Opinião e Análise

Lucas Pilau

Guilherme Dornelles

Fabiano Engelmann

No Brasil e na América Latina, na última década, tornou-se comum associar a palavra lawfare à ideia de perseguição de líderes políticos pelas vias judiciais, como teria ocorrido nos casos dos ex-presidentes Cristina Kirchner, Fernando Lugo e Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo, nesses cenários, os sentidos atribuídos à concepção de lawfare pouco têm a ver com o modo como essa noção circulou no cenário internacional desde o início dos anos 2000. 
Em uma das primeiras mobilizações da ideia de lawfare[1], o americano especialista em estudos africanos John Comaroff referia-se aos esforços de Estados colonizadores para conquistar e controlar povos indígenas pelo uso coercivo de meios e estruturas legais. Posteriormente, o autor definiu a prática da guerra judicial, como o uso de instrumentos legais para a prática de atos de coerção política, no qual agentes estatais utilizam o aparato legal para agir contra os cidadãos, citando como exemplo remoções forçadas de assentamentos supostamente ilegais no Zimbábue. 
Essa mesma conotação autoritária de lawfare aparece na formulação inicial de um de seus inauguradores no campo das relações internacionais, Charles Dunlap Jr., embora por razões distintas. Para ele, lawfare seria o uso do Direito como uma arma de guerra, como um meio de realizar um objetivo militar. A referência à guerra não era por acaso, Dunlap Jr. era então coronel da Força Aérea dos Estados Unidos e criticava as limitações impostas pelo Direito Internacional Humanitário sobre as ações militares em um contexto em que a chamada guerra ao terror estava em seu início. 
A essas referências foram agregadas perspectivas de uso legítimo do lawfare. John Comaroff em conjunto com a antropóloga Jean Comaroff passam a reconhecê-lo, também, como uma arma dos sujeitados em suas demandas por reconhecimento, buscando a sanção dos tribunais contra os próprios agentes estatais e seus abusos. Dunlap Jr., por sua vez, passou a defini-lo como “o uso – ou abuso – do Direito como substituto dos meios militares tradicionais para atingir um objetivo operacional”, buscando enfatizar que existiriam vantagens estratégicas legítimas a serem obtidas pelo conhecimento e emprego das regras jurídicas existentes em um contexto de conflito armado. Em uma formulação mais recente, a cientista política norueguesa Siri Gloppen mobiliza o conceito de lawfare para se referir ao uso estratégico de direitos e de disputas judiciais por atores de diferentes campos, inclusive pela sociedade civil, para fazer avançar objetivos políticos e sociais contestados, ou para resistir ao que identificam como retrocessos. 
Nessa última perspectiva, a definição de lawfare estaria menos associada a quem acessa os tribunais – agentes estatais, na formulação inicial dos Comaroff; organizações de direitos humanos e Estados adversários, para Dunlap Jr. – e sim ao modo e aos objetivos almejados com o acesso aos tribunais. A mobilização legal de povos tradicionais contra represas na luta pelo direito à água, por exemplo, pode ser vista como lawfare. Como Gloppen discute, o lawfare em torno do aborto, embora tenha se iniciado como uma estratégia de ativistas que buscavam a sua liberação, passou a ser mobilizado também por atores conservadores, exemplificado pela recente superação do precedente sobre o direito ao aborto, Roe v. Wade pela Suprema Corte dos EUA[2]. 
No Brasil, esse conceito circulou com mais força nos espaços jurídico, político e midiático somente após a deflagração da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lava-jato">Operação Lava Jato</a>. Entre 2010 e 2015, as poucas publicações de textos em português no Google Acadêmico relacionavam o lawfare ao direito humanitário e a conflitos armados, vinculando-se às definições iniciais de Dunlap Jr. O Google Trends mostra que os períodos de picos de pesquisas pelo termo lawfare no Brasil coincidem com eventos específicos do caso Lula na Lava Jato: outubro de 2016, quando os advogados do ex-presidente responderam à denúncia criminal do MPF no caso do tríplex em Guarujá; abril de 2018, quando o TRF4 confirmou a sentença de Sergio Moro e nos dias seguintes, seguindo o entendimento do STF, o próprio ex-juiz expediu o mandado que levaria Lula à prisão por 580 dias.
