Opinião e Análise

Andrei Koerner

O acaso faz com que as nossas trajetórias individuais, movidas por nossos projetos privados, coincidam com eventos de ampla repercussão. Tornamo-nos testemunhas diretas e, eventualmente, atores de fatos que, à primeira vista, pareciam muito distantes de nossas perspectivas e preocupações. Eu estava em Paris em janeiro e também em novembro de 2015 e pude acompanhar, interpretar e sentir o impacto dos atentados terroristas, cujos desdobramentos se fazem sentir ainda hoje e estarão presentes por muito tempo nas nossas mentes e sociedades.
Este artigo apresenta algumas anotações e análises sobre as reformas constitucionais e legislativas iniciadas a partir de novembro, que tenho acompanhado no cotidiano, em seminários acadêmicos e, sobretudo, pela imprensa, pelos jornais Le Monde (LM), Libération (LIB) e a revista Le Nouvel Observateur (LNO). Não pretendo fazer uma análise do processo político, nem das posições assumidas por todo o espectro político e de opinião do país, mas concentro-me nas questões suscitadas no campo progressista face às reformas promovidas pelo governo socialista.
Em resposta aos atentados de novembro, o governo tomou medidas duras: internamente, decretou o estado de urgência, a que se seguiram ações policiais de repressão de suspeitos de envolvimento com o terrorismo, e a promoção de uma agenda consensual para reformas legislativas e de organização da polícia, de modo a tornar mais eficaz a capacidade de prevenção dos serviços de segurança; externamente, buscou apoios de outros países para intensificar o combate militar ao Estado islâmico na Síria e no Iraque. O presidente Hollande convocou uma sessão extraordinária do Congresso, ou seja, uma sessão conjunta do Senado e da Assembléia Nacional, na qual anunciou que promoveria a reforma da Constituição para prever o estado de urgência e a perda do direito de nacionalidade para os condenados por graves atentados contra a nação. A lei de 1955, que prevê o estado de urgência, seria juridicamente frágil e poderia ter a sua constitucionalidade atacada e, assim, a sua inscrição na Constituição reforçaria o seu estatuto jurídico.
Alguns apoiaram a iniciativa, por considerarem que a constitucionalização do estado de urgência seria uma maneira de compatibiliza-lo com o estado de direito, ao definir os requisitos de decretação, as ações autorizadas, o tempo e os efeitos das medidas tomadas durante a urgência. Mas muitos criticaram as ambiguidades do texto, a inoportunidade da iniciativa, os riscos da constitucionalização. Seguiu-se um debate jurídico sobre estado de direito e exceção, democracia e combate ao terrorismo (LM, 22/12/2015, dossiê sobre a perda de nacionalidade e documento de professores de direito contra a sua adoção, pp. 7-19).
A reforma constitucional é acompanhada por projetos de lei que preveem a ampliação dos poderes de combate ao terrorismo. A reforma do processo penal e da polícia ampliará os poderes do parquet e da polícia em tempos ordinários, permitindo a execução de buscas policiais sem autorização judiciária, a realização de perquisições noturnas, entre outras mudanças. Propõem-se também medidas para controlar a circulação de pessoas e mercadorias, as comunicações e os fluxos financeiros. Formulam-se propostas pedagógicas e terapias para combater a radicalização nas escolas, nos centros de convivência e prisões.
O ponto mais polêmico da reforma constitucional é a perda da nacionalidade para os condenados por atos graves contra a nação. A legislação atual a prevê para os naturalizados, mas não para pessoas nascidas no país. Condena-se, com razão, que a proposta governamental contraria as tradições republicanas e progressistas da esquerda. A perda da nacionalidade dos binacionais tem caráter discriminatório, pois cria duas categorias de franceses segundo sua ascendência, e se torna uma ameaça permanente sobre os binacionais. Além disso, ela tem efeitos diplomáticos desastrosos ao desvalorizar o segundo país, considerado uma “lixeira” na qual se descartam os criminosos.
Outro efeito decorre da ambivalência jurídica da perda de nacionalidade, pois ela é posta como uma sanção adicional à condenação criminal. Isso indica que o governo pretende combater o inimigo interior colocando-o numa situação limiar ao ordenamento jurídico. Pois, se a ação for tipificada como crime, ela releva do direito penal e de uma punição por um tribunal normal. Porém, se se trata de um ato de guerra, ele releva da autoridade militar, não é crime e as medidas de segurança – detenção e isolamento – só se mantêm enquanto durarem as hostilidades, ou o estado de guerra. François Ewald considera que a perda de nacionalidade é uma pena que visa uma espécie de submissão adicional, com a qual, tal como no Antigo Regime, aquele que praticou o ato atentatório ao soberano seja reduzido a nada e, no limite, eliminado. Seria uma forma de degradar o condenado, de fazê-lo passar por um cerimonial que visa atingi-lo na sua identidade e dignidade, na sua condição de sujeito ou cidadão de uma comunidade política. A categoria de inimigo interior torna-se aplicável não só aos binacionais e aos que têm ascendência estrangeira, mas a todos. A perda da nacionalidade cria um inferno jurídico para o condenado e, com a noção de inimigo interior, é objetivada uma nova figura que passa a receber um tratamento particular. Ela evidenciaria uma nova política criminal, composta por medidas de vigilância, segurança e exclusão.
Do ponto de vista do condenado, se ele é detentor da nacionalidade francesa e residente no país até a condenação, depois que ele perder a nacionalidade a gestão da sua situação não releva nem da jurisdição comum e nem da militar, mas de uma jurisdição especial. Esse ponto torna-se importante se se considerar a situação em que um binacional, nascido e criado no país, seja condenado à perda da nacionalidade, ao mesmo tempo em que o seu direito ao ingresso não é aceito pelo país do qual ele também é nacional. No final da pena, a autoridade francesa decretará a sua expulsão do território nacional, mas ele não é recebido em lugar algum. Assim, ele não tem mais direito de permanecer na França nem no território do outro país de que é nacional nem, tampouco, em países terceiros. Ele se torna na prática um apátrida e, como apresenta ameaça potencial ao estado francês, ele permanece mantido por prazo indeterminado em algum centro de detenção. Patrick Weil afirma que o condenado destituído da nacionalidade se tornaria uma espécie de animal humano, e não sujeito de direitos, e assim não teria direito a permanecer no país. No entanto, não há qualquer clareza do que seria feito com eles quando saem da prisão, e seu estatuto jurídico haveria de ser criado (LM, 08/01/2015, p. 9). Desse modo, a perda da nacionalidade parece uma versão da noção de combatente inimigo, criada pelo governo Bush para manter em detenção sem acusação nem processo estrangeiros capturados na guerra contra o Afeganistão. Eles caíram num limbo jurídico, submetidos às medidas de segurança – além de outras violações de seus direitos.
Giorgio Agamben analisa a combinação de estado de urgência, perda da nacionalidade e reformas do aparato de segurança de um ponto de vista mais geral. Essas mudanças seriam evidências da passagem das democracias ocidentais, que combinavam estado de direito e sociedade disciplinar, para um Security State. Neste, as razões de segurança tomam o lugar da razão de Estado, o direito é fundado de forma durável sobre o medo, mantido por meio do aparato de segurança que se exerce permanentemente com ações preventivas sobre inimigos potenciais. É estabelecida, então uma nova relação de governo da multiplicidade dos agentes, com controle generalizado sobre seus desejos e medos, o seu perfil de informação e comunicação, antes mesmo de suas opiniões, projetos e ações. O risco é de se criar uma relação sistêmica, com base no medo, entre terrorismo e estado de segurança, em que um se alimenta do outro e o fortalece. Os indivíduos passam de cidadãos detentores de direitos a membros ‘naturais’ de uma comunidade de raça, considerados como fatores de risco e destinatários de medidas de segurança, despolitizando-os e excluindo a sua participação política. Renuncia-se à verdade judiciária, valendo-se das evidências produzidas pela política e repercutidas na mídia, o que mantém os cidadãos na incerteza sobre o que os ameaça, o que reforça a percepção compartilhada dos riscos de terror (LM, 24/12/2015, p. 16). No mesmo sentido, Philippe Corcuff, Patrick Boucheron e Corey Robin rejeitam o exercício do poder político sobre as nossas emoções, em que o medo justifica a delegação a tecnocratas a proteção dos indivíduos (LIB, 02/12/2015, p. 25).
