Opinião e Análise

Fabiana Luci de Oliveira

Maria Tereza Aina Sadek

O sistema de cotas raciais adotado pelo Poder Judiciário, a partir de 2015, cumpre importante função no sentido de combater o racismo, promover a inclusão e a redução da desigualdade racial no âmbito da Justiça. A Resolução nº 203/2015 instituiu a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para cargos efetivos e de ingresso na magistratura para pessoas negras, e a Resolução nº 336/2020 reservou 30% das vagas oferecidas nos programas de estágio nos órgãos do Judiciário para estudantes negros.
Passados seis anos da implementação dessas políticas, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a> realizou um levantamento estatístico do perfil racial de juízes, servidores e estagiários do quadro de pessoal dos tribunais do país<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>, evidenciando que os resultados da política de inclusão racial são ainda pequenos em termos do aumento do contingente conhecido de pessoas negras nessas posições. Entre os magistrados, o percentual conhecido de pessoas negras é de 8,7%. Entre os servidores, 17,3%, e entre os estagiários, 17,8%.
Considerando dados disponíveis para 2.642 magistrados que ingressaram na carreira entre 2016 e 2021, apenas 3,2% o fizeram a partir da política de cotas raciais. Entre os servidores, essa proporção foi de 3,6%, considerando 45.555 cargos efetivos. Já no cadastro dos estagiários não consta a informação sobre ingresso por meio da política de cotas.
O baixo impacto dessas políticas pode ser constatado, também, pela ausência de informações do perfil racial para parte significativa das pessoas que integram o Poder Judiciário. Com efeito, para 31,9% do total de magistrados não há informação sobre cor ou raça, e observando apenas os que ingressaram na carreira após a instituição da política de cotas, a falta de dados do perfil étnico-racial sobe para 38,3%. Para 42,4% do total de servidores e para 47,6% dos estagiários a informação do perfil racial é inexistente.
O relatório do CNJ (2021) fornece algumas pistas para explicar esse cenário. Entre as dificuldades de implementação da política, foram apontadas por presidentes de tribunais a “ausência de parâmetros objetivos para avaliar se o candidato faz jus ou não às cotas, dúvidas quanto às regras de convocação e cálculo dos percentuais e discussões sobre a comissão de heteroidentificação” (CNJ, 2021, p. 28).
Para aprofundar as percepções acerca das dificuldades de implementação das políticas de inclusão racial no Judiciário, entrevistamos magistrados e servidores de diferentes tribunais, interessadas em suas visões sobre impactos e dificuldades na execução dessas políticas, especialmente em relação às dificuldades de produção de informações qualificadas que permitam monitorar e avaliar seu alcance<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
O primeiro aspecto que chama atenção é a falta de padronização dos campos nas informações cadastrais. Muitas vezes, em um mesmo tribunal, são utilizados sistemas diferentes para magistrados e servidores, e na maioria dos casos, o cadastro de estagiários é feito por agente de integração, e não internamente. Apesar de o campo constar da maioria dos registros internos de servidores e magistrados, a informação sobre cor ou raça nem sempre é de preenchimento obrigatório. Observamos que o comprometimento da gestão dos tribunais com a informação e a realização de campanhas de recadastramento são fundamentais para a produção de dados de qualidade.
Entre as justificativas dadas para a ausência da informação de cor ou raça, está a de que essa seria “uma informação muito subjetiva”, sendo “difícil dizer quem é negro e quem não é”. A percepção desse tipo de dificuldade na implementação da lei de cotas apareceu na fala de diversos entrevistados. Tanto no sentido de que a Resolução 203/2015 não é objetiva sobre como proceder a essa verificação (argumento que também foi recorrente no levantamento realizado pelo CNJ entre os presidentes dos tribunais), quanto no sentido de apontar possibilidades de fraude e consequentemente disputas judiciais em torno dos concursos.
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“Existe uma grande diferença entre auto identificação de raça, de um lado, e como sou lido/percebido por outra pessoa, de outro. Muitos têm vergonha de dizer que são negros; outros se aproveitam de serem pardos e dizem que são negros. Como a sociedade classifica as pessoas? É significativo saber como culturalmente são vistos os brancos e os não brancos. Quem são os negros? Há o preconceito de ter preconceito. O silêncio sobre um dado é um dado. Reconheço que muitas vezes é difícil distinguir um pardo de um negro. Mas esta situação deveria ser considerada. Afinal, a cota é para negros que se consideram negros ou para pardos que tiram vantagem da situação?”</blockquote>
A Resolução 203/2015 especifica em seu artigo 5º que: “Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos, no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”. Apesar de fazer menção expressa às categorias do IBGE, o levantamento de dados realizado pelo CNJ explicitou as dificuldades dos tribunais em utilizar essas categorias de identificação étnico-racial. Não são todos que aplicam as categorias sociodemográficas do IBGE. Alguns não separam “preto” e “pardo”, utilizando apenas “negro”. Outros utilizam “pardo”, mas adotam “negro” no lugar de “preto”.
