Opinião e Análise

Alexandre Veronese

No início da década de 1980, os titulares de direitos de autor foram surpreendidos pela radicalização de um processo de digitalização das obras artísticas escritas, de áudio e de audiovisual. O processo de digitalização já havia tido um marco com o advento do DAT (Digital Audio Tape), que era uma fita cassete com alto grau de fidelidade na reprodução. Essa nova tecnologia deu azo à aprovação, pelo Congresso dos Estados Unidos da América, do Audio Home Recording Act, em 1992. Essa lei foi inserida no Direito federal estatutário por emendas aditivas ao Título 17 do Código dos EUA. Esse título codifica o direito federal relativo à propriedade intelectual. A adição se deu pela criação do Capítulo 10 (Digital Audio Recording Devices and Media). Nesse capítulo, foram incluídas algumas questões muito relevantes para o debate sobre proteção dos direitos de autor, que ainda possuem atualidade.
O primeiro ponto da nova lei se referia à criação da obrigação de aplicação de sistemas de gestão digital dos direitos de autor (Digital Rights Management Systems, DRM, daqui em diante). O sistema daquele momento era o Serial Copy Management System. Em linhas sintéticas, ele possibilitava a inserção de uma numeração de série, que vedaria uma cópia subsequente à primeira reprodução. O segundo ponto foi incluir no Direito federal dos EUA a proibição de uso de mecanismos de ultrapassagem de tecnologias de proteção. Esse tipo de proibição foi repetido, depois, em dois pontos do Direito federal estatutário dos EUA: no Communications Assistance for Law Enforcement Act (Calea), de 1994, que proibia o uso de meios de cifração nas redes telefônicas fixas digitais; e, em 1998, no Digital Millennium Copyright Act (DMCA), o qual proibia — de forma ampla — o uso de meios técnicos para se evadir dos DRM.
Essa preocupação dos EUA com os direitos de autor estava refletida no debate internacional sobre o tema. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI; WIPO, em inglês) aprovou o WCT (WIPO Copyright Treaty) ou “Tratado da OMPI sobre Direitos de Autor”, em 1996. Ainda, a Organização Mundial do Comércio (OMC) aprovou o TRIPS, em 1994, com efeitos a partir de 1995. Em linhas sintéticas, o tratado da OMPI determinava que todos os meios de proteção dos titulares de direitos de autor, existentes até o momento, deveriam ser aplicados às novas tecnologias digitais, além de definir linhas para a proteção de programas de computador e de bases de dados. De outro lado, o TRIPS previa punições comerciais para países que não criassem meios jurídicos e técnicos para proteção de propriedade intelectual. Um exemplo bem evidente de sua relevância se refere ao acesso da China à OMC, 2001. Foi necessário que esse país adaptasse seu direito interno para proteção da propriedade intelectual.
Do quadro descrito, pareceria que os DRM estavam bem sedimentados e que, assim, a indústria iria usar meios técnicos para fazer valer os direitos de autor, sem qualquer oposição. Porém, o quadro jurídico, nos EUA, foi um pouco mais conturbado nos anos que se seguiram. O maior obstáculo para a fixação de um padrão técnico e rígido estava na fluidez da doutrina judiciária de “fair use”, ou seja, de uso justo e, portanto, sem violar os direitos de autor. O caso mais importante por determinar um padrão judiciário sobre uso justo, já havia sido julgado pela Suprema Corte dos EUA, em 1984. Foi o caso Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc. Por uma maioria apertada, a Suprema Corte considerou que os videocassetes não violavam, por si mesmos, os ditames da legislação federal sobre cópias não-autorizadas. E que os usos lícitos — e justos — superavam o potencial de malversação da tecnologia. Esse teste judiciário foi usado em dois acórdãos da Suprema Corte, que foram responsáveis por derrubar sítios eletrônicos para troca de arquivos em sistemas P2P (peer-to-peer): A&amp;M Records, Inc. v. Napster, Inc. (2001); e MGM Studios, Inc. v. Grokster, Ltd. (2004).
Apesar da oposição judicial, a <a href="https://www.law.cornell.edu/uscode/text/17/1201">Seção 1201 do DMCA</a> não foi derrubada. Houve <a href="https://arstechnica.com/information-technology/2010/07/court-breaking-drm-for-a-fair-use-is-legal">algumas vitórias</a> contra os DRM, com base no uso da <a href="http://bciptf.org/wp-content/uploads/2012/08/DRM-final.pdf">doutrina de uso justo</a>. Porém, a maior parte da jurisprudência considerou a necessidade de aplicar o teste da Suprema Corte para apreciar, caso a caso, os limites da proibição de uso de meios para se evadir de sistemas de DRM. Três casos consolidaram essa jurisprudência que, em linhas sintéticas, assentaram que os DRM não agiam em violação à liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda da Constituição dos EUA: Universal City Studios, Inc. v. Corley (2000); United States v. Elcom Ltd. (2002); e 321 Studios v. Metro Goldwyn Mayer Studios, Inc. (2004).
Não obstante, a evolução da tecnologia serviu para impulsionar o mercado para novos usos em sistemas conectados. Dessa forma, o que se viu foi a expansão de novas formas de fruição de obras em formato digital, por meio de plataformas de streaming, como o Spotify, criado em 2006. A Netflix é um bom exemplo de transição. Ela era uma empresa que alugava VHS e DVD pelo correio, nos EUA, desde 1997. Hoje, ela é um gigante global do streaming. Essas tecnologias de streaming já estavam em desenvolvimento desde a década de 1990. Porém, o novo modelo de negócios somente ganhou tração irreversível com a ampliação da banda — do ponto de vista da infraestrutura de rede — e da melhoria dos programas e dos padrões de compactação de arquivos digitais. O debate sobre DRM parecia que iria perder um pouco do seu apelo.
Porém, existem dois fatos bem recentes que podem reacender essa discussão sobre DRM nos dias atuais. O primeiro é a Diretiva (UE) 2019/790 (Direitos de Autor no Mercado Único Digital), que está em fase final de transposição nos Estados-membros da União Europeia. Ela previu, no seu artigo 17º, a criação corregulada de meios de fiscalização de violações de direitos de autor em sistemas abertos de difusão de conteúdo digital, como o YouTube. O segundo é mais incipiente: são projetos de uso de arquitetura <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/blockchain">blockchain </a>para rotulagem e controle na difusão de arquivos digitais por meio de “contratos inteligentes”.
A primeira proposta para a futura diretiva levantou preocupação na sociedade civil e no mundo empresarial. Isso porque a redação do seu, então, artigo 13º previa a necessidade de um sistema de monitoramento e de corresponsabilização das empresas de difusão de conteúdo em linha. A redação era muito simples e, de certa forma, colidia com o disposto no artigo 14º da Diretiva 2000/31/CE (Diretiva sobre o comércio eletrônico). Esse dispositivo jurídico é bastante similar ao previsto na Seção 730 do Título 47 do Código dos EUA e do que foi incluído no art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.695/2014), no Brasil. Obviamente, o Parlamento da União Europeia modificou bastante todo a proposta original, resultando no art. 17º. Isso fez com o sistema previsto na Diretiva (UE) 2019/790 ficasse bem mais complexo.
Não obstante os avanços, ainda é possível identificar a existência de disposições jurídicas que determinam a aplicação de mecanismos de vigilância automatizada e de derrubada de conteúdo da internet. Como já vimos anteriormente, as disposições jurídicas do DMCA, relativas aos DRM, já sobreviveram ao teste de constitucionalidade; havendo, portanto, nos EUA, uma doutrina judiciária de que, salvo em casos excepcionais, eles não limitam a liberdade de expressão. A construção de um sistema corregulatório de proteção aos direitos de autor no Mercado Único Digital parece estar em sintonia com a doutrina judiciária dos EUA. Porém, será necessário ver a prática desses sistemas para se poder aferir essa hipótese.
No que diz respeito ao uso de aplicações de blockchain, o mesmo ainda é bastante incipiente. Os “contratos inteligentes” permitiriam a construção de sistemas de fruição de obras digitais de forma tendencialmente segura para os titulares de direitos de autor. Isso porque um sistema desses somente permitiria o acesso na medida em que um pagamento fosse realizado pelo usuário com o devido registro em uma cadeia de blocos. A segurança de sistemas com arquitetura blockchain dificultaria a escrituração de registros sem a anuência dos gestores dos direitos de autor, possibilitando um controle eficiente e rápido do uso das obras protegidas. Um exemplo está sendo desenvolvido pela Sony, com base nos <a href="https://www.forbes.com/sites/amazonwebservices/2019/11/19/how-sony-is-protecting-rights-of-digital-creators-using-blockchain-on-aws">serviços de computação em nuvem da Amazon</a>.
Uma conclusão é que os sistemas de DRM estão em evolução. É possível indicar que eles se “desmaterializaram”. Um processo derivado da digitalização é a “desmaterialização” dos suportes físicos. As primeiras mídias digitais estavam adstritas aos suