Opinião e Análise

Roberto Fragale Filho

Ana Paula Sciammarella

Em novembro de 2015, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro elegeu seu ouvidor, pela primeira vez, desde a criação da função em 2006, externo aos seus quadros. O processo de escolha previu a elaboração de uma lista tríplice formada a partir de eleição entre cidadãos não integrantes da carreira e indicados pela sociedade civil, com a palavra final sobre a escolha do Ouvidor externo recaindo sobre o Conselho Superior da instituição. Em tese, como esse novo modelo participativo, a Ouvidoria deveria funcionar como um canal de diálogo com a sociedade civil, na trilha dos canais de diálogo e participação popular inaugurados pela Constituição de 1988.
Estes canais, que ganharam espaço ao longo dos anos nos poderes legislativo e executivo, seguiram, contudo, restritos no âmbito das instituições do sistema de justiça. Foi tão somente com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fruto da Emenda Constitucional 45/2004, que se produziu um primeiro sinal de inserção do controle social na instituição judiciária. Com efeito, sua criação teria simbolizado uma ponte até um judiciário inacessível e marcado a oportunidade de superação de um déficit democrático. Entretanto, ao cabo de uma década, o que se observa é a predominância de profissionais do aparato judicial e a prevalência do argumento de que o CNJ não seria um órgão externo, mas, ao contrário, integrante do poder judiciário. Este quadro acaba por escamotear a demanda por um controle mais amplo, não tendo sido capaz de trazer, como sempre fora postulado, o controle social externo para dentro de sua arena, como já procurou demonstrar o aqui primeiro autor em ocasião pretérita (DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 56, n. 4, 2013, pp. 975-1007).
Na Defensoria Pública, a rota para implantação de mecanismo de controle externo foi inaugurada pela Lei Complementar 132/2009 ao determinar a criação de uma Ouvidoria externa, com um Ouvidor não integrante de seus quadros. Inspirada no modelo adotado pela “jovem” Defensoria de São Paulo, a Ouvidoria externa é caracterizada por um inovador mecanismo de controle e participação social, abrindo uma verdadeira fenda no historicamente hermético sistema de justiça, como procurou evidenciar Luciana Zaffalon Leme Cardoso em livro publicado em 2010. A inserção deste modelo na Defensoria do Rio de Janeiro, a mais antiga do país (instalada em 1954), não foi recebida, contudo, de forma muito efusiva.
Aliás, foi do Rio de Janeiro que partiu a iniciativa da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4608/2011, proposta pelo Partido Social Liberal (PSL). Ainda pendente de julgamento, a ação questiona o inovador modelo de controle. Foi também no Rio de Janeiro que, em 2011, ignorando as alterações introduzidas pela LC 132/2009, o Conselho Superior da Defensoria Pública compôs uma lista tríplice formada apenas por defensores aposentados. Em 2013, a história se repetiu e a oposição à Ouvidoria externa foi pauta da campanha de reeleição do Defensor Público Geral, que afirmava sua recusa ao que ele chamava de “bizarra modalidade de controle em desfavor apenas dos defensores públicos”.
Finalmente, em 2015, em outro giro, o modelo normativo da LC 132/2009 foi adotado e a escolha do Ouvidor teve início com a realização de uma audiência pública para o esclarecimento dos critérios de sua escolha e atribuições. Foram convocadas organizações da sociedade civil e movimentos sociais, resultando em sete candidaturas (dentre as quais a da aqui segunda autora), cujos perfis eram bastante diversificados: os candidatos e candidatas estavam vinculados a organizações feministas, organização de mulheres negras, associação de defesa dos direitos dos deficientes, movimento associativo de favelas, movimento de luta pela moradia, organização de defesa dos direitos humanos. Assim, as pautas dos candidatos dialogavam com temas de gênero, raça, moradia, cidadania e mediação de conflitos. Entre os candidatos com nível superior, dois possuíam formação em Direito e outras duas em Serviço Social. Do total de candidatos, três deles já possuíam assento em outros órgãos de controle social (Conselho de Direitos Humanos, Conselho de Prevenção às Drogas e Conselho de Segurança Pública).
Como eleitoras, inscreveram-se dezessete instituições: Redes de Desenvolvimento da Maré, Instituto de Estudos da Religião (ISER), Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB-Rio), Viva Rio, Laboratório de Análise da Violência (LAV/UERJ), Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), Central de Movimentos Populares (CMP), Federação das Associações de Favela do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas, Rede Rio Criança, Grupo Arco Íris de Cidadania LGBT (GAI), Associação Pamen Central Humana de Educação, Ideias e Formação Alternativa (CHEIFA), Organização de Direitos Humanos Projeto Legal, Movimento Moleque, Movimento Popular de Favelas Brasil (MPF), Observatório das Favelas e Conselho Regional de Serviço Social (CRESS-RJ/7ª Região).
De um modo geral, a maioria das instituições votantes estava vinculada às “bandeiras” defendidas pelos candidatos. Conforme exigência do edital de convocação, todas possuíam assento em algum conselho de defesa de direitos ou relacionados a temas afins às atividades da Defensoria. Ao longo do dia 09 de outubro de 2015, após a apresentação oral das propostas pelos candidatos, transcorreu a votação que resultou na lista tríplice composta por: Lúcia Maria Xavier de Castro, a candidata mais votada, seguida de Pedro Daniel Strozenberg e Nathalia Carlos da Silva.
Na semana seguinte, os integrantes da lista tríplice foram sabatinados, em sessão aberta, no auditório da Defensoria, onde responderam às perguntas dos defensores presentes sobre temas que variaram desde a opinião dos candidatos sobre o auxílio moradia para membros do judiciário e defensores públicos até a forma com pretendiam estruturar a Ouvidoria, especialmente sobre a criação (ou não) de um conselho consultivo e, mais ainda, se estes conselheiros seriam remunerados para tal função. O resultado final, após a sabatina, foi deliberado em reunião própria do Conselho Superior, que escolheu, quase de forma unânime (dos oito votos, apenas um foi para a candidata Lucia), o segundo candidato mais votado na lista tríplice, Pedro Daniel Strozenberg, como novo ouvidor-geral.
Entre as pontes do CNJ e as fendas da Defensoria, verifica-se, sem dúvida, um inegável avanço, pois se passou de um modelo capturado por representações corporativas para outro articulado em torno da sociedade civil organizada. Esse avanço, entretanto, não responde definitivamente às questões em torno da construção de mecanismos de controle social dos sistemas de justiça com participação da sociedade civil.
Com efeito, o modelo escolhido não fomenta uma participação difusa de diferentes cidadãos, mas, ao contrário, ele incrementa uma representação institucionalizada por meio daquilo que poderíamos provocativamente chamar de profissionais da sociedade civil. Isso é ruim? Não sabemos e não nos propusemos a aqui oferecer uma resposta. Na verdade, se, por um lado, esse texto é uma descrição de um processo pouco divulgado, por outro lado, ele postula ser mais um passo na problematização do controle social, da accountability desejada para o judiciário.
Fica, portanto, a torcida para que a experiência da Ouvidoria da Defensoria fluminense, agora capitaneada por Pedro Daniel Strozenberg, secretário executivo do ISER, com experiência prévia no Conselho Nacional de Juventude e no Conselho Nacional de Segurança Pública, assim como, em nível estadual, no Comitê de Enfrentamento à Tortura, no Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e no Conselho Estadual de Direitos Humanos, nos ajude a avançar na construção de mecanismos efetivos de participação popular no controle social dos sistemas de justiça.

RIO/MANIFESTAÇÃO

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Caminhos da participação popular no sistema de justiça

As difíceis veredas