Coronavírus

O Judiciário da pandemia

Judicário tem usado seus recursos, dado importância a certas demandas e se posicionado perante os outros Poderes

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Presidente do STF, ministro Dias Toffoli em sessão realizada por videoconferência, e ministros na tela do computador. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O combate à pandemia no Brasil hoje se coloca a partir de um dissenso impossível. O presidente da República rejeitou a oportunidade política rara de ser o condutor de um consenso amplo, facilmente codificável através da narrativa da superioridade do valor da vida diante dos demais valores publicamente defensáveis. Ao politizar o afastamento social, enquadrou esse momento singular da nossa história na polarização política dentro da qual crê lucrar.

A efetividade da polarização desta questão está clara: Bolsonaro está sendo sistematicamente derrotado. Não pára de amealhar antagonistas por todos os lados: prefeitos, governadores, casas parlamentares, médicos, cientistas, enfim. A situação não melhora para ele em termos de benchmark internacional.

Mas quer ele emplacar na prática sua concepção sobre o afastamento social? Não. Tampouco está apenas de bravata. Teria ele poder para determinar a volta ao trabalho presencial de todo o funcionalismo público federal a ele e a seus ministros subordinado. Não o fez. Nem o fará.

A questão que nos interessa é que um dos efeitos mais marcantes desta polarização é que todas as medidas de combate à pandemia passam, com isto, a ser inscritas na lógica do conflito, passam a ser produto e alimento, ao mesmo tempo, de uma crise política constantemente conjurada. Todos os atores envolvidos na liça com a catástrofe iminente tem de se ver envolvidos na estupefação de fazê-lo de forma não consensual. O Judiciário não escapa a esta dinâmica.

Esse dissenso – presumivelmente – impossível nasce da premissa de que os recursos, sejam eles quais forem, são escassos. Essa escassez, no entanto, não parece ter atingido o Judiciário.

Neste texto, exploraremos como o Judiciário brasileiro tem usado seus recursos, que não sofreram reduções importantes, e tem modificado seu cotidiano de trabalho, dado importância a certas demandas e se posicionado perante os outros poderes.

A primeira dimensão analítica é a relativa à política, aos impases criados pela ausência de uma diretriz clara do Executivo Federal e do Ministério da Saúde sobre o isolamento, o posicionamento do presidente contra o isolamento e a determinação de alguns governadores e prefeitos.

A posição do presidente é hoje única entre as democracias liberais visto que seus pares que mantinham posição similar, como Donald Trump e Boris Johnson, se reposicionaram diante do crescimento exponencial do número de óbitos e infectados.

O conflito se inicia quando alguns governadores decidiram impor medidas restritivas. Os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal suspenderam por decreto, ainda em março, as aulas na rede pública, e o funcionamento de algumas atividades consideradas não essenciais.

Enquanto essa tendência se espalhava pelo Brasil, o Ministério da Saúde mantinha um posicionamento dúbio e o presidente se colocava contra, intensificando ataques nas redes sociais e em pronunciamentos aos governadores, em especial àqueles que podem ser seus adversários na disputa presidencial de 2022.

Além dos ataques em pronunciamentos e em redes sociais por parte do presidente, o Poder Executivo federal tentou restringir o poder dos governadores editando a Medida Provisória 926/20, que determina que as políticas de restrição da locomoção e de serviços adotadas pelos governos estaduais e municipais devem seguir orientação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que não devem afetar os serviços definidos como essenciais por decreto presidencial.

O Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido de garantir a autonomia dos estados e municípios nas políticas de combate à Covid-19, alinhando-se a governadores e às diretrizes da Organização Mundial da Saúde.

O ministro Marco Aurélio, em decisão confirmada pelo plenário na primeira sessão por videoconferência do Tribunal no dia 15 de abril, afastou possíveis restrições à quarentena determinadas pela MP 926/20, e afirmou a competência concorrente entre os entes da Federação neste tema. No mesmo sentido decidiu o ministro Alexandre De Moraes na ADPF 672 proposta pelo Conselho Federal da OAB.

