Opinião e Análise

Cristiana Losekann

Esta é a minha estreia na coluna <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade">Judiciário e Sociedade</a>, por isso gostaria de apresentar genericamente o tema com o qual estou comprometida como pesquisadora e que será o foco preferencial de minhas incursões nesta coluna. Trata-se do estudo das interações que observamos, cotidianamente, entre o campo jurídico e as formas de resistência e protesto organizadas de diversas formas pela sociedade.
O tema colocado com o enfoque da interação pode, em princípio, causar alguma estranheza, tendo em vista que, em face ao campo jurídico, tradicionalmente tido como um espaço de produção e manifestação do “status quo”, sobretudo pelos movimentos sociais de raiz mais antissísmica, qualquer relação só poderia ser de confrontação ou oposição.
Contudo, ao escolher a palavra interação, abre-se justamente a possibilidade para uma miríade de dinâmicas cujos sentidos confrontadores, cooperativos etc. só podem ser determinados na observação de cada caso. Também admite-se que os atores em questão, sejam eles os operadores do direito ou os atores da ação coletiva, estão atravessados a variados processos sociais que alteram ao longo do percurso suas posições originais, tornando-os, inclusive, potencialmente críticos ao sistema do qual fazem parte, quiçá, autocríticos. Ou seja, nessa perspectiva o que temos é um constante entrecruzamento de ações que dinamizam relações produzindo, potencialmente (não necessariamente), novos processos sociais. Por isso, nos cabe a atenção constante às dinâmicas desses atores no sentido de entender como ocorrem suas interações.
Assim, movimentos sociais e organizações da sociedade civil vêm, ao longo das últimas décadas, ampliando as suas atuações no sentido não apenas de contestar o campo jurídico, mas, também, de usá-lo e compô-lo. Uma das iniciativas mais emblemáticas dessa virada estratégica foi a criação dos cursos de direito para camponeses, vinculada ao Movimento dos Sem Terra (<a href="http://jota.info/tudo-sobre/mst">MST</a>). O movimento que ao longo de sua história contabiliza muitos casos de assassinatos, prisões e violações de direitos sempre careceu de advogados para construir sua defesa.
Contudo, com a formação de bacharéis em direito, não apenas sua defesa se torna mais possível, mas, também, a possibilidade de participar do campo jurídico na formação de juristas. Em janeiro de 2022, 48 campesinos foram formados em direito no estado do Pará<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Esse exemplo é paradigmático, pois trata exatamente de chegar na própria produção intelectual do direito configurando uma forma de compor o próprio campo.
Além disso, diversas formas do que podemos chamar genericamente de usos do direito têm se ampliado nas últimas décadas no terreno da sociedade. Se, no alvorecer de democracia, nós tivemos ciclos de protestos que trataram de estabelecer direitos, criar instituições e defender leis contra governos autoritários, os momentos seguintes caminharam em direção ao uso desses instrumentos conquistados. Hoje, prevalece uma mescla de pragmatismo da ação no uso estratégico de recursos jurídicos combinado ao ceticismo ideológico, que permanece vendo no direito mais “status quo” do que possibilidade de mudança e por isso desacredita na própria ação. Ainda assim, mesmo nesse cenário que parece contraditório, vêm florescendo os coletivos de advocacia e as inovações táticas em litigância coletiva.
O trabalho de advocacia na sociedade civil era antes muito restrito às ONGs como Themis<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que há 25 anos faz um trabalho voltado à defesa de direitos de mulheres e atua em casos concretos e na assessoria jurídica popular que chama de “empoderamento legal”. Hoje, coletivos como o Margarida Alves<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> fazem um trabalho bem próximo ao dos movimentos sociais e mantêm uma pauta de atuação jurídica cujos temas se assemelham muito aos temas dos movimentos sociais, atuando menos em casos individuais e mais através de estratégias coletivas.
É nesse sentido que surgiu a iniciativa do Prêmio Repprovare que será lançado em uma live no próximo dia 1º de abril. Elaborado por um conjunto de organizações da sociedade civil, trata-se evidentemente de uma paródia ao Prêmio Innovare<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, que “tem como objetivo o reconhecimento e a disseminação de práticas transformadoras que se desenvolvem no interior do sistema de Justiça do Brasil”.
O Repprovare, ao contrário, foi construído para dar visibilidade aos casos que evidenciem as práticas obtusas do sistema de Justiça, funcionando, assim, como um espelho do prêmio original. O Repprovare quer “reconhecer, identificar ações concretas que signifiquem permanências relevantes em antigas e consolidadas rotinas e que possam servir de exemplos a (NÃO) serem implantados em outros locais emblemáticos”, diz o texto que inverte o sentido do texto do prêmio original.
A premiação tem regulamento próprio inspirado jocosamente no Innovare e prevê duas modalidades: o prêmio em si para o caso principal escolhido pela comissão julgadora e as menções vergonhosas que serão atribuídas a todos os casos apresentados. Os quesitos serão avaliados nos seguintes aspectos: ineficiência, morosidade, desleixo, destrutividade, insatisfação do usuário e repetição.
Na primeira edição, o prêmio será voltado às más práticas do sistema de Justiça em casos que envolvam comunidades atingidas pela mineração e seus desastres. O objetivo do prêmio em 2022 “é dar visibilidade às situações nas quais a atuação da Justiça brasileira falha na proteção dos direitos das pessoas atingidas com os impactos da mineração, como também, criminalizam as pessoas que militam na defesa desses direitos”.
No lugar dos conselheiros foram convidadas as principais organizações que atuam no setor com notório comprometimento de defesa de direitos de comunidades atingidas pela mineração. Os casos, para serem apresentados, precisam ser embasados com dados e fontes que possam ser consultadas publicamente. Não obstante, o anonimato de todos os indivíduos será garantido. O objetivo do prêmio não é expor indivíduos, mas, sim, instituições e suas práticas.
Esse tipo de ação pode ser entendido como uma campanha de protesto que visa a expor práticas de autoridades e dar visibilidade para situações de injustiças, por vezes extremas, em que todos ou quase todos os recursos institucionais foram esgotados no percurso na busca por direitos. Nesses casos, a atuação nos canais usuais do sistema não é suficiente, sendo necessária uma volta ao confronto numa via que, contudo, faz uso do humor, da informação e da construção de uma plataforma que cria inclusive uma fonte de conhecimento, um banco de dados de casos de fracasso. Este terá acesso público e poderá servir como fonte para ações de mudança e melhoria do sistema de Justiça.
Esse também é o caso dos tribunais populares como o Tribunal Popular da Fome, que foi realizado em setembro, tendo o governo federal brasileiro como réu e julgado por violações ao “Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e ao Direito a Estar Livre da Fome”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Foram ouvidas como testemunhas representantes de movimentos sociais. Neste modelo, um inquérito é encenado com todos os elementos presentes em um inquérito convencional – assistentes técnicos, juízes etc. –, porém o processo é construído de forma a garantir a igualdade na balança, criando uma espécie de desforra de injustiça. Embora essas ações tenham um sentido preponderantemente simbólico, desempenham um papel importante de dar visibilidade para casos que a maior parte das pessoas não conheceria de outra forma, sobretudo se conquistam a mídia.
Provocam, também, alterações nas dinâmicas internas ao campo jurídico ao descortinar certas atuações e produzir crítica institucional. De qualquer forma, não se pode subestimar o papel importante da “mise-en-scène” que, se é importante para operadores do direito, nas cortes com suas togas e rituais, também tem importância para os movimentos sociais e comunidades.
Esse tipo de performance de espelhamento, como a que será apresentada no prêmio Repprovare, já é desenvolvida por organizações que atuam na pauta da mineração. É o caso de uma das curadoras do prêmio Repprovare, a Articulação dos Atingidos e Atingidas pela Vale<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, que realiza desde 2012 o chamado relatório sombra. Este se apresenta na forma idêntica ao relatório de sustentabilidade produzido pela mineradora Vale, porém com conteúdo de denúncia, mostrando os dados de violação de direitos e impactos ambientais que são ocultados pela empresa no relatório original.
A produção de informação tem sido um dos novos repertórios de organizações da sociedade civil, que vêm investindo principalmente em banco de dados com fontes secundárias, mas também primárias. Há também diversas iniciativas de financiamento de pesquisas orientadas metodologicamente feitas com pesquisadores contratados ou em parcerias com grupos de pesquisa. Essas iniciativas mostram a relevância da informação qualificada e produção de conhecimento para a própria construção da atuação militante em certos temas, onde se encontram vácuos deixados pela atividade de pesquisa regular até então quase sempre dependente de universidades. A maior parte das iniciativas fica materializada na forma de relatórios que são publicados pelas organizações.
Como comecei a mostrar nesta coluna de hoje, as interações são diversas e carregam múltiplos sentidos. Aguardemos, curiosos, o que virá com esse sentido provocativo proposto com a campanha do Prêmio Repprovare.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://mst.org.br/2022/01/14/camponeses-se-formam-em-direito-da-terra-no-estado-do-para/">https://mst.org.br/2022/01/14/camponeses-se-formam-em-direito-da-terra-no-estado-do-para/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="http://themis.org.br/">http://themis.org.br/</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://coletivomargaridaalves.org/">https://coletivomargaridaalves.org/</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.premioinnovare.com.br/o-premio">https://www.premioinnovare.com.br/o-premio</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://fase.org.br/pt/acervo/documentos/sentenca-de-condenacao-e-reparacao-do-tribunal-popular-da-fome/">https://fase.org.br/pt/acervo/documentos/sentenca-de-condenacao-e-reparacao-do-tribunal-popular-da-fome/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://atingidosvale.com/relatorio/">https://atingidosvale.com/relatorio/</a>

Manifestantes de movimentos sociais ocupam o prédio do Ministério do Planejamento

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JOTA

Vem aí o Prêmio Repprovare, que busca dar visibilidade a casos que evidenciam práticas obtusas da Justiça

Interações e provocações dos movimentos sociais com o campo jurídico

Vem aí o Prêmio Repprovare, que busca dar visibilidade a casos que evidenciam práticas obtusas da Justiça brasileira