Opinião e Análise

Lígia Mori Madeira

Vanessa Elias de Oliveira

Ao redor do mundo as cortes têm sido chamadas a dar respostas à pandemia, desempenhando um papel significativo de constrangimento das ações dos Executivos nacionais. As bases para as intervenções judiciais são de quatro ordens: as cortes têm escrutinado se os procedimentos seguidos contam com amparo legal; têm se engajado na revisão de direitos substantivos, considerando que as restrições de direitos são necessárias, mas devem ser proporcionais e igualmente aplicadas; têm demandado que executivos ajam, especialmente em contextos onde esses estão falhando em responder adequadamente à pandemia; por fim, têm definido sobre o adiamento de eleições, garantindo que essas decisões não sejam baseadas em fundamentos políticos<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
No Brasil não tem sido diferente. A crise sanitária sem precedentes e o agravamento da crise política têm feito do Supremo Tribunal Federal (STF) palco de embates entre partidos de oposição, governadores e o presidente da República, Jair Bolsonaro. O controle de constitucionalidade tem sido utilizado como instrumento para a contestação política de uma série de ações do governo federal na pandemia.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Uma das atitudes mais importantes foi a decisão sobre a atuação de estados e municípios na gestão da crise sanitária. Governadores de 25 dos 27 foram respaldados na manutenção das medidas de lockdown pela corte, que reconheceu a competência conjunta da União, estados e municípios em termos de saúde pública. A decisão do STF também respaldou a competência dos três níveis de governo para a vacinação obrigatória, possibilitando a adoção de medidas restritivas àqueles que não se vacinarem.
O caso brasileiro permite questionar quão robustos são os mecanismos de check and balances durante a crise de saúde e o envolvimento das cortes nas respostas à pandemia é um indicativo claro de que o poder Executivo não está totalmente sem limites, estando no mínimo forçado ao diálogo com o Judiciário.
Em se tratando especificamente do STF, como este foi mobilizado e atuou nos casos apresentados à Corte durante a crise instaurada pela Covid-19? O que a literatura nos revela sobre a judicialização da política na pandemia? Publicado essa semana na Seção Especial: A Ciência Política frente à crise do COVID-19, da Revista Brasileira de Ciência Política, em  "Judicialização da política no enfrentamento à Covid-19: um novo padrão decisório do STF?"<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>investigamos o acionamento e o comportamento do STF no enfrentamento à Covid-19 no Brasil. O artigo analisou todas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs) ajuizadas no STF entre os meses de março e novembro de 2020 relacionadas ao coronavírus, totalizando 101 ADIs, 25 ADPFs e duas ADOs. Este é mais um de uma série de trabalhos voltados a descrever o papel da Corte na condução da pandemia<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O artigo e a base de dados disponibilizada, que está em constante atualização, dado que a pandemia e sua judicialização não acabaram, fornecem importante material para aqueles que buscam compreender o tema do judiciário, federalismo e políticas públicas. Os quadros e os recursos gráficos, ressaltando-se as análises de redes, permitem conhecer os grupos de atores que acionaram o STF, as normas atacadas e sua classificação (Medidas Provisórias, demais normas federais e normas estaduais). O artigo inova ao complementar a análise quantitativa, de contagem de ações e decisões liminares, com uma análise qualitativa em relação ao tipo de norma atacada e seu desfecho, levando em conta as ações preventas, visíveis pelo agrupamento em redes.
Partindo do conceito de judicialização da política, "entendida como a crescente utilização do sistema de justiça nos casos em que a atuação dos poderes Legislativo e/ou Executivo é percebida por atores políticos e sociais como falha, omissa ou insatisfatória"<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o artigo percorre as três fases distintas do debate acadêmico sobre o tema: desde a alteração do jogo político pela possibilidade de interferência do judiciário, independente dos resultados de ativação das cortes; passando pela efetiva intervenção judicial sobre a política, reconhecendo os diferentes objetivos e padrões que levam à manutenção ou alteração do status quo através do judiciário; chegando-se à judicialização das políticas públicas em diferentes setores, como saúde, educação, habitação e assistência social.
