Opinião e Análise

Bruna Holanda

Roberto Fragale Filho

Em março de 2020, o mundo enfrentou uma grave crise sanitária com a pandemia da Covid-19, que resultou na suspenção de diversas atividades. Naqueles dias, o mundo ficou em suspenso. A produção de séries estatísticas dos mais variados assuntos não foi interrompida, mas parece-nos intuitivo que os dados desse período evidenciarão um intervalo atípico, que, entretanto, pode talvez sugerir a distinção entre uma antiga e outra nova lógica de trabalho. Há um antes e um depois (assumindo que já se pode falar em um “depois”) da crise sanitária quando se aborda a atuação dos tribunais brasileiros?
É certo que, até a decretação da pandemia, quase todas as atividades da justiça, em especial, as audiências, ocorriam de modo essencialmente presencial. O recurso à videoconferência era uma exceção utilizada quase que exclusivamente em audiências criminais. Contudo, após a adoção das regras de distanciamento social, impôs-se uma realidade distinta, que exigiu um importante esforço regulatório por parte do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>), aperfeiçoando o projeto de informatização do processo judicial, previamente iniciado com a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm">Lei 11.419</a>, de 19 de dezembro de 2006.
Por meio de sua Resolução n. 345, de 9 de outubro de 2020, o CNJ instituiu o projeto Juízo 100% Digital. Essa é uma das dimensões da chamada Justiça 4.0, somando-se ao Balcão Virtual, à Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud), à Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-BR) e aos Núcleos de Justiça 4.0. Cada uma delas corresponde a uma forma de tornar o Judiciário, em sua arquitetura virtualizada, cada vez mais um serviço, desvinculando-o do lugar como referência.
Com a incorporação dessas novas tecnologias, surgem, entretanto, diversas dúvidas. Talvez uma das mais importantes seja sobre transparência, já que, em geral, as plataformas não deixam a métrica de seus algoritmos tão clara. Pode-se assim, paradoxalmente, sob a alegação de se estar favorecendo a transparência, estar-se a fragilizar a publicidade, um dos princípios basilares da democracia.
Apesar de falarmos como se se tratasse de algo muito recente, a ideia de executar uma programação com inteligência quase humana data da década de 1950. Não obstante alguns esforços acadêmicos, os estudos permaneceram estagnados nas duas décadas subsequentes, acarretando uma redução de investimentos e até desinteresse na área. A Inteligência Artificial (IA) teve de se ressignificar e passou a ser gênero de duas espécies: General AI ou IA forte (máquinas e programas inteiramente autônomos de decisões humanas) e Narrow AI ou IA fraca (cujo propósito é a resolução de problemas de repetição e objetivos de baixo nível de complexidade).
Dadas impossibilidades técnicas disponíveis na indústria de TI, atualmente, o mercado visa à automação, mas ainda anda a passos curtos com aplicativos, máquinas e programas que demandam o constante aperfeiçoamento humano e seus aprendizados (Machine Learning). Isso nos dá uma pista sobre a natureza das plataformas inclusas no projeto Juízo 100% Digital. De fato, eles podem aprender, mas com a observância de dados já postos, sem que exista uma ponderação.
Como aperfeiçoar a IA de modo que ela reconheça as singularidades decisórias e não torne os exercícios individuais meros aparatos de uma institucionalização? O algoritmo, por ora, é mero reprodutor de sequências matemáticas. Esses sistemas podem incorrer em erros tão básicos como eventuais descompassos demonstrados na atribuição de categorias, assim como o agrupamento de processo por matéria, ou da importância que o sistema dará a cada uma das palavras-chave na busca por termos.
É grande o risco de que uma solução inovadora ou o uso de técnica da distinção (distinguishing) sejam afastados pelo sistema pelo fato de estes não se coadunarem ao que é costumeiramente adotado pelas cortes. A reputação judicial atribuída aos julgadores de cortes superioras difere da ocorrida em tribunais mais regionalizados.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Naquelas, temos uma personificação das personagens, enquanto estas mantêm uma certa unificação entre seus membros, mas isso não deve implicar em um controle decisório.
Isso sem abordarmos o contingente populacional que segue sem acesso constante à internet (as categorias dos parcialmente conectados, “subconectados” e os chamados “desconectados”). Como ampliar o alcance jurisdicional nessa realidade precária? São muitas as dúvidas e os desafios que cercam o uso da tecnologia em uma área tida como tão conservadora quanto a jurídica. Não apenas para magistrados e servidores, mas para todo a população que fará uso de seu serviço. E como pleitear esse avanço se temos cerca de 75,7 milhões de brasileiros que têm acesso à internet entre 0 e 19 dias por mês?<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Até o momento, talvez tenhamos mais perguntas do que respostas, mas o modelo de trabalho não presencial desenhado a partir dos momentos mais críticos da pandemia da Covid-19, foi capaz de redimensionar a questão do espaço/tempo, do real/virtual, sobrepondo vida privada à pública. A nova lógica de interação proporcionou uma desmaterialização<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> ainda maior e que vem sendo construída, paulatinamente, desde o uso da máquina de escrever, passando para programas de edição de texto até a digitalização dos processos.
O modelo fabril de controle vertical, aos poucos, vai sendo cada dia mais abandonado pelo poder judiciário. Apesar disso, Rover (2018) apontava no sentido da manutenção da organização territorializada. Contudo, se pensarmos no porvir, talvez até isso esteja com os dias contados. O próprio conceito de território não é estanque e perpassa o sentido de limites geográficos e jurisdicionais. Tudo leva a crer que plataformas digitais venham a apostar no metaverso que, de modo muito simplificado, seria uma realidade aumentada na qual indivíduos interagiriam com seus avatares, que são suas representações. No processo de desconstruirmos territórios eminentemente físicos e o reconstruirmos com esse novo conjunto de dados, as Lands, teremos a desterritorialização e a sua reterritorialização.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GAROUPA, Nuno; GINSBURG, Tom. Judicial Reputation: a comparative theory. 1. ed. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2015.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> PwC. O abismo digital no Brasil. 2022. Disponível em: <a href="https://www.pwc.com.br/pt/estudos/preocupacoes-ceos/mais-temas/2022/o-abismo-digital-no-brasil.html">https://www.pwc.com.br/pt/estudos/preocupacoes-ceos/mais-temas/2022/o-abismo-digital-no-brasil.html</a>. Acesso em: 15 ago. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ROVER, Aires José. “O princípio da conexão e as perturbações estruturais no processo judicial eletrônico”. Revista Sequência (Estudos Jurídicos e Políticos), v. 39, n. 80, p. 202-224, 2018. Disponível em: <a href="https://www.scielo.br/j/seq/a/5ZSTpFgVhgdfRGdMNFC669n/?format=pdf&amp;lang=pt">https://www.scielo.br/j/seq/a/5ZSTpFgVhgdfRGdMNFC669n/?format=pdf&amp;lang=pt</a>. Acesso em: 15 ago. 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.

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JOTA

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