Em ambas as decisões há uma clara mensagem política direcionada ao presidente. Marco Aurélio afirmou que a concessão parcial da liminar na ADI 6.341 se deu por motivos pedagógicos, para tornar explícita a competência concorrente. Na decisão de Alexandre de Moraes, o ministro afirmou que:

“Em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis (…) Lamentavelmente, contudo, na condução dessa crise sem precedentes recentes no Brasil e no mundo, mesmo em assuntos técnicos essenciais e de tratamento uniforme em âmbito internacional, é fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de Governo, acarretando insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade.”

Neste contexto, a relação do presidente com o Supremo, que já era problemática, se deteriorou ainda mais, culminando na “caminhada” à Corte feita pelo presidente acompanhado de empresários e alguns ministros.

A saída encontrada pelo presidente do STF Dias Toffoli diante deste fato inédito no país foi defender a necessidade de uma coordenação nacional contra a Covid-19, um posicionamento muito mais brando que de seus colegas de corte, mas não totalmente em sintonia com o presidente.

O Judiciário também foi célere ao acatar o pedido da Procuradoria Geral da República para investigar as acusações do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro contra o presidente. O inquérito que conta com depoimentos de ministros e vários delegados da Polícia Federal tem disputado a atenção pública com a pandemia.

Isto para além da troca de popular ministro da Saúde, em plena emergência sanitária global. Troca esta que não valeu nenhuma reação do Judiciário ao contrário da rápida resposta e anulação da nomeação de Alexandre Ramagem para Diretor Geral da Polícia Federal.

Quando olhamos além do STF, vemos muito menos uniformidade. O Judiciário foi o responsável por impor o lockdown a quatro municípios do Maranhão[1], apesar do governo estadual ter adotado medidas de contenção, por suspender a reabertura do comércio no Distrito Federal[2] e exigir a troca da direção do Hospital de Bonsucesso acusada de omissão[3]. Mas também permitiu que um homem em Santos não precisasse usar máscara em vias públicas[4], além de liberar a abertura de uma academia de tênis em São Paulo[5].

Mais do que enfatizar as diferenças entre as instâncias e as regiões do Brasil, também se pode questionar quem são as pessoas e grupos que podem mobilizar a justiça neste período de escassez para demandas que não são urgentes do ponto de vista da saúde pública.

A segunda dimensão é a social. A determinação pelo isolamento tornou mais evidentes as diferenças sociais no país, as dificuldades das classes mais vulneráveis para cumprir o isolamento e também as limitações do nosso sistema de saúde.

Ao mesmo tempo em que o Judiciário foi célere e decisivo na delimitação das competências dos entes federativos, ele se mostra relativamente impotente diante do iminente colapso do sistema de saúde, que não oferece leitos e respiradores para todos os doentes.

Antes da pandemia, já eram numerosas as ações judiciais que obrigavam a destinação de leitos para pessoas doentes. Com a pandemia, as liminares se tornaram mais inefetivas já que os leitos são um dos recursos mais escassos do momento e a sua atribuição é de responsabilidade imediata dos médicos, como sempre foi.

O que parece ter mudado é que a ineficiência do Judiciário na gestão de recursos hospitalares se tornou empiricamente evidente. Isto pode ajudar a frear o entusiasmo de alguns com a dita “judicialização da saúde pública” no Brasil.

Só no Estado do Rio de Janeiro foram movidas, em menos de dois meses, mais de 119 ações pelo plantão judiciário da Defensoria Pública pedindo a internação de pacientes com Covid-19. Os hospitais estão descumprindo grande parte das ordens judiciais de internação, pois não têm condições de cumpri-las, o que já acarretou diversas mortes.[6]

Além da impossibilidade de se cumprir todas as ordens judiciais, este tipo de judicialização pode tornar o acesso privilegiado à justiça um fator muito importante no acesso aos leitos escassos, prejudicando aqueles que, por diversos motivos, não costumam acionar o Judiciário.

O próprio CNJ, alarmado com a judicialização e com a inexistência de um marco jurídico nacional capaz de organizar o acesso aos leitos, emitiu uma nota técnica voltada à prevenção da judicialização da saúde durante a pandemia em que sugere a requisição de leitos na rede privada se os leitos da rede pública estiverem esgotados

Neste caso, diferentemente da demarcação dos limites entre os entes federativos, a simples caneta de um juiz não é suficiente para suprir a escassez dos recursos médicos necessários para atender a quantidade de doentes. Esta escassez, assim como os méritos do nosso sistema de saúde, é fruto de escolhas políticas construídas ao longo de muitos anos e envolve a alocação de recursos orçamentários finitos.

A dita “judicialização” não tem o condão de transformar recursos finitos em infinitos e não pode resolver o simples problema matemático de que provavelmente teremos menos leitos e respiradores do que doentes, e o problema econômico de que a demanda mundial por respiradores é atualmente muito maior que a oferta, tornando a sua obtenção imediata extremamente difícil e custosa, o que é dificultado ainda mais pela posição frágil do Brasil em relação a outros países que também estão tentando obter respiradores.

Esse problema complexo, que no fundo também é um problema político, não é solucionado por simples decisões judiciais. Em essência este não é um problema novo e já era uma realidade para os casos anteriores de judicialização da saúde, um tema discutido no Brasil há muitos anos, que se torna ainda mais evidente no contexto da atual crise.

A terceira é a dimensão corporativa. Foram suspensas as audiências de custódia, o teletrabalho foi adotado de maneira extensiva e, no STF, até janeiro de 2021, pela a Resolução 677/2020. O modelo de teletrabalho adotado nesta resolução não é uma simples resposta à pandemia, e pode estabelecer uma nova forma de trabalho no Supremo.

Nas palavras do diretor-geral da Corte o STF está incentivando a mudança de mentalidade sobre o trabalho no contexto do serviço público e o desenvolvimento de uma nova cultura, em que não faz muita diferença se o servidor está em ambiente presencial ou online, desde que de fato esteja trabalhando e entregando resultados.”[7]

Os efeitos na prestação judiciária e na garantia dos direitos de pessoas encarceradas só poderão ser dimensionados ao final da emergência, assim como o fim da noção de “local de trabalho” para a prestação jurisdicional no Brasil.

Depois de mais de três décadas de afirmação do Estado de Direito sobre a soberania popular, de desqualificação de um projeto de nação face aos “princípios constitucionais”, o Judiciário da pandemia tem em suas mãos de forma concentrada – e não mais difusa – a oportunidade rara de não atrapalhar a construção de um amplo consenso. Ao menos, de um consenso contra o presidente Bolsonaro.

 


[1] Disponível em: <https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2020/04/30/justica-decreta-lockdown-na-regiao-metropolitana-de-sao-luis-em-razao-do-coronavirus.ghtml>

[2] Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/05/06/justica-barra-fim-do-isolamento-social-em-brasilia>.

[3] Disponível em: <https://www.google.com.br/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/02/juiza-intima-ministerio-da-saude-a-trocar-diretoria-do-hospital-de-bonsucesso-e-cita-omissao.ghtml>.

[4] Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2020/04/28/homem-entra-na-justica-e-consegue-liminar-para-nao-usar-mascara-em-vias-publicas-de-santos.ghtml>.

[5] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/desembargador-defende-tratamento-diferenciado-ao-tenis-e-libera-academia-em-sao-paulo.shtml>.

[6] Pandemia provoca onda de judicialização da saúde. Disponível em: <https://cbn.globoradio.globo.com/default.htm?url=%2Fmedia%2Faudio%2F301427%2Fpandemia-provoca-onda-de-judicializacao-da-saude.htm>.

[7] Supremo institui novo modelo de gestão do trabalho dos servidores. Disponível em:<http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442519&ori=1>.