Opinião e Análise

Álvaro Okura de Almeida

Andrei Koerner

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<p>Pelo menos desde 2003, às vésperas da invasão ao Iraque, a gramática dos direitos humanos ocupa lugar de destaque na identificação de ameaças às liberdades provocadas pelos Estados voltados ao combate ao terrorismo global. Já nos primeiros movimentos da Coalizão, liderada pelos Estados Unidos, alertou­se que a escolha da guerra, em posição contrária à dos países­membros do Conselho de Segurança da ONU e justificada pelo (falso) argumento da existência de armas de destruição em massa, teria efeitos potencialmente desestabilizadores para a ordem política internacional.</p>
<p>Com o andamento da guerra, ONGs e organismos da ONU dedicados ao registro e denúncia de violações de direitos humanos foram fundamentais para tornarem públicos os métodos de captura, interrogatório e julgamento adotados pelos agentes da Coalizão sobre as pessoas acusadas de terrorismo. Ao longo da última década, aquelas entidades apontaram em seus relatórios como as práticas de contraterrorismo feriam os princípios do direito humanitário e da dignidade humana. Os documentos revelaram condições desumanas de encarceramento, tratamentos cruéis e degradantes e o incentivo à prática sistemática de tortura como método de punição e investigação, sendo a Baía Naval de Guantánamo emblemática neste sentido.</p>
<p>A mobilização para que as ações de combate do terrorismo internacional fossem respeitadoras das regras do direito internacional e dos direitos humanos foi em parte responsável para que o então senador Barack Obama, candidato à presidência norte­ americana nas eleições de 2008, assumisse o compromisso de fechar a prisão de Guantánamo e retirar as tropas americanas do Iraque. Em consequência a política externa dos Estados Unidos tem sido marcada pela substituição da retórica grandiosa, agressiva e unilateral da Guerra Global ao Terror por discursos e ações mais simpáticos à construção de uma ordem internacional baseada na cooperação internacional e no fortalecimento das instituições multilaterais. Essa mudança coloca em primeiro plano o problema de definir novas estratégias de contraterrorismo e buscar alternativas mais “humanas, seguras e democráticas” à guerra.</p>
<p>Entretanto, o advento das técnicas brandas de contraterror que se pretendem substitutas – ou complementares ­ às técnicas tradicionais mais brutais apresenta novos desafios à reflexão política e jurídica, na medida em que com elas se incentivam e acionam novas medidas de segurança que atuam com intensidades e instrumentos novos. Exemplo deste tipo de problema foi o debate suscitado pelas revelações de Edward Snowden a respeito do método e do alcance do aparato estatal de inteligência nos Estados Unidos, cuja principal função é o combate ao terrorismo internacional.</p>
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<p>Logo que as denúncias de Snowden tornaram­se conhecidas, o governo norte­ americano foi acusado mais uma vez de promover ações que extrapolavam seu raio legítimo de ação, ao violar o direito dos indivíduos à privacidade. A denúncia baseava­ se no fato de que alvos para ações de monitoramento e vigilância nada tinham a ver com grupos terroristas. Esse tipo de crítica ao arbítrio e às formas de dominação nele cristalizadas é fundado exclusivamente no direito dos indivíduos, entendido como espaço de liberdade inviolável e inalienável. Porém, ao se colocar o problema nesses termos, perde­se de vista a racionalidade que orienta os dispositivos de segurança.</p>
<p>A reunião indiscriminada de dados sobre pessoas e comunicações não é (somente) resultado do abuso cometido por agentes e instituições envolvidas na tarefa de proteger a população. Ela é o efeito da forma pela qual o terrorismo é pensado como problema de segurança e que exige tecnologias preventivas baseadas na análise de riscos. O que permanece na transição das estratégias de contraterrorismo – das mais duras às mais brandas – é justamente certa problematização a respeito do terrorismo como questão de segurança.</p>
<p>Na retórica da segurança, o perigo representado pelo terrorismo internacional – catastrófico e quase imprevisível ­ exigiria dispositivos inovadores capazes de detectar e impedir a ocorrência de ataques iminentes. O objetivo seria tornar visíveis os preparatórios dos atentados. Dispositivos sensíveis às ações camufladas no interior da vida civil que indicariam o risco de atentados. O que está em jogo, para além da intenção declarada de proporcionar maior segurança à população, é a implementação de tecnologias de controle social, com novas formas de calcular o risco de desordem, selecionar a ameaça e perceber as relações entre os agentes observados e o ambiente em que atuam.</p>
<p>Dada a maneira pela qual esses novos dispositivos atuam, não se trata de identificar, julgar e punir os acusados de terrorismo, mas de encontrar indícios que antecipem os potenciais agentes e as suas intenções. Típico da caracterização dos grupos terroristas é a capacidade de mobilizar agentes e recursos camufladamente, à sombra dos aparelhos policiais e militares tradicionais. Até a execução do ato, existiria uma série de ações dos sujeitos envolvidos no crime, que não seriam detectadas pelos organismos de segurança. Nos dispositivos de segurança instaurados, o objetivo é a busca pela identificação e isolamento desta performance oculta para que, a partir dela, se possam identificar os sujeitos com essas intenções. É a partir da análise de comunicações, transações e interações suspeitas que estas técnicas procuram encontrar terroristas que ainda não foram identificados.</p>