A crítica às políticas securitárias implica a discussão sobre o próprio islamismo. Jacques Rancière considera que o islamismo radical não é um problema cultural ou religioso, mas uma forma de subjetivação coletiva com base no ódio identitário. Por isso, a perda da nacionalidade seria incapaz de combater os crimes e alimentaria o ódio que os engendra. A solução deveria ser política e não policial, e seria necessário levar a sério a dissidência virtual de uma parte da população, combater as discriminações e desigualdades e repensar as formas de sociabilidade. Seria necessário reconhecer a possibilidade de os imigrantes tomarem a palavra, se expressarem sobre suas concepções da vida comum, por meio de maiores oportunidades de participação na política do país (LNO n° 2673, de 28/01 a 03/02/2016, pp. 73-6). Jean Birnbaum critica a esquerda por ter sido incapaz de discutir uma questão prévia: a da religião, como modo de vida, como pertencimento no mundo, fé íntima e crença compartilhada. O fundamental é a esperança que ela proporciona a milhares de jovens no mundo inteiro, capazes de sacrificar tudo em seu nome. Depois da crise do comunismo, o islamismo se apresenta como o único ideal internacional capaz de desafiar a ordem mundial. A idéia de uma solidariedade internacional dos trabalhadores foi substituída pela entreajuda mundial entre muçulmanos (LNO n° 2671, de 14 a 20/01/2016, pp. 72-4).
Ao longo desses três meses, a reforma constitucional foi criticada por parlamentares de esquerda, organizações de direitos humanos, juristas e associações. Foram infrutíferas as críticas dos próprios socialistas à reforma, e as alternativas propostas não foram acolhidas. Pergunta-se por que o Presidente Hollande e seu primeiro-ministro insistem nessa tecla: sentimentos pessoais feridos, exercício solene da função regaliana da Presidência, adesão sincera a concepções securitárias de defesa nacional, cálculo eleitoral? A extrema-direita se congratula por ver suas proposições no cerne da agenda governamental, atribuindo à esquerda a culpa pelo atraso na sua adoção e, implicitamente, pelas deficiências de repressão estatal que teriam permitido os atentados. Por sua vez, a centro-direita se divide entre o apoio ou a rejeição às mudanças, pois ela concorda com o conteúdo, mas hesita em dar ao governo socialista a oportunidade de realizar uma reforma defendida por ela, e que tem é aprovada por mais de 80% do eleitorado, cuja adesão à extrema direita vem sendo crescente (LM, 05/01/2016, p. 8; (LNO n° 2670, de 07 a 13/01/2016, pp. 64-6))
O texto original da reforma previa a perda da nacionalidade para os binacionais nascidos na França, se condenados por crimes determinados. Em resposta às críticas, o primeiro-ministro apresentou à Assembleia uma nova redação, segundo a qual haveria a perda da nacionalidade ou de parte dos direitos a ela associados, para todos os condenados por crimes e delitos graves praticados contra a nação, independentemente de serem binacionais. O dispositivo seria regulado por lei e caberia à autoridade judicial determinar a extensão da perda de direitos (LIB 28/01/2016, p. 8). O governo assegura que ratificará o tratado de Nova Iorque, de 1961 que proíbe decisões que criem apátridas, com algumas exceções (LIB, 05/01/2016, pp. 5-6). No entanto, ao assinar a convenção, o governo francês estabeleceu a reserva de que poderia transformar um francês em apátrida se atuou em benefício de um Estado estrangeiro ou teve comportamento que provocou grave prejuízo aos interesses essenciais do Estado. Políticos governistas procuraram minimizar a relevância da existência de apátridas, argumentando que, diferentemente do passado, não estariam envolvidos grandes números de indivíduos, mas apenas alguns criminosos (LM, 08/01/2016, p. 8). Foi também criticada a extensão da regra também para os condenados por delitos. O governo respondeu que o requisito da decretação por autoridade judicial excluiria o risco de arbitrariedades. No entanto, o risco de se criarem, de direito ou de fato, apátridas é ainda maior do que na proposição inicial da reforma.
