Para que nos serve o direito? O título do livro é cativante (À quoi nous sert le droit, Paris, Gallimard, Folio Essais, 2015, 522 p., cuja tradução portuguesa deve ser publicada nos próximos meses). Ele convida o leitor a se perguntar sobre suas próprias representações do direito. Quer sejamos magistrado, advogado, estudante, professor, ativista ou político, temos alguma compreensão dos fenômenos jurídicos e de suas inscrições sociais. O livro do sociólogo Jacques Commaille nos fornece um espelho de múltiplas facetas para ver de perto e, sobretudo, de longe e com altura, os movimentos jurídicos contemporâneos. Obra de maturidade e de síntese, trata-se também de um livro estimulante de cuja leitura não saímos ilesos, mas engrandecidos por uma nova lucidez.
Fermento de sua crítica, o autor nos convida a considerar uma dupla legalidade. A primeira face, clássica, corresponde à representação dominante da legalidade, aquela de uma razão encarnando a ordem, frequentemente estatal, propagada por discursos de visão completa e de autoridade. Mito da juridicidade perpetuada pelos pontífices de ontem e de hoje. A segunda face, alternativa, corresponde a um direito em ação, age como recurso, conectada às realidades sociais. Desde Ehrlich, fundador da sociologia jurídica, vários pensadores cavaram esta trincheira, seja Gurvitch em França ou ainda os promotores do realismo jurídico nos Estados Unidos. No entanto, são, sobretudo, os movimentos sociais, os cidadãos ativos que renovaram e reinventaram as práticas jurídicas, inclusive nos problemas concretos relacionados com a habitação, o transporte, a saúde, o trabalho, a vida familiar, problemas que são também políticos. Assim delineada, a oposição entre um direito transcendente vindo de cima (uma referência) e um direito imanente impulsionado a partir de baixo (um recurso) fornece a linha dinâmica de uma viagem de alta tensão.
O autor, sensível ao pluralismo e à vitalidade desta segunda face da legalidade, mostra suas várias atrações. Inicialmente, no plano metodológico, isso permite o descarte simultâneo dos juristas cegos ao contexto social e os pensadores das ciências sociais que denigrem o direito ou que lhe atribuem um papel de menor importância para a compreensão da sociedade. Do lado jurídico, os profissionais da área jurídica envoltos em sua certeza de exercer um ofício institucional não são poupados. A constatação diz respeito ao seu declínio de popularidade, a uma crise de confiança do público. O clima é pouco propício para que eles injetem um vento de legitimidade na vida política e democrática. Do lado das ciências sociais, autores como Bourdieu e Foucault não são menos discutidos, particularmente quando eles tendem a subestimar a importância do jurídico. É claramente o oposto, nos diz Jacques Commaille, pois é quando o direito é levado a sério que ele nos permite de melhor compreender as transformações sociais.
Em seguida, no plano geojurídico, aquele dos territórios do direito, a consideração dos novos modos de legalidade permite relativizar a escala nacional para melhor compreender as questões da globalização jurídica. Inútil permanecer atracado ao conceito weberiano associando o direito de um Estado a um território delimitado. A dialética do local e do global, as exigências de distância e de proximidade conduziram a uma desorientação, como se quiséssemos encontrar nosso caminho com um mapa obsoleto. É preciso dizer que o aspecto caótico, a visão caleidoscópica de uma miríade de sistemas dão vertigem àqueles que buscam encontrar coerência a partir dos escombros da ordem antiga. Nesta paisagem em recomposição, a lógica neoliberal perturba o perímetro jurídico dos Estados e contribui à sua instrumentalização gestionária. Às vezes, as normas de gestão, as normas técnicas e de qualidade tendem a desempenhar um papel normativo preponderante. A frágil reação dos Estados explica em parte as mobilizações objetivando combater a globalização (counter-hegemonic globalization), quer pelas vias políticas de contestação, ou ainda jurídicas, quando se trata de prover justiça no nível internacional, inclusive para as violações dos direitos humanos cuja autoria ou cumplicidade recairia sobre empresas multinacionais.
Enfim, no plano cronojurídico, aquele das temporalidades do direito, os atores possuem concepções divergentes conforme suas culturas, expectativas e interesses. O tempo da justiça não é aquele dos litigantes; o tempo da reforma não é aquele dos protestos sociais; o tempo da estabilidade institucional não é aquele dos cálculos políticos. Jacques Commaille nos convida aqui a resistir a uma concepção naturalizada do tempo para considerá-lo como uma construção social e jurídica. A matriz clássica do direito-referência é aquela de um tempo longo, estruturado pela ideia de permanência, patinado por uma lentidão que seria petrificada de sabedoria; o direito-recurso é animado pela urgência da mudança, o desejo de enfim responder às legítimas expectativas sociais, o mais rapidamente possível se não for imediatamente, pois é conveniente aliviar os sofrimentos e reduzir as inegalidades. Aqui, a reconexão do direito ao social implica em uma reapropriação democrática do tempo.
Ao cabo, a tese defendida nesta obra rica de citações e de exemplos é aquela do direito como algo constitutivo de uma nova ordem política. Pensar as mutações contemporâneas da legalidade, analisar o fenômeno da judicialização do político, reconhecer a ação jurídica da sociedade civil mundializada, elementos diversos que participam a uma nobre ambição de refundação da democracia. “Esta ordem política reconheceria o déficit do modelo democrático atual para conceber as condições de sua ultrapassagem com a qual os cidadãos, não apenas sujeitos, mas atores de direito, tornar-se-iam plenamente atores do político” (p. 296). Um belo programa, mas você se considera como um cidadão?
*(Tradução: Roberto Fragale Filho)