Opinião e Análise

Lígia Mori Madeira

Leonardo Geliski

Em 24 de junho de 2022, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/suprema-corte-dos-eua">Suprema Corte dos Estados Unidos</a> anulou a decisão do caso Roe v. Wade que reconheceu o aborto como um direito fundamental no país em 1973, derrubando, assim, a vedação da proibição do aborto por parte dos estados. A mudança de posicionamento do tribunal, meio século depois da primeira decisão, suscita diversos questionamentos sobre o seu reflexo nos processos de políticas públicas, da formulação e implementação ao desmantelamento.
Ao longo do último século, casos emblemáticos da Suprema Corte dos EUA, como Brown v. Board of Education em 1953 (direito à educação e combate à segregação racial), Roe v. Wade em 1973 (aborto e direitos das mulheres), Obergefell versus Hodges em 2015 (reconhecimento da união de pessosas do mesmo sexo), entre outros, demonstraram o papel dos tribunais na garantia de direitos, especialmente de minorias, cumprindo a sua tarefa contramajoritária.
A literatura de judicial politics, amparada por essas decisões, inaugura a pergunta de pesquisa sobre se e como os tribunais podem promover mudanças sociais, como nas obras “The politics of rights: lawyers, public policy, and political change”, de Stuart Scheingold <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, em “The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change?” de Gerald N. Rosenberg<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e em “Judicial Policies: Implementation and Impact” de Bradley C. Canon e Charles A. Johnson<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A literatura avança, apontando a tensão entre uma visão de expansão de direitos em resposta a violações ou déficits, e seu papel erodindo direitos e reproduzindo desigualdades sociais.
No caso Roe v. Wade, tanto a primeira decisão, que reconhece o direito ao aborto, quanto a mais recente, que restringe, constituem ações de políticas públicas das cortes, indicando o seu papel central em processos de policy making. A essa atuação denominamos judicial policy<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Mudanças de composição nas cortes podem afetar as políticas judiciais produzidas, revelando alterações de valores, metas, motivações e intenção consciente dos juízes. No caso americano, a passagem de uma corte de maioria progressista para conservadora parece indicar que, infelizmente, aquilo que foi garantido pode retroceder. Resta saber agora qual o aftermath da decisão, uma vez que a produção de política judicial responde a meandros próprios.
Na discussão de judicial policy a intersecção entre law and courts pode ser determinada pelos níveis de capacidade estatal<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Quanto maiores as disputas envolvendo agências governamentais, maior o potencial de envolvimento das cortes na arena política; quanto mais centralizado o Estado, maior a probabilidade de que legislativo e executivo atrairão ativistas para influenciar as políticas públicas. Já quanto menos centralizado o Estado, controvérsias podem gravitar em direção a uma litigância, porque o policy making fica difundido entre muitas instituições. 
No entanto, as críticas às decisões judiciais em políticas públicas abrangem prioritariamente sua interferência em processos de implementação. Ou seja, políticas desenhadas por governos e altas burocracias são submetidas a novas interpretações, redesenhos, o que afeta orçamentos, burocracias de nível de rua, beneficiários e públicos-alvo. 
E quanto a atuação judicial é no próprio processo de formulação? No caso da decisão do aborto, o que acontece quando uma política em curso originada em decisão judicial simplesmente deixa de existir? Como ficam os beneficiários nos estados que rapidamente proibiram o direito? A mídia<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> tem apontado o limbo e as consequências de inúmeras mulheres cuja vida está submetida a uma grande incerteza. 
A realidade americana, complicada pelo federalismo e a ampla competência legislativa estadual — que não proíbe que os estados tenham leis que reconheçam o direito ao aborto, veda apenas a sua proibição, sua incorporação foi ocorrendo ao longo de 50 anos, sendo que apenas alguns estados cumpriram com o posicionamento de corte constitucional por meio da criação de leis que reconhecem o direito ao aborto. Destacam-se dois cenários diferentes: o da absorção da política judicial pela arena política, com a criação de novas leis; e o da não absorção, sendo apenas a política judicial o instrumento de reconhecimento do direito tutelado. 
Em 1973, discutia-se a implementação do direito ao aborto nos estados, impondo aos poderes executivo e legislativo a adequação do sistema de saúde à nova política a ser ofertada. Agora em 2022 prospecta-se o efeito nos estados que absorveram e internalizaram a decisão, com a criação de normativas para disciplinar o acesso ao aborto legal e seguro; dos estados que, em contrapartida, não incorporaram esse direito por via normativa, dependendo exclusivamente da decisão judicial para sua concessão.