A tramitação da emenda constitucional tem duas etapas: a sua admissibilidade é examinada pelas duas casas, separadamente, e deve ser aprovada por maioria simples. Em seguida, o projeto será examinado pelas casas reunidas em Congresso e dependerá de maioria qualificada de três quintos para ser aprovado. Há duas semanas, o governo conseguiu aprovar a ementa na Assembleia Nacional, com margem pouco maior que a maioria qualificada. Mas a reforma continuará a tramitar numa situação em que, com exceção do Front de Gauche, todos os partidos estão divididos, o governo depende do apoio do centro e da direita e o Senado abre disputa política com a Assembléia. Isso sobre o pano de fundo da disputa presidencial de 2017, em que as primárias dos partidos colocam-se na agenda política imediata. O primeiro-ministro criticou duramente os seus colegas de partido por não apoiarem o compromisso do Presidente e colocarem em risco a sua maioria. No final de semana, em conferência inter-governamental sobre a segurança na Europa, ele voltou à carga, afirmando a necessidade de reformas no aparato de segurança, face à ameaça de hiperterrorismo enfrentada por todos os países da União.
É provável que o governo venha aprovar a reforma constitucional e as leis de reforma do processo e da polícia nas próximas semanas. A lógica da 5ª República francesa fortalece o poder de agenda do governo, pelas regras relativas ao processo legislativo, as dificuldades de demissão do governo etc. Outras características reforçam o poder das lideranças partidárias, como a acumulação de mandatos e a o sistema eleitoral majoritário de lista em dois turnos. A dissidência tem altos custos, mas os 30 a 40 deputados socialistas que se opunham até agora à política econômica do governo passaram a mais de 100, que rejeitaram ou se abstiveram na votação da emenda constitucional. Trata-se de uma situação inédita no PS na Quinta República.
Mas a lógica da 5ª República impõe custos políticos altos também para as lideranças principais. Num quadro de aumento da força política da extrema-direita, que ultrapassou os 20% nas eleições regionais e chegou a 40% em algumas delas, a divisão perene da esquerda implicaria o risco de o seu candidato não passar ao segundo turno nas próximas eleições presidenciais, repetindo a eleição de 2002. Isso num quadro em que estão postos na agenda os temas centrais da direita: a Europa, imigração e integração, e a segurança interna. Assim, a eventual aprovação da emenda constitucional e de outras reformas processuais e da polícia pode vir a ser o prelúdio de uma virada securitária ainda mais acentuada na política e sociedade francesa nos próximos anos, ao preparar o campo para uma vitória da direita. Além disso, o governo Hollande-Valls aprofundou nos últimos dias as cisões internas no PS com o projeto de reforma das leis trabalhistas, e por isso vem sendo chamado de drauche, um híbrido direita e esquerda.
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/camara-aprova-projeto-de-lei-que-tipifica-o-terrorismo">Câmara aprova projeto de lei que tipifica o terrorismo</a>
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/pf-em-pauta-pela-necessidade-de-uma-lei-brasileira-sobre-terrorismo">PF em Pauta – Pela necessidade de uma lei brasileira sobre terrorismo</a>

François

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JOTA

As reformas constitucionais e legislativas iniciadas a partir dos atentados de Paris

Reforma constitucional para o combate ao terrorismo

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