Opinião e Análise

Fabiano Engelmann

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<p>As doutrinas jurídicas tem importante papel na conformação das decisões judiciais no sistema jurídico brasileiro. Presentes como abstrações mobilizadas enquanto argumentos de autoridade contribuem para o hermetismo do campo jurídico condicionando a forma como determinados temas políticos e sociais podem e devem ser tratados. Caracterizando­se como um conjunto de conhecimentos eruditos são difundidas através dos manuais de direito e transcritas em decisões que servem de parâmetro para a reprodução quase automática de conceitos nos tribunais.</p>
<p>O retorno do direito e dos juristas ao espaço público brasileiro no pós­regime militar com a proliferação de diversas categorias de profissionais encarregadas de dizer o direito, fez­se acompanhar também do boom na produção acadêmica de doutrinas jurídicas. Uma demanda que só cresceu com a imbricação do debate jurídico e político desencadeado já na Constituinte de 1986 e prolongado nas batalhas em torno do sentido dos marcos institucionais da Constituição de 1988. A "supremacia da Constituição" construída nos embates em torno do sentido das suas regras e das doutrinas constitucionais varia em diferentes conjunturas, assumindo centralidade em momentos de "crise" da representação política ou de ineficiência crônica na gestão pública.</p>
<p>Em um primeiro momento que circunda a Assembléia Constituinte, entra em jogo o potencial de intervenção, de mudança social que a regra constitucional pode proporcionar na gestão de recursos públicos. O sugestivo apelido de "Constituição cidadã" capaz de devolver pelo cumprimento de regras constitucionais a condição de cidadania após o autoritarismo militar diz muito sobre esse processo Posteriormente, nas décadas de 1990 e 2000, no cenário de consolidação do poder de diversas categorias de profissionais do direito e pela reorientação estratégica de muitos grupos de interesse para o sistema judicial; o ativismo constitucional assume diferenciadas modalidades avançando para uma crescente mise en forme do processo político e da execução de políticas. Embora os efeitos desse fenômeno se façam sentir principalmente pela ação dos juristas que detêm o poder jurisdicional ou propositivo de ações judiciais, a base está na formação dos consensos derivados da "força do texto" construído e reconstruído permanentemente por seus doutrinadores.</p>
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<p>A análise dos livros e artigos de doutrina que abordam a "judicialização de políticas" nos fornece um caso bastante representativo dessa problemática. A mediação do Poder Judiciário na agenda de políticas envolve um jogo em que o centro é a disputa pelo sentido das normas e princípios que regram as políticas de governo nas mais diferentes esferas.</p>
<p>As oposições presentes nas doutrinas que discutem a judicialização de políticas públicas envolvem um conjunto de fenômenos onde se destacam os curto­circuitos entre princípios gerais de direito e a dinâmica da administração pública em diversas esferas. O núcleo central do embate são as condições de efetiva intervenção do Judiciário e, mesmo do direito, na dinâmica da execução de políticas. E não se trata de um problema só atinente ao caso brasileiro, obviamente, variando em diferentes países conforme o grau de protagonismo e independência do sistema judicial em relação aos poderes políticos.</p>
<p>No debate doutrinário brasileiro sobre o controle jurisdicional de políticas [1], os argumentos mais recorrentes que marcam as posições contra a judicialização da gestão pública são articulados pelos agentes que defendem a maior autonomia gerencial dos governos frente aos princípios gerais de direito público. Evocam a “separação de poderes” ressaltando uma “indevida ingerência” do Judiciário em matérias de competência do Executivo, assim como, a necessidade de “racionalidade da administração” que envolve a autonomia das administrações em definir critérios para a execução de políticas. Exemplo dessa linha são os argumentos baseados na doutrina alemã “da reserva do possível” que prega que somente parte do orçamento público pode ser disputado em demandas judiciais. Ainda se pode adicionar nesta vertente autores que se apóiam na idéia de que o acesso ao Judiciário é restrito a segmentos mais abastados da sociedade.</p>
<p>Já os argumentos favoráveis à judicialização mobilizados no debate baseiam­se principalmente em princípios gerais e em um movimento que atribui aos intérpretes da Constituição um grande poder de agenda política. Entre os princípios, destaca­se a noção de “dignidade da pessoa humana” que se superporia a cenários de escassez orçamentária da administração pública, por exemplo.</p>
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<p>A amplitude e pluralidade de sentidos dos princípios constitucionais destina um grande poder ao Judiciário que aparece não apenas como um guardião de normas constitucionais e do Rule of Law, mas como promotor de um sentido moral da política capaz de se superpor a gestão pública e todas as questões financeiras, políticas e administrativas implicadas.</p>
<p>No final das contas importa saber o quanto existe de permeabilidade entre as esferas doutrinárias do direito e a dinâmica da execução de políticas. Ou seja, de um lado, o quanto os autores encarregados de fornecer elementos para a construção de decisões judiciais ­ a partir das abstrações jurídicas ­ são capazes de absorver os cenários dinâmicos da gestão pública sem ficar reféns de abstrações e imperativos morais. De outro lado, qual a capacidade dos governos em diferentes esferas de organizar a execução orçamentária conforme o previsto em lei, antecipando­se às demandas judiciais que podem representar perigoso fator de imprevisibilidade diante de escassez orçamentária.</p>
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<p><em>[1] - Ver ENGELMANN, Fabiano &amp; CUNHA FILHO, Marcio Camargo. (2013) Ações judiciais, conteúdos políticos: uma proposta de análise para o caso brasileiro. Rev. Sociol. Polit. vol.21, n.45, pp. 57­72.</em></p>
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JOTA

Importa saber o quanto existe de permeabilidade entre as esferas doutrinárias do direito 

Doutrinas jurídicas no jogo das políticas públicas

Importa saber o quanto existe de permeabilidade entre as esferas doutrinárias do direito e a dinâmica da execução de políticas