Opinião e Análise

Pedro Heitor Barros Geraldo

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) reconheceu a inconstitucionalidade do <a href="https://www.jusbrasil.com.br/topicos/28895319/inciso-viii-do-artigo-144-da-lei-n-13105-de-16-de-marco-de-2015">inciso VIII do art. 144 do Código de Processo Civil</a> numa Ação direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.953 proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
A regra dispõe que: há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório. O placar foi 7 a 4 pela inconstitucionalidade.
O voto do ministro Gilmar Mendes abriu a divergência sobre a inconstitucionalidade. Segundo seu voto, a razoabilidade aponta para uma dificuldade em se identificar os familiares nos grandes escritórios. Também não se pode exigir do juiz que o saiba, nem se pode demandar as listas para os escritórios. Além disto, o ministro evoca em seu voto o sentido pretendido pelo legislador durante a discussão sobre o projeto do CPC:
<blockquote class="jota-article__citation">“É que familiares de magistrados encontrariam grandes dificuldades para serem contratados por grandes escritórios de advocacia, de modo que a opção profissional de um iria coibir a escolha profissional de seu familiar, o que não parece compatível com os valores do livre exercício profissional, da livre iniciativa e da liberdade de escolha profissional".</blockquote>
Mais a frente argumenta que:
<blockquote class="jota-article__citation">"O trabalho do juiz é julgar. Aceitar que as partes usem a recusa como meio para manchar a reputação do julgador é diminuir não só a pessoa do juiz, mas a imagem do Poder Judiciário e o ofício judicante como um todo".</blockquote>
A decisão suscitou a discussão das condições de produção da decisão. O problema é o quanto esta interpretação restritiva da regra de impedimento amplia ou diminui as condições de imparcialidade do julgador e é capaz de expor o judiciário às desconfianças da sociedade em relação à administração da justiça. Esta questão é central pois tem a ver com a qualidade da decisão judiciária.
No contexto brasileiro, o judiciário se organiza enquanto um poder, portanto preocupa-se mais com a sua autonomia, isto é, sua capacidade de auto-organização. Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CNJ">CNJ</a>) aparece como um limitador deste poder, mas o próprio STF reafirma este poder de auto-organização expresso no poder de organização das varas nos fóruns; nas políticas públicas de acesso à justiça que dependem do voluntarismo de juízes bem intencionados; pelas políticas de virtualização dos rituais de justiça em que os cidadãos permanecem ainda mais distantes; pelos próprios secretários quando mudam de vara e precisam "aprender o trabalho novamente"; pelos advogados quando afirmam que "cada juiz tem seu código de processo"; ou nos tribunais ao dispor do poder de criar seus regimentos internos que compõem as regras processuais; e inclusive a recente decisão de adiar por mais tempo a implementação do juiz de garantias, por exemplo.
A independência vem em segundo lugar no binômio do judiciário brasileiro de autonomia e independência. Esta, por sua vez, significa o quanto os julgamentos são produzidos sem intervenções externas. As condições de suspeição e impedimento são uma contrapartida para a sociedade reconhecer a imparcialidade a fim de garantir maior credibilidade da forma de produzir a decisão sem intervenções externas e interesses particulares dos julgadores.
Neste sentido, a decisão do STF reproduz uma dificuldade do Judiciário em construir condições de julgamento imparciais. Valorizando por outro lado a dificuldade do judiciário se organizar para realizar este tipo de controle. Por esta razão, os limites impostos pelo legislador não são razoáveis para o judiciário.
As pesquisas empíricas produzidas no âmbito do INCT-InEAC têm se preocupado com estes aspectos, especialmente da professora Bárbara Lupetti (2013) que demonstra que a imparcialidade é um mito. Pois os próprios juízes não são formados para constituir práticas que possam demonstrar que a decisão foi produzida de forma independente e imparcial. E, portanto, não conseguem sequer explicar como podem fazê-lo. Por outro lado, valoriza-se as opiniões particulares dos julgadores para motivar as decisões reproduzindo seus vieses e preconceitos.