<p>Importa destacar que é a partir da observação dos padrões de comportamento de um grupo dado de indivíduos ­ ou da população – que a análise determinará a “normalidade” ou “anormalidade” de uma dada interação. O normal e o anormal, o legítimo e o suspeito, são assinalados a partir de suas diferentes relações com a regularidade, a expectativa média e a probabilidade esperada de uma ação em curso. O anormal é definido em relação ao desvio à norma padrão – entendida como regularidade; Mas a norma padrão não é definida a partir de um normal definido previamente e nem fixado por variáveis conhecidas ou estáveis. A própria norma padrão é estabelecida a partir de uma massa de informações sobre as quais não se têm, em princípio, elementos para selecionar critérios e parâmetros.</p>
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<p>Parece que o que é singular no dispositivo atual é que a construção do risco não se baseia em fatores que podem ser observados e calculados de maneira estável. O dispositivo é construído de modo a ser capaz de prevenir eventos que se é incapaz sequer de nomear. Os alvos ou destinatários das ações de prevenção – os potenciais terroristas – não são selecionados segundo atributos fixos, e neste sentido eles estão longe de serem visados segundo os estereótipos que se propagam no discurso público. Adotam­se programas capazes de, a partir do cruzamento de bases massivas de dados, observar comportamentos de indivíduos, selecionar critérios e variáveis, estabelecer suas regularidades comportamentais. A combinação e cálculo das regularidades permitem não só, como se faz no cálculo clássico de seguros, determinar a probabilidade de ocorrência de um evento e o risco representado por determinado indivíduo, mas também, a partir de uma massa informe de comportamentos registrados, o instrumento de cálculo selecionar e refinar critérios, e fazer inferências de ações a partir deles. Assim, um determinado indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos poderia ser circunscrito como suspeito, ou, inversamente, se suspeitos pode­se analisar seu comportamento num determinado período de tempo, estabelecer seus vínculos e relações, examinar o conjunto de seus atributos em função de uma população de referência, de modo a determinar suas motivações e identificar seus intentos.</p>
<p>Na análise de dados (e metadados) das comunicações telefônicas e digitais e das movimentações financeiras, por exemplo, esses instrumentos identificam regularidades associadas a certos fatores de etários, de renda, gênero, localidade, mas também seus sentimentos, frustrações e redes de relacionamento. Por meio de instrumentos hiperracionalizados, pode­se, então, rastrear os preparativos de operações a serem potencialmente realizadas pelos suspeitos. Com isso, pretende­se que os serviços de segurança sejam capazes de realizar intervenções pontuais e precisas, que se antecipem à possíveis ações a que se atribui o propósito terrorista com o mínimo de danos ao seu entorno. O dispositivo dá as bases cognitivas para as intervenções, com as quais elas se tornam válidas como atos de emergência, e justificadas perante a opinião, mesmo que as consequências para os atingidos, sejam brutais, irreversíveis e desproporcionais do ponto de vista de um juízo comum. Sua não culpabilidade não é mais colocada em questão, e nem poderia ser. Tudo depende da avaliação do risco realizada por grupos de agentes de segurança sem nome e sem responsabilidade.</p>
<p>No dispositivo de segurança, o terrorismo é uma ameaça permanente cujo risco é calculado a partir do cruzamento de diferentes jogos de probabilidades, que se constroem sobre variáveis elas mesmas em mutação constante e estão em permanente processo de aprendizagem. A antecipação da ameaça por meio do cálculo auto­ incremental do risco parece ser a racionalidade predominante nestes instrumentos. Esse tipo de lógica de segurança não pode abrir mão do monitoramento constante dos fluxos comunicacionais e financeiros de toda a população para lhe identificar as regularidades, pois delas necessita ao menos para ter informações para estabelecer padrões de regularidade. Então, ela parece colocar em questão o pressuposto dos críticos, que estimam ser possível restringir o monitoramento e vigilância apenas aos alvos legitimamente suspeitos de terrorismo – já que a própria suspeita é construída na observação do jogo de regularidades e irregularidades no fluxo normal do sistema financeiro e comunicacional, e de toda atividade social os agentes passível de ser objetivada.</p>
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<p>Hoje, portanto, a questão da crítica – ou como não ser governado dessa forma – não pode ficar restrita à identificação das graves violações de direitos humanos cometidas contra os prisioneiros de guerra, nem às (nem tão graves) violações ao direito à intimidade dos cidadãos nas democracias liberais, mas também deve estar atenta às implicações das novas e consentidas formas de objetivação dos sujeitos e de seus comportamentos como matéria­prima de uma tecnologia de produção de verdade e de governo das condutas destinada a garantir-­lhes a segurança.</p>
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<p><em>Álvaro Okura de Almeida é doutorando no PPG em Ciência Política do IFCH/Unicamp. Autor da dissertação Direitos Humanos e Guerra contra o Terror – Três Ensaios Críticos. PPGCP/IFCH/Unicamp, 2015.</em></p>
<p><em>Andrei Koerner é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em Ciência Política do IFCH/Unicamp. Autor de: Direito, regulação e governamentalidade. In: L. Scavone, M. C. Alvarez, et al (Ed.). O Legado de Foucault. São Paulo: Unesp, 2006, p.223‐40.</em></p>
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Gitmo 126

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Os direitos humanos depois da Guerra ao Terror

Uma nova normalidade?