A judicialização da política descrita nos estudos seminais indicava um padrão de favorecimento da União, em detrimento dos interesses de governos subnacionais por parte do STF, revelando uma tendência centralizadora em relação aos conflitos federativos. Além disso, eles indicavam também a propositura de ações prioritariamente por partidos de oposição, especialmente de esquerda, e governadores. A novidade da conjuntura sanitária e política nos levou ao questionamento quanto a se o padrão de judicialização da política verificado na pandemia é novo ou, ao contrário, repete o padrão verificado nos anos 1990 e início dos anos 2000. Descobrimos que, tal qual no passado, são os partidos de oposição os principais protagonistas da judicialização, seguidos por federações e confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional.
No entanto, diferentemente das fases anteriores, os governadores não figuram entre os maiores contestadores da constitucionalidade normativa. Mas a principal diferença encontrada é que agora o presidente perde mais do que ganha em conflitos com as unidades subnacionais.
<blockquote class="jota-article__eye">A pesquisa confirmou o alto grau de questionamento de atos normativos emitidos pelo presidente da República. Ele foi demandado em mais de 60% das ADIs, seguido pelos governadores, em cerca de 35% das ações. Das 65 ADIs contra normas federais, 36 investem contra 10 Medidas Provisórias propostas por Jair Bolsonaro.</blockquote>
Se o padrão de acionamento do STF reproduz em certa medida o que a literatura já conhecia quanto aos proponentes, o comportamento do tribunal revela aspectos interessantes. Em primeiro lugar, é elevado o número de liminares deferidas contra o presidente da república, bem como um alto grau de desigualdade entre as ações julgadas por ente requerido: enquanto mais de 60% das ADIs contra governos estaduais aguardam julgamento, reduz-se pela metade as ADIs contra a presidência. Conforme asseveramos no trabalho, a maioria das ADIs que contestam normas estaduais continua aguardando julgamento (63%) e, dentre as deferidas ou deferidas em parte,  84% têm como requerido o presidente da República.
Ao diferenciarmos os tipos de normas federais percebemos que residem nas ADIs das medidas provisórias o maior número de liminares deferidas e também de ações já transitadas em julgado. "Das dez medidas provisórias objeto de discussão de constitucionalidade por meio de 36 ADIs, Bolsonaro teve perdas impostas em relação a pelo menos seis delas (MPs n. 926, 927, 928, 954, 966 e 979). Em relação a três medidas provisórias, houve ganho do presidente da República (MPs n. 946, 932 e 936). As perdas do presidente da República não implicam, todavia, em ganho dos entes subnacionais, que efetivamente tiveram vitórias apenas com a liminar deferida em relação à MP n. 926, que respaldou as medidas de combate à pandemia tomadas por governadores e prefeitos"<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
O cenário encontrado nas ADOs e ADPFs não difere desse padrão descrito acima. Vale lembrar que, apesar de não ter sido objeto de análise do artigo, na semana passado o Ministro Marco Aurélio Mello, no julgamento da ADPF 822, declarou o "estado de coisas inconstitucional na condução das políticas públicas destinadas à realização dos direitos à vida e à saúde, considerada a pandemia da covid-19"<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
O tribunal atuou como veto point coibindo e desencorajando a conversão em lei de medidas provisórias que claramente extrapolavam os limites constitucionais, como nos casos das MPs n. 927, 928, 954, 966. Por outro lado, o papel de limitador do STF foi atenuado nas questões relativas a emprego e renda (MP n. 936), na Lei do FGTS, nas alíquotas de contribuições de serviços sociais (MP n. 932), no PIS-PASEP (MP n. 946). Além disso, questões relativas às leis estaduais continuam aguardando julgamento.
O que os dados demonstram é que, embora a história da judicialização da política tenha sido marcada por vitórias do Executivo federal, no momento atual as decisões da Corte vem apontando um comportamento distinto, sobretudo em questões relacionadas às medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia. Este padrão é condizente com decisões anteriores envolvendo questões de saúde pública, como no caso da judicialização da saúde, quando o STF confirmou a competência compartilhada de responsabilidade entre os níveis de governo<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Análises de longo prazo poderão demonstrar se tal comportamento se deve à conjuntura pandêmica ou se indica um novo padrão decisório, tendencialmente menos centralizador. Importante, por ora, é que o Supremo Tribunal Federal teve um importante papel para garantir que medidas imprescindíveis à gestão da pandemia não fossem atrapalhadas pelo comportamento negacionista do presidente, assegurando portanto que critérios científicos guiassem a atuação dos governos subnacionais.
Se o novo padrão de atuação em questões federativas é conjuntural, ainda é cedo para concluir.
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<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GINSBURG, Tom; VERSTEEG, Mila. The bound executive: emergency powers during the pandemic. Virginia Public Law and Legal Theory Research Papers, n. 2020-52, University of Chicago, Public Law Working Papers, n. 747, p. 1-56, July 6 2020. DOI: <a href="http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3608974">http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3608974</a>. Available at: https://ssrn.com/abstract=3608974.
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> OLIVEIRA, Vanessa E; MADEIRA, Lígia M. Judicialização da política no enfrentamento à Covid-19: um novo padrão decisório do STF? Revista Brasileira de Ciência Política, no 35. e247055, 2021, pp 1-44. Disponível em: <a href="https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/zVR7JRsKnppq8TBw9VLMPXx/abstract/?lang=en">https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/zVR7JRsKnppq8TBw9VLMPXx/abstract/?lang=en</a>
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CARVALHO, Eloá Carneiro; SOUZA, Pedro Hugo Dantas de Oliveira; VARELLA, Thereza Christina Mó y Mó Loureiro; SOUZA, Norma Valéria Dantas de Oliveira; FARIAS, Sheila Nascimento Pereira de; SOARES, Samira Silva Santos. COVID-19 pandemic and the judicialization of health care: an explanatory case study. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 28, e3354, p. 1-9, ago. 2020; FIGUEIREDO, Iara Veloso Oliveira; CASTRO, Mônica Monteiro de; SILVA, Gabriela Drummond Marques da; MIRANDA, Wanessa Debôrtoli de; JÚNIOR, Helvécio Miranda Magalhães; SOUSA, Rômulo Paes de. Judicialization of administrative measures to tackle the Covid-19 pandemic in Brazil. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 71, n. especial, p. 189-211, set. 2020; GOMES, José Mário Wanderley; CARVALHO, Ernani; BARBOSA, Luís Felipe Andrade. Políticas Públicas de Saúde e Lealdade Federativa: STF Afirma Protagonismo dos Governadores no Enfrentamento à Covid-19. Revista Direito Público, vol.17, n.94, p. 193-217, 2020; VASCONCELOS, Natalia Pires de; ARGUELHES, Diego Werneck. Covid-19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual? In: Machado, Laura. Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. Rio de Janeiro: Autografia, 2021.
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> COUTO, Cláudio Gonçalves; OLIVEIRA, Vanessa Elias de. Politização da Justiça: atores judiciais têm agendas próprias? Cadernos Adenauer, [Online], v. XX, n. 1, 2019, p. 140.
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OLIVEIRA &amp; MADEIRA, op. cit., p. 22 e 23.
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a><a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/marco-aurelio-ve-estado-de-coisas-inconstitucional-na-conducao-da-pandemia-25062021">https://www.jota.info/stf/do-supremo/marco-aurelio-ve-estado-de-coisas-inconstitucional-na-conducao-da-pandemia-25062021</a>
<a href="applewebdata://4B47833B-27A1-4B58-ADC3-7BF91979D7CF#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> OLIVEIRA, Vanessa E. Judicialização e equilíbrio federativo na pandemia. In: AITH, F.M.A; SOARES, J.A.R; MARTINS, D.; BORBA, M. (Org). Boletim de Direito Sanitário. CEPEDISA, NAP-DISA/USP, 2020.

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JOTA

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