Opinião e Análise

Cristiana Losekann

Uma iniciativa recente de movimentos sociais e pesquisadores criou o <a href="https://www.premiorepprovare.com/">Prêmio </a><a href="https://www.premiorepprovare.com/">Repprovare</a>, que emula satiricamente o Innovare e propõe uma premiação crítica para as piores práticas do sistema de Justiça. A primeira edição teve como tema os conflitos ligados à mineração e convocou comunidades e organizações a inscreverem seus casos para concorrerem ao prêmio.
Foram inscritos 13 casos, todos apresentados por organizações formalmente constituídas e com documentos que embasaram as acusações das práticas de instituições de Justiça consideradas injustas. Como era de se esperar, o grande vencedor foi o caso do desastre de Brumadinho e a prática relacionada foi o acordo construído entre instituições de Justiça e a mineradora Vale. O núcleo da denúncia foi a ausência de participação dos atingidos no processo de negociação e o caráter sigiloso de procedimentos judiciais envolvidos. Segundo os denunciantes, o acordo foi construído secretamente no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjmg">Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)</a> dando quitação à empresa da responsabilidade pelos danos coletivos causados pelo rompimento da barragem de mineração em Brumadinho. As instituições denunciadas foram: MPMG, TJMG, DPMG e MPF.
Esse desastre causou a morte de 272 pessoas e a destruição do rio Paraopeba, suas características de violência chocaram a todos. Além disso, tal desastre ocorreu em 2019, quatro anos após o desastre de mineração no rio Doce (2015), este considerado um dos maiores do Brasil em extensão dos danos. Afora as características terríveis de cada desastre, o fator repetição foi outro agravante para a indignação e alarme da população. Frustrando a todos, as medidas construídas pelo sistema de justiça não produziram o efeito esperado pela população e pelas organizações que acompanham o caso.
Além do grande prêmio, todos os demais ganharam menções vergonhosas. Dando um panorama geral sobre os inscritos, chama a atenção dois padrões de queixas, um endereçado ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a> e outro ao Judiciário.
No primeiro conjunto de acusações, temos casos muito parecidos com o de Brumadinho. São casos de danos causados pela mineração em que o Ministério Público construiu acordos com as empresas sem a participação dos atingidos. Vejamos alguns.
No caso da implantação do megaprojeto de mineração da empresa Sul Americana de Metais (SAM), que produz impactos às comunidades Geraizeiras do território tradicional do Vale das Cancelas, em Minas Gerais, há previsão de construção de um complexo minerário, com cava, barragens e um mineroduto até Ilhéus, na Bahia. No núcleo da denúncia, está a ausência do direito de participação no processo decisório, já que mesmo com ação civil pública ajuizada reivindicando o direito à consulta prévia das comunidades afetadas, isso não foi feito.
Em outro caso, também em Minas Gerais, a empresa envolvida é Vallourec Mineração na localidade de Piedade do Paraopeba e coloca em risco diretamente uma escola onde estudam cerca de 250 crianças em zona de autossalvamento de barragem de mineração. Neste caso, mais uma vez, temos um acordo entre MP e empresa sobre o qual recaem acusações de descumprimento do direito de participação dos atingidos e de movimentos sociais na negociação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) construído. A queixa é de que não houve abertura para a comunidade conhecer e opinar sobre as cláusulas constantes no TAC. A acusação afirma, também, que o direito de informação através da possibilidade de assistir as reuniões entre MP e mineradora não foi observado.
Embora as queixas ao Ministério Público não sejam menores, a maioria dos casos apresentaram críticas ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/judiciario">Poder Judiciário</a>. Questões como morosidade e decisões judiciais que não observaram a destrutividade e irregularidade dos empreendimentos foram as principais. Ademais, há um elemento que chama a atenção: a recorrência de casos em que juízes compreenderam equivocadamente o conceito de comunidades tradicionais evocado a partir da chamada OIT 169. Nesses casos, ao não compreenderem devidamente o que são comunidades tradicionais, não observaram os direitos desses grupos, ameaçados por empreendimentos minerários.
Esse é o caso do empreendimento da mineradora Herculano Mineração na comunidade quilombola de Queimadas, no município do Serro, em que houve violação do direito à consulta livre, prévia e informada. A Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais (N’Golo) ajuizou ação civil pública em que, entre outras coisas, denunciou a ausência da consulta prévia à comunidade. Mas a decisão judicial, além de não reconhecer o direito à consulta prévia, ainda ameaçou a proponente de acusação de litigância de má-fé, caso ela persistisse no pleito.
Outro caso notável pela ausência de compreensão do conceito de comunidade tradicional ocorreu no extremo sul do país, envolvendo o licenciamento de mineração de titânio, ilmenita, rutilo e zirconita no município de São José do Norte (RS). Neste caso, provocado por ação civil pública do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mpf">MPF</a>, em articulação com movimentos sociais e pesquisadores, questiona-se a ausência de consulta prévia às comunidades tradicionais. Na sentença, o juiz de primeira instância fundamentou sua negativa ao pedido da ação negando a tradicionalidade de pescadores artesanais e pequenos agricultores da região.
