Opinião e Análise

Fabiano Engelmann

O alto custo e lentidão do sistema judicial brasileiro combinado com o corporativismo das diferentes categorias de profissionais do direito pode ser  apontado como um dos principais complicadores da ineficiência da prestação jurisdicional no Brasil. A esses fatores adicionam-se as heranças longínquas que reproduzem o ritualismo da burocracia judiciária e o modelo processual excessivamente protelatório da resposta devida aos cidadãos.
O diagnóstico e a percepção negativa estão na base das sucessivas tentativas de reforma do sistema judicial, tema que perpassa a agenda política brasileira ao longo das décadas de 90 e 2000. Paradoxalmente as medidas políticas de reforma adotadas não implicaram na adoção do pacote do rule of law e seu projeto americano de promoção de direitos humanos e da economía de mercado, nem um modelo que aprofundasse a democratização do sistema, com maior controle pela sociedade e com a ampliação do acesso à justiça.
Surgida no cenário dos movimentos de exportação-importação de modelos de gestão econômica e institucional propagados pelo Banco Mundial calcados no rule of law, a onda de reformas do Judiciário começa a varrer os países latino-americanos no cenário da redemocratização e de “retorno dos juristas” da década de 90.   As posições assumidas em torno do sentido “reforma do Judiciário” no Brasil evidenciaram a grande capacidade de articulação e reconversão da elite jurídica no regime democrático.
Notadamente, no sentido de sustentar interesses corporativos e, em última análise, reforçar uma posição de defesa do Estado enquanto regulador social. Ou seja, a mobilização dos juristas brasileiros conseguiu bloquear parte significativa do modelo de reforma do sistema judicial legitimado no espaço internacional que apontava para um pacote de mudanças institucionais “adequado” ao modelo econômico neoliberal e que subordinava a prestação jurisdicional a lógica do bom ambiente de negócios.
Nesse sentido, a redemocratização política do Brasil favoreceu, mais do que em outros países latino-americanos, um processo de empoderamento das diferentes categorias de profissionais do direito e de crescente mobilização do Judiciário por atores da política representativa e grupos de interesse.
As discussões em torno da “reforma do Judiciário” e a criação de um Conselho Nacional de Justiça começam, já em 1974, com os primeiros movimentos em torno da produção de um diagnóstico, por parte do governo militar, sobre o funcionamento do poder Judiciário. No período pós-redemocratização,   diversas propostas de emenda constitucional tramitaram no Congresso Nacional inscrevendo na agenda política, a discussão da reforma que se tornou objeto de disputa. No âmbito do Congresso, a proposta que suscita o debate na década de 90 é realizada em 1992 pelo ex-deputado Hélio Bicudo do PT, militante histórico do movimento de direitos humanos e um dos principais símbolos do “retorno dos juristas” ao espaço político na década de 90.
A proposta de Hélio Bicudo é representativa de um conjunto de posições que aponta na direção da ampliação do acesso à justiça e à democratização do poder Judiciário. O conteúdo político da proposta de reforma defendida por Bicudo se opõe a outro conjunto relacionado aos movimentos de adequação do sistema judicial às necessidades da organização do mercado econômico Este segundo projeto põe em relevo a necessidade de dotar a atuação do Judiciário de “calculabilidade e eficiência” adequando este poder de Estado à “globalização.” Tal conformação implica que as funções do Judiciário devam ser predominantemente de arbitragem de conflitos individuais, de justiça penal, garantia de contratos e da segurança jurídica. Também está presente nesse projeto, uma maior recepção ao uso da arbitragem exra-judicial.
Nesse pacote de reformas também estão presentes teses do movimento americano Law &amp; economics que costuma indagar “o que é um bom sistema judicial”, do ponto de vista do mercado para o bom funcionamento da economia. Essa vertente da reforma é impulsionada pelo Banco Mundial e teve forte recepção em países latino-americanos, particularmente na Colômbia e no Chile. As principais prescrições estão resumidas no Documento Técnico 319 intitulado “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe – Elementos para reforma”, produzido por Maria Dakolias (1996) que articula a idéia de um sistema judicial eficiente do ponto de vista econômico com a difusão da proteção dos direitos civis e da moral dos direitos humanos (ver Guilhot, 2011).
Tais proposições estão previstas nos projetos de emenda constitucional (PECs) apresentados ao longo do debate da “Reforma” em 1999. São apresentadas por parlamentares que compunham a base de sustentação do governo de Fernando Henrique Cardoso à época. Conforme Castro e Costa (2001), o núcleo principal está presente nas PECs n. 36/99 e n. 08/99, dos deputados Luiz Carlos Hauly, PSDB/PR, e Ney Lopes, PFL/RN, n. 19/99, de Henrique Alves, PMDB/RN, n. 16/99, de Gonzaga Patriota PSB/PE, n. 09/99, de Vicente Arruda, PSDB/CE.