Em poucas semanas vem desenhando-se um quadro diferenciando os estados pela manutenção da legalidade duradoura do aborto, onde conquistada pela efetiva mudança legal; provisória; dos estados em que a sua prática já caminha para a proibição, indo da consideração de potencialmente ilegal, de proximamente ilegal, chegado aos casos em que já foi banida. 
Esse cenário de erosão progressiva de direitos aponta para um fenômeno de desmantelamento de políticas públicas, definido como "uma mudança de natureza direta, indireta, oculta ou simbólica que diminui o número de políticas em uma determinada área, reduz o número de instrumentos de política usados ​​e/ou diminui sua intensidade, podendo envolver mudanças nos elementos centrais da política ou podendo ser alcançada manipulando-se as capacidades de implementação e monitoramento"<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Quais as diferenças entre desmantelar direitos e garantias pela via judicial ou legislativa? Tal qual no processo de formulação legislativa, políticas judiciais estão sujeitas ao apoio político para serem traduzidas em ações. Isso parece valer também para o polo reverso. No entanto, assim como na adoção de políticas, o desmantelamento também é dependente de outros atores, para além dos poderes de estado, devendo-se contar com o comportamento da própria sociedade civil, como é o caso dos movimentos sociais, grupos de pressão, e das próprias burocracias judiciais, a exemplo do movimento “Fair and Just Prosecution” de promotores americanos eleitos, que publicaram um manifesto pelo exercício de sua discricionariedade em não acusar pessoas que vão procurar aborto<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. 
Mas é duro admitir que, mesmo tendo fundamento constitucional, as políticas oriundas de decisões judiciais parecem não contar com maior estabilidade. Infelizmente a constituição, nem mesmo a americana, parece bloquear a tomada de direitos de minorias quando conservadores ascendem a qualquer tipo de poder. Nesse caso, as políticas estão tão suscetíveis à composição dos tribunais (associada no caso americano à composição política) quanto a política eleitoral. É hora da literatura avançar ainda mais sobre como as cortes podem promover ou contribuir com o desmantelamento de políticas e o retrocesso em direitos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SCHEINGOLD, Stuart A. (1974). The politics of rights : lawyers, public policy, and political change. New Haven: Yale University Press.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ROSENBERG, Gerald N. (1991), “The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change?”, University of Chicago Press.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CANON, Bradley; JOHNSON, Charles. (1999). Judicial policies: Implementation and impact. CQ Press.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MADEIRA, Lígia Mori et al. Judicial policy diffusion: a model to analyze specialized state courts fighting organized crime in Brazil. Sociologies in dialogue. Porto Alegre, RS. Vol. 5, n. 2 (July/Dec. 2019), p. 24-51, 2019.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> HERTOGH, Marc; HALLIDAY, Simon; ARUP, Chris. (2004). Judicial Review and Bureaucratic Impact: International and Interdisciplinary Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MESSERLY, Megan. (2022), “Abortion laws by state: Where abortions are illegal after Roe v. Wade overturned”. POLITICO, publicado em 24 de junho de 2022.  Disponível em: &lt;<a href="https://www.politico.com/news/2022/06/24/abortion-laws-by-state-roe-v-wade-00037695">https://www.politico.com/news/2022/06/24/abortion-laws-by-state-roe-v-wade-00037695</a>&gt;.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BAUER, Michael W.; KNILL, Christoph. (2012), Understanding policy dismantling: An analytical framework. In: Michael W. Bauer, Andrew Jordan, Christoffer Green-Pedersen, Adrienne Héritier. (2012), Dismantling public policy: Preferences, strategies, and effects, Oxford University Press, p. 30-56.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Fair and Just Prosecution. (24 jun. 2022), “With Roe Overturned, 90 Elected Prosecutors Commit to Not Prosecute Abortions”. Disponível em: &lt;<a href="https://fairandjustprosecution.org/wp-content/uploads/2022/06/FJP-Post-Dobbs-Abortion-Joint-Statement-Press-Release.pdf">https://fairandjustprosecution.org/wp-content/uploads/2022/06/FJP-Post-Dobbs-Abortion-Joint-Statement-Press-Release.pdf</a>&gt;.

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JOTA

Mesmo com fundamento constitucional, políticas oriundas de decisões judiciais parecem não ter maior estabilidade

Riscos do desmantelamento de políticas judiciais a partir de Roe v. Wade

Mesmo com fundamento constitucional, políticas oriundas de decisões judiciais parecem não contar com maior estabilidade