A decisão chama a atenção pelo equívoco total na compreensão sobre o que são comunidades tradicionais. Segundo a sentença, “a pesca ainda é artesanal, mas não é tradicional, pois novas tecnologias foram incorporadas à atividade nos últimos cem anos, como troca da propulsão a vela ou remo por motores a diesel ou gasolina; iluminação a carbureto por gás GLP, e posteriormente por bateria, com luzes de ‘led’; redes confeccionadas manualmente por confeccionadas industrialmente etc. Quanto à agricultura familiar (cebolicultores), também não se caracteriza como tradicional, visto que modernizou-se ao longo do último século. Hoje não utiliza-se mais o arado puxado a bois ou cavalos, mas o trator, cada vez mais moderno. Não se faz plantio com sementes ‘crioulas’, mas sim sementes desenvolvidas pela Embrapa, com melhorias genéticas. Perdeu-se a cultura de tirar a própria semente para plantio posterior, adquirindo, o produtor, sua semente de fornecedores especializados na sua produção. Usam insumos industrializados, como fertilizantes e defensivos agrícolas. Muitos agricultores não utilizam mais a técnica de ‘muda’ da cebola, utilizando o plantio direto, inovação que não foi criada por eles”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm">Decreto nº 6.040</a>, de 7 de fevereiro de 2007, são considerados grupos e comunidades tradicionais: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. No mesmo decreto fica definido como objetivo “apoiar e garantir a inclusão produtiva com a promoção de tecnologias sustentáveis, respeitando o sistema de organização social dos povos e comunidades tradicionais, valorizando os recursos naturais locais e práticas, saberes e tecnologias tradicionais”. Ou seja, o uso de tecnologia que vise a melhorar as condições de inclusão produtiva está descrito na própria norma que institui a política.
Além disso, a Constituição Federal estabelece que “Povos e Comunidades Tradicionais são grupos que possuem culturas diferentes da cultura predominante na sociedade e se reconhecem como tal”. Ou seja, o fator de autorreconhecimento é fundamental para a definição da tradicionalidade do grupo. Não cabe, portanto, a um juiz definir critérios de sua própria vontade que extrapolam os aspectos definidos na lei.
A razão para se utilizar um conceito aberto de tradicionalidade está nas observações já consolidadas em diversos campos das ciências humanas, já incorporadas na Constituição, que apontaram para o equívoco de teorias baseadas em uma noção fechada de cultura em que interações e mudanças não possam ocorrer ao longo do tempo. Nesse sentido, está consolidada uma concepção intercultural de tradicionalidade que poderá, sem dúvidas, prever trocas tecnológicas e comportamentais sem que isso altere a identificação comunitária em questão.
O direito à consulta prévia, livre e informada como prevê a <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/09/1989-convencao-sobre-povos-indigenas-e-tribais-convencao-oit-n-o-169.pdf">Convenção 169 da OIT</a> foi ratificado pelo governo brasileiro. Contudo, como se vê, ainda é pouco compreendido pelo Judiciário brasileiro, como pudemos observar nas diversas denúncias de sentenças equivocadas apresentadas ao prêmio Repprovare.
A premiação revela elementos importantes para a compreensão das dinâmicas entre movimentos sociais, comunidades e o sistema de Justiça. Por um lado, nos mostra que empreendimentos minerários, pela natureza de largo impacto socioambiental, dificilmente escaparão de serem tensionados judicialmente. Isso, por sua vez, demanda que as instituições estejam preparadas para suas atuações nesses conflitos, compreendendo os marcos normativos que regulam, não apenas o setor estritamente ambiental, mas, sobretudo, aquele de natureza social e que, frequentemente, envolve violação de direitos humanos.
Disso surge a necessidade de as instituições estarem preparadas para a construção do diálogo social, pois são conflitos que envolvem comunidades locais e, também, movimentos e organizações sociais com ampla vivência e conhecimento sobre tais realidades. É por isso que as demandas por participação surgem e são endereçadas ao Ministério Público quando opta pela realização de um acordo com as empresas.
Se advogados das empresas rés acessam comumente juízes, promotores e procuradores, para expor suas razões, faz-se necessário que comunidades afetadas tenham igual acesso, seja diretamente ou através dos grupos organizados que as representam. Eis o desafio que ainda parece estar longe da realidade das nossas instituições.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Extraído da sentença. O processo pode ser acessado na íntegra, atualmente, no TRF4: No 5007290-39.2018.4.04.7101

dominik-vanyi-Mk2ls9UBO2E-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Reconhecimento da Convenção 169 da OIT pelo Judiciário brasileiro também é reivindicada

Movimentos sociais demandam mais participação em acordos para o MP

Reconhecimento da Convenção 169 da OIT pelo Judiciário brasileiro também é reivindicada por movimentos sociais