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A proposta “democratizadora” representada pela tomada de posição favorável a uma lógica de ampliação do acesso à justiça e a mediação social centralizada no aparelho estatal, está em afinidade com o discurso do conjunto dos movimentos associativos de magistrados, que se opõe, na conjuntura do debate, às propostas “racionalizadoras”. Nesse sentido, as propostas “democratizadoras” trazem um viés de legitimação social do Judiciário, cujo núcleo, além da ampliação do acesso à justiça traz, por conseqüência, a preservação do poder da magistratura e o empoderamento de diversas categorias de profissionais do direito.
As alterações defendidas por este pólo são destinadas a aumentar a permeabilidade social do Judiciário, diminuir a ingerência do poder Executivo na seleção dos membros dos tribunais, permitir a manutenção do pluralismo ideológico entre os juízes e amenizar a verticalização funcional no interior da magistratura. As tomadas de posição de juristas posicionados nas direções das associações de magistrados defensores deste conjunto de reformas também reforçam a idéia de que o Judiciário deveria aprofundar-se na tutela dos interesses coletivos, não se restringindo aos conflitos inter-pessoais.
As proposições de emenda constitucional contidas neste pólo de definição da reforma são majoritariamente realizadas por parlamentares identificados à oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso ao longo de 1999. Conforme Castro e Costa (2001) são representadas pela proposta de emenda constitucional à Constituição n., 43/99, do Dep. José Antonio Almeida, PSB/MA, n. 11/99 de Bonifácio Arruda, PSDB /MG, n. 38/39 de Agnelo Queiroz, PCdoB/DF, PECs n. 45/99 de Pedro Valadares, PSB/Se, n. 01/99 de Fernando Coruja PDT/SC, n. 44/99 de José Dirceu e Marcelo Deda PT/SP e PT/MG).
Resumidamente, o conjunto de proposições deste pólo aponta para a autonomização do campo jurídico em relação ao mundo econômico. A mobilização dos magistrados e outras categorias de profissionais do direito ancoradas no Estado demonstra que o discurso do acesso à Justiça, a defesa de prerrogativas da justiça e do “Estado” contra o “Mercado”, contribui para o estabelecimento de alianças com diversos movimentos sociais, em especial os relacionados à defesa corporativa de funcionários públicos. Em um mesmo sentido, a mobilização de estratégias de lobby e alianças com diversas associações estaduais e nacionais em torno de uma reforma do judiciário demonstra que nesse processo está em jogo, além de diversas questões específicas relacionadas ao acesso a justiça, principalmente    a identidade política das instituições judiciais.
Tal conjuntura intensifica a luta de diferentes categorias de profissionais do direito ancoradas no Estado pela autonomização do campo judicial e sua resistência aos movimentos que trazem outras concepções econômicas do sistema judicial. Em termos amplos, emerge um espaço de batalhas em torno da identidade política dos juristas de Estado no Brasil. Este campo de disputa política permeia a conjuntura das décadas de 90 e 2000 e influencia no resultado da reforma.
Ou seja, em termos políticos o modelo de sistema judicial resultante dos debates das décadas de 90 e 2000 não é capaz de romper com a herança dos arcaísmos da estrutura judicial e da ineficiência na prestação do serviço judiciário. Se por um lado, o grande empoderamento das profissões jurídicas, a preservação dos mecanismos de contra-majoritarismo das magistraturas contribuem para garantir direitos conquistados no regime democrático, por outro lado, o crescimento desse poder de justiça tem um custo muito alto. Em especial porque não há ruptura com o padrão de lentidão na prestação jurisdicional, permanece a excessiva burocratização, o corporativismo dos profissionais do direito e a falta de controle social da gestão do poder, problemas que suscitam novamente a necessidade de reformas.
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GUILHOT, Nicolas Limitando la soberanía o produciendo gobermentalidad? Dos modelos de Derechos Humanos en el discurso político de Estados Unidos . Revista Política. Vol 49 ,2011 Dossie Derecho, justicia y política Disponível em <a href="http://www.revistapolitica.uchile.cl/index.php/RP/article/viewFile/16745/17441">http://www.revistapolitica.uchile.cl/index.php/RP/article/viewFile/16745/17441</a>
COSTA, Flávio Dino de Castro e. Autogoverno e controle do Judiciário no Brasil: A proposta de criação do Conselho Nacional de Justiça. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.

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JOTA

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