente em êxito é algo que nos faz acreditar que escolhas profissionais precoces nada asseguram quanto ao que realmente importa para nossas escolhas futuras. No fundo, o que conta mesmo é a certeza de que apenas o tempo dirá quais foram as decisões que, em um passado distante, efetivamente impactaram nossa trajetória profissional.
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JOTA

Apenas o tempo dirá quais foram as decisões que efetivamente impactaram nossa trajetória profissional

Profissionalização precoce: o drama de escolher o futuro

Apenas o tempo dirá quais foram as decisões que efetivamente impactaram nossa trajetória profissional