Embora a categoria “preto” venha sendo utilizada desde o primeiro censo demográfico, realizado em 1872, a dificuldade de muitas pessoas em utilizá-la é tida como reflexo da dificuldade mais abrangente, típica do modo de expressão do racismo brasileiro. Entre várias análises, a de Florestan Fernandes, na década de 1960, afirmou tal efeito como “preconceito de ter preconceito”, que levaria à atenuação das marcas do fenótipo.
Evitar o uso da categoria preto e recusar o registro de qualquer informação étnico-racial, são formas de negar a importância da política de inclusão racial. Segundo declaração de um dos entrevistados: “Tem sido notado que há um boicote à autodeclaração de cor. Muitos são contra o censo. Para que fazer esse tipo de levantamento, se perguntam”. Muitas vezes, se justificava essa recusa a partir do discurso da meritocracia, e da neutralidade e imparcialidade características da prática judicial. Atrelado ao discurso meritocrático, outro componente da cultura judicial ressaltada pelos entrevistados como empecilho à maior efetividade das políticas inclusivas é o conservadorismo.
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“As dificuldades de implementação decorrem de uma certa mentalidade conservadora que não consegue enxergar com clareza o racismo estrutural e histórico do país. Argumentos de meritocracia e, portanto, elitistas, ainda existem na sociedade e na magistratura. Não conheço de perto os mecanismos de implementação de um sistema efetivo de cotas, mas desconfio que para funcionar bem tem que haver uma mudança mentalidade dos dirigentes dos tribunais.”</blockquote>
Ao serem indagados sobre os impactos da política de inclusão racial nos tribunais em que atuam, foi consensual a afirmação de que ainda não é perceptível no dia a dia o aumento de pessoas negras em cargos efetivos e da magistratura. Parte dos entrevistados acredita que a política é efetiva e seus efeitos serão vistos com o passar dos anos, mas outra parte é mais cética e questiona aspectos específicos da própria política.
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“No [tribunal] não tenho percebido uma diferença na quantidade de colegas novos negros ingressando na carreira (…) Quanto à falta de dados, acredito que não devem existir evidências de um número maior de pessoas negras no Judiciário, ou seja, minha hipótese é de que mesmo com acesso aos dados não haverá um aumento significativo de pessoas que se declaram negras.”</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“O impacto se traduz na obrigação de se aceitar a lei de cotas. Mas, pode-se dizer que até agora o efeito é muito pequeno, que a aceitação é relativa. O CNJ deveria saber que não basta ter uma resolução. É importante que se examine quem presta concurso, se teve condições de estudar.”</blockquote>
A principal crítica à política de cotas no caso específico para o concurso da magistratura é a nota mínima para progressão no concurso. Esse aspecto apareceu na fala da maior parte dos entrevistados, assim como a elegibilidade para concorrer às vagas, com a proposta de que as bancas de averiguação da autodeclaração ocorram no início do concurso.
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“O grande problema da efetividade das cotas raciais nos tribunais é que a Resolução só prevê cotas na primeira etapa do concurso de ingresso na magistratura. Ou seja, apenas para a prova objetiva. A Resolução não se refere a todas as etapas. Dessa forma, os tribunais só atentam para a necessidade de cota na primeira fase do concurso. Além disso, quero sublinhar, a ausência de comissões de identificação de cor no início do processo. Assim, muitos não negros entram, como se fossem negros, tirando vagas de negros. Negros acabam sendo mais uma vez excluídos. Negros excluídos pelos que se dizem negros. Dirigentes de Tribunais argumentam – como “desculpa” – que a criação de Comissões envolveria custos para o tribunal. Ter uma comissão de identificação custa dinheiro e tribunais não têm verba sobrando, dizem. Isto é uma forma sutil de não cumprir a resolução.”</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“É importante dizer que a Resolução do CNJ não tem o pé no chão. A realidade não é a que imaginam. É necessário sublinhar que o problema tem origem na escola. Quando se faz um edital, muitos não atingem a nota mínima. É complicado aprovar quem não conseguiu a nota mínima.”</blockquote>
As percepções de magistrados e servidores apontam alguns caminhos para o aperfeiçoamento das políticas de inclusão racial, sendo fundamental o comprometimento da gestão dos tribunais na coleta, uniformização e publicização de dados do perfil de cor ou raça, para a realização de um diagnóstico mais robusto sobre a inclusão de negros e negras no Judiciário, tanto na magistratura, quanto no corpo de servidores e de estagiários.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> OLIVEIRA, Fabiana Luci de. SADEK, Maria Tereza Aina. “Avaliação das políticas de inclusão racial no Poder Judiciário brasileiro”. – São Paulo: Faculdade Zumbi dos Palmares, 2022.

racismo

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JOTA

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