A decisão se refere à possiblidade de “manchar a reputação do julgador” como se essas condições adviessem de um estado de espírito pressuposto do juiz ao invés de uma construção perante a sociedade numa performance pública. A imparcialidade é uma condição de legitimidade democrática da justiça para os cidadãos, por esta razão é igualmente pertinente uma performance pública perante a sociedade para inspirar esta confiança pela inteligibilidade de suas práticas para os cidadãos.
Outro aspecto é que em nossa organização profissional dos operadores do direito, a relação entre advogados e juízes é pouco regulada, seja porque os advogados podem se entrevistar particularmente com julgadores sem a presença de outra parte para pedir decisões, uma fonte constante de conflitos já que é uma prerrogativa da advocacia. Aliás, quando juízes recusam tais atendimentos aos advogados os conflitos podem dividir o mercado da advocacia (PIRES; GERALDO, 2019). Ao mesmo tempo, não há uma quarentena para juízes que seja capaz de evitar as relações privilegiadas com seus colegas quando deixam o cargo.
A restrição do CPC atingiria a relação entre tios e sobrinhos, além dos bisavôs e bisnetos presentes no escritório, limitando as vantagens daqueles que têm familiares nos tribunais dentro do mercado da advocacia. No entanto, a decisão se opõe ao ideal de um mercado profissional em que o mérito está no trabalho e na expertise dos profissionais. Além de expor os magistrados aos seus familiares do mundo do direito e valorizando aqueles advogados que têm a possibilidade de intervir nas decisões junto aos familiares.
Apesar da naturalização deste binômio judiciário brasileiro, as pesquisas comparativas com o contexto francês têm me mostrado o quanto a produção da decisão é um desafio de garantir maior inteligibilidade e participação dos cidadãos no ritual (GERALDO, 2019; GERALDO; ALMEIDA, 2017; GERALDO; BARÇANTE, 2017). No contexto francês, a preocupação é com a independência e imparcialidade das autoridades judiciárias que prestam um serviço em nome do povo e da república francesa. Isto significa que não basta decidir, é preciso organizar o serviço para permitir a participação pelos cidadãos para que eles a operem e entendam seus significados.
No Código de Organização Judiciária francês, há uma regra similar para a recusa do juiz se ele ou seu cônjuge é parente ou aliado de uma das partes ou seu cônjuge até o quarto grau inclusive. Assim, as formas de produção da decisão impõem mais constrangimentos para a decisão para resguardar quem e como se julga, além disto as decisões são, em regra, colegiadas, perante um público presente nas audiências e compartilhando os significados das regras jurídicas. Neste contexto, a autonomia não é um pressuposto para a independência, ao contrário, a independência é uma construção política constante dos magistrados ao prestarem o serviço público da justiça.
Entre a autonomia e a independência, a decisão reproduz a tradição do direito judiciário em que os tribunais organizam suas formas e procedimentos para a garantia de direitos ao valorizar mais a autonomia e as dificuldades que juízes teriam para se auto-organizar do que a produção da independência resguardando juízes para proferirem decisões imparciais.
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GERALDO, P. H. B. Políticas públicas judiciárias: Uma abordagem comparativa entre a organização social da Justiça no Brasil e na França. Revista Juris Poiesis, v. 22, p. 309–328, 2019.
GERALDO, P. H. B.; ALMEIDA, F. F. DE. A PRODUÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL: uma abordagem praxeológica dos julgamentos judiciais. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 4, n. 3, 10 nov. 2017.
GERALDO, P. H. B.; BARÇANTE, L. F. DE S. A (des)confiança na polícia: uma comparação entre a relação do Ministério Público e a polícia no Brasil e na França. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 17, n. 1, p. 159–176, 9 maio 2017.
LUPETTI BAPTISTA, B. G. Paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial: entre “quereres” e poderes". Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.
PIRES, V. B. DE C.; GERALDO, P. H. B. A “Briga com a Juíza”: Uma análise dos conflitos interprofissionais numa comarca do interior. Plural, v. 26, n. 2, p. 222–246, 23 dez. 2019.

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JOTA

Decisão do STF reproduz uma dificuldade desse Poder em construir condições de julgamento imparciais

O Judiciário brasileiro entre a autonomia e a independência

Decisão do STF reproduz uma dificuldade do Poder Judiciário em construir condições de julgamento imparciais.