Opinião e Análise

Lucas Pilau

Fabiano Engelmann

Nas últimas duas décadas, os incrementos corporativos no âmbito das instituições judiciais e da Polícia Federal conduziram à criação de departamentos e coordenações especializadas em lavagem de dinheiro, combate à corrupção e cooperação internacional. Nesse quadro, proliferaram as operações anticorrupção<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> que contribuíram – em especial no caso das polícias – para promover uma identidade muito forte entre a “moralização da política” e a ação dessas corporações.
A mobilização de diferentes modelos de operação contou sempre com grande cobertura midiática e foi alicerçada na simbologia da “capacidade técnica” e na certificação jurídica da persecução penal contra empresários e políticos poderosos. Essa dinâmica se fez presente nos diferentes “escândalos político-judiciais” dos últimos anos, como Banestado, Satiagraha, Mensalão, Lava Jato etc. Entre os efeitos políticos desses processos, podemos situar as apostas eleitorais de agentes que estiveram na liderança das operações, assim como uma face menos visível: as candidaturas e a ascensão de policiais e delegados a postos de poder.
Ponto ainda pouco explorado na análise política, os usos político-eleitorais que os atores do sistema de justiça criminal fazem da legitimidade acumulada enquanto cumprem suas funções no interior do Estado merecem atenção. Trata-se de um efeito de conjuntura ou de uma dinâmica que tende a mostrar mais uma via de produção de elites políticas? Conforme observamos nas campanhas eleitorais de agentes oriundos das forças-tarefas da Lava Jato, a defesa de punições mais duras para políticos corruptos é o mantra central evidenciando a continuidade da identidade corporativa.
Por óbvio, esses movimentos de moralização não são novidades na história política brasileira, se levarmos sua recorrência na retórica que embasou diferentes candidaturas e grupos políticos que se posicionaram contra o “sistema político”. A novidade que se apresenta é a potencialização dessa retórica a partir de recursos de poder persecutório acumulados no âmbito de instituições que reivindicam sua autonomia em relação ao espaço político. No quadro das operações anticorrupção com a espetacularização de prisões e buscas e apreensões, a Polícia Federal destacou-se junto com o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a>. A centralidade dessa agenda no âmbito dessas instituições também diz muito sobre o contorno que elas vêm assumindo no regime democrático.
Nas décadas de 1980 e 1990, parte importante da agenda da PF estava direcionada para as políticas de segurança centradas no “combate ao comunismo” e ao tráfico internacional de drogas. Nos anos 2000, os investimentos passam a se direcionar para o “combate à corrupção”. Esta nova etapa esteve atrelada ao contexto histórico-político da instituição, que a partir de 2003 obteve grande incremento de recursos do governo federal. Nesse período, tanto orçamento, estrutura e contratação de servidores, quanto número de operações policiais cresceram exponencialmente<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Nesse embalo, os regimentos internos do órgão evidenciam incrementos de estruturas relacionadas à anticorrupção, como a Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (2003), Divisão de Repressão a Crimes Financeiros (2003) e coordenações-gerais de Repressão à Corrupção (2017) e de Repressão à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (2018). Além disso, a PF esteve inserida na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e em fóruns internacionais reconhecidos pela produção de normativas, como o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI/FATF).
Quando agrupamos as operações realizadas entre 2009 e 2018 pelas Delegacias de Crimes Financeiros (DFIN), Crimes Previdenciários (DPREV), Crimes Fazendários (DFAZ) e do Serviço de Repressão a Desvios de Recursos Públicos (SRDP) existentes nos 26 estados da federação e no Distrito Federal, percebe-se que houve um aumento considerável de operações passíveis de serem enquadradas como de anticorrupção, constando apenas uma leve queda em 2018. Em 2009, foram 123; em 2010, 131; em 2011, 161; em 2012, 150; em 2013, 159; em 2014, 169; em 2015, 280; em 2016, 404; em 2017, 498; e em 2018, 451<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