Seu ápice ocorre entre os meses de maio e junho de 2019, quando o debate público gravitava em torno das mensagens reveladas pelo The Intercept Brasil, conhecidas como Vaza Jato. Por último, em março de 2021, quando o ministro Edson Fachin decidiu ter sido a 13ª Vara de Curitiba incompetente para julgar Lula.
A resposta à denúncia no caso do tríplex em Guarujá e a entrevista coletiva que se seguiu foram os primeiros atos de enunciação pública do conceito de lawfare tal qual ficou conhecido posteriormente no Brasil, como o uso das leis e do Direito como “arma de guerra para desmoralizar um inimigo”. Por que usar esse conceito estrangeiro naquele momento? Segundo explicaram os próprios advogados do ex-presidente em uma obra publicada anos depois, eles entendiam que as produções brasileiras sobre abuso de direito, abuso de autoridade e temas afins não dariam conta de preencher todas as características da situação que estavam enfrentando[3]. De qualquer modo, é fato que o uso dessas e outras noções estava muito atrelado ao “garantismo”, movimento objeto de críticas por integrantes da própria Lava Jato e cujo sentido vem sendo disputado por membros do Ministério Público Federal a partir da noção de “garantismo penal integral” há alguns anos. 
Se no campo processual as vitórias ainda demorariam alguns anos a ocorrer – principalmente com mudanças de entendimento do Supremo Tribunal Federal – no campo dos conceitos elas vieram rápido. Ainda em 2016, o Google Acadêmico capta a emergência das primeiras referências em português ao termo lawfare como utilização de processos judiciais com finalidades políticas. Em 2017, mais de dois terços dos trabalhos constantes naquele repositório já associavam o conceito aos processos criminais contra o ex-presidente Lula na Lava Jato. 
Nesse sentido, uma hipótese a ser explorada é a mobilização do conceito de lawfare, daquele modo e naquele momento, como forma de construir uma contradoutrina jurídica para confrontar, no âmbito processual penal, as teses lavajatistas de “prisão em segunda instância” e do uso de “delações premiadas” como centro das acusações e prisões de políticos.
O que se pode afirmar, até o momento, é que não houve uma simples importação desse conceito. A noção de lawfare no Brasil foi reformulada no contexto das lutas políticas nacionais e mobilizada para denunciar processos de persecução judicial agregando às leituras da “politização da justiça”, a perspectiva da análise do combate político através do processo judicial. Nesse sentido, as condições de apropriação dessa noção na análise política do campo jurídico podem trazer elementos importantes para a compreensão de rearranjos do papel político desempenhado pelas instituições judiciais, em especial no tensionamento que os usos do Estado de Direito podem trazer para as democracias contemporâneas.
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[1] Para acesso às referências de John e Jean Comaroff e Charles Dunlap Jr., assim como para os dados constantes no texto, cfr. Pilau, Lucas Batista; Souza, Guilherme Dornelles de. Advocacia, lutas políticas e lawfare no Brasil: notas para uma pesquisa. Revista de Criminologias Contemporâneas, vol. 2, n.1, pp. 68-82. 
[2] Para essa discussão, cfr.Parra, Sergi Vidal. The Water Rights-Based Legal Mobilization of the Wayúu against the Cercado Dam: An Effective Avenue for Court-Centered Lawfare from Below?. Antipod. Rev. Antropol. Arqueol., Bogotá, n. 34, pp. 45-68, Jan.2019;Gloppen, Siri. ConceptualizingAbortion Lawfare. Revista Direito GV [online]. 2021, v. 17, n. 3; 
[3] Martins, Cristiano Zanin; Martins, Valeska Teixeira Zanin; Valim, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

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JOTA

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