Opinião e Análise

Roberto Fragale Filho

Há mais de um ano, a revista portuguesa Visão (n. 1.141, de 15 de janeiro de 2015) publicava uma reportagem intitulada “Vida de juiz”. Nela era esmiuçado o cotidiano da magistratura portuguesa. Não se trata de uma denúncia de comportamentos desviantes, de cometimentos de faltas profissionais, ainda que a matéria registre que, nos últimos dez anos, foram aposentados compulsoriamente dezoito magistrados portugueses. Esse número, que corresponde a quase 1% do quadro total de juízes em Portugal é tido como elevado, se comparado com outros profissionais, como os médicos, por João Paulo Dias, cujo estudo "Quem são os nossos magistrados? Caracterização profissional dos juízes e magistrados do Ministério Público de Portugal" é citado no artigo.
Coordenado ainda por António Casimiro Ferreira, Madalena Duarte, Paula Fernando e Alfredo Campos, o estudo analisa as transformações do perfil dos juízes portugueses, que são evidenciados na reportagem inicialmente mencionada.
Construída em torno de quatro juízes, a matéria descreve os seus cotidianos profissionais. Oriana Queluz (28 anos), juíza da instância local do Tribunal de Almodóvar, então com apenas três anos de carreira, dizia-se convicta que “nunca se tira as vestes de juiz.” Longe de Lisboa, ela informava que “não me dou com ninguém aqui. Nas localidades pequenas toda a gente se conhece e eu não quero suscitar dúvidas de credibilidade. Temos de ser como a mulher de César.” Mais ainda, ela explica que, “em terras pequenas, os tribunais ainda servem para lavar a honra.”
Por sua vez, Jorge Santos (48 anos), juiz no Tribunal de Família e Menores de Matosinhos, diz interessar-se pela realidade das instituições que acolhem crianças e jovens, pois, na sua sala de audiências, desfilam famílias esgarçadas, pessoas em busca de afeto e recorrentes problemas de delinquência juvenil.
De outra parte, José Quaresma (45 anos), juiz do Tribunal de Execução de Penas de Leiria, descreve uma penosa rotina pautada pela insuficiência de meios: “Não tenho funcionário judicial. Escrevo eu os autos no meu portátil.” Para espairecer, dirige e circula uma média de três mil quilômetros ao mês.
Por fim, Fátima Reis Silva (47 anos), juíza do Tribunal de Comércio de Lisboa, enumera os impactos da crise econômica: “Em 2011 decretamos mais de 40 falências por dia e entre 2010 e 2011, o volume de entradas mais do que quadruplicou.” Casos vultosos reúnem mais de 5.800 credores, como na falência do Banco Privado Português, ou proporcionam uma fila de trabalhadores a exigir o pagamento de seus créditos, como na falência de um grupo de supermercados.
Ascetismo, solidão, dúvidas, precariedade de meios são, portanto, algumas das características que pontuam o cotidiano dos magistrados portugueses, que, de forma unânime, reconhecem ser o dia a dia de um juiz feito de dilemas, pois o juiz seria uma ilha e suas decisões profundamente solitárias. Nada disso impede que (ou por tudo isso) eles reconheçam que, por detrás dos papeis dos autos processuais, esteja ali a vida das pessoas.
Ao cabo, em tempos de forte protagonismo judicial, o que há de interessante na reportagem é que ela evidencia que o mundo judicial não é composto primordial e preferencialmente pelas cúpulas judiciais ou por juízes midiáticos. Ao contrário, ele é composto majoritariamente por juízes quase anônimos, que são diuturnamente chamados a decidir, à luz da lei, diferentes conflitos de interesses.
Outra não é a circunstância do judiciário brasileiro. Nos juizados especiais, multiplicam-se os litígios envolvendo questões de consumo relacionadas com empresas telefônicas e bancos. Nem mesmo a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher conseguiu refrear tal tipo de prática.
Nas varas empresariais, a crise faz-se sentir com o aumento de pedidos de recuperação judicial e falências. Na justiça trabalhista, a crise também se faz sentir intensamente com uma enxurrada de reclamações sobre salários atrasados e direitos rescisórios jamais pagos. Mesmo que, sob uma ótica individual, alguns processos judiciais cheguem ao fim e, eventualmente, proporcionem alguma satisfação a algum dos litigantes, quando considerada sob uma perspectiva coletiva, a empreitada judicial tal qual foi concebida no sistema judicial brasileiro parece fadada ao fracasso.
Não por acaso diz-se nos corredores forenses que se está ali a enxugar gelo, a se realizar um trabalho repetitivo, insistentemente reproduzido, que parece esgotar-se em si mesmo. Em outras palavras, um verdadeiro trabalho de Sísifo.
Ora, esse mesmo trabalho invisível, realizado cotidianamente pelos quase dezessete mil magistrados brasileiros, encontra-se ofuscado pelo adensamento do protagonismo assumido pelas cortes superiores e pela midiatização proporcionada pela operação Lava-Jato em torno do juiz Moro. É como se não houvesse vida judicial para além deles.
No passado recente, a midiatização das operações Satiagraha e Castelo de Areia gerou outros protagonismos e trouxe projeção para o juiz De Sanctis, cuja carreira prosseguiu com sua nomeação para o segundo grau do Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF3).
Provavelmente, assim será com o juiz Moro. Entretanto, o trabalho invisível descrito pelos juízes portugueses e também realizado pelos magistrados brasileiros permanecerá sem qualquer protagonismo e a litigiosidade que ele tenta dar conta prosseguirá como elemento estruturante das relações sociais.
Talvez isso não seja necessariamente ruim, mas é preciso, dar alguma visibilidade a essa aparentemente opaca vida judicial, já que balizá-la por protagonismos de circunstâncias ou decorrente de circunstâncias institucionais é um equívoco que o judiciário precisa desfazer com certa urgência.

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Vida de juiz

Existe vida judicial para além de Moro?