A proliferação das operações anticorrupção foi acompanhada pelo crescimento das candidaturas de policiais federais à Câmara dos Deputados. Após a análise das campanhas eleitorais, podemos considerar como ponto de inflexão as eleições de 2010. A partir desse ano, o discurso em torno da segurança pública abre espaço para apresentações dos candidatos com a mobilização da retórica das operações anticorrupção.
Em alguns casos, aparece a ideia de “probidade” ou o apelo direto à certificação de honestidade que o pertencimento corporativo aporta à candidatura. Além disso, os discursos de campanha se centram em promessas de acabar com o “foro privilegiado” e punir com mais severidade os políticos, replicando o que aparece na retórica de outras candidaturas de maior expressão identificadas às “operações de moralização da política”.
Tabela 1: Candidatos da Polícia Federal à Câmara dos Deputados<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
<table>
<tbody>
<tr>
<td width="101">Ano</td>
<td width="101">2002</td>
<td width="101">2006</td>
<td width="101">2010</td>
<td width="101">2014</td>
<td width="101">2018</td>
</tr>
<tr>
<td width="101">Candidatos</td>
<td width="101">9</td>
<td width="101">6</td>
<td width="101">10</td>
<td width="101">20</td>
<td width="101">30</td>
</tr>
<tr>
<td width="101">Eleitos</td>
<td width="101">0</td>
<td width="101">1</td>
<td width="101">2</td>
<td width="101">4</td>
<td width="101">5</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Nas eleições de 2018, o “combate à corrupção” esteve no centro do debate eleitoral, o que permitiu aos policiais-candidatos fazerem usos dessa retórica para reverberar um discurso de renovação voltado a substituir uma suposta “velha política”. Nesse quadro, a identidade corporativa favoreceu a apresentação  de candidatos como outsiders do espaço político. Na página institucional de um  deputado eleito lê-se: Trabalhei as duas últimas décadas diretamente em operações de combate ao crime organizado e à corrupção, no cargo de Delegado de Polícia Federal. Deputado estou, Delegado Federal sou! [...]”.
A despeito das recomposições corporativas e dos papéis institucionais atribuídos no pós-redemocratização às instituições judiciais e à Polícia Federal, as fronteiras que asseguram autonomia e independência política podem servir também para operações de crédito visando apostas eleitorais.
Acompanhar essa dinâmica nas <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições 2022</a> em um cenário de aparente refluxo da retórica anticorrupção nos permitirá uma visão mais clara dos potenciais de ampliação ou esgotamento desses jogos que envolvem a identidade corporativa.  Além disso, esse processo eleitoral poderá mostrar o efeito rebote do “sistema político” em direção a seus participantes-detratores.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a>  Para uma visão geral, ver a coletânea  ENGELMANN, F.; PILAU, L. B. (org.) Justiça e poder político: elites jurídicas, internacionalização e luta anticorrupção. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> AZEVEDO,R.G.; PILAU, L. B. Os impactos da Operação Lava Jato na Polícia Federal brasileira. In: KERCHE, F.; FERES JÚNIOR, J. Operação Lava Jato e a democracia brasileira. São Paulo: Contracorrente, 2018.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Esses dados foram disponibilizados pela Polícia Federal via Lei de Acesso à Informação (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm">LAI</a>), através do Pedido n.º 08850000120201926
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Dados da Tese de Doutoradoem andamento “A Polícia Federal no campo político: entre investimentos corporativos e reconversões políticas” desenvolvida por Lucas Pilau junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS. Foram analisados dados contidos em vídeos de campanhas, blogs, entrevistas concedidas, entre outros, de 48 dos 75 candidatos à Câmara dos Deputados com origem na Polícia Federal.

O Movimento Vem Pra Rua realiza manifestações em todo o país. O ato é em apoio à Operação Lava Jato e contra a corrupção e a forma de se fazer política no Brasil (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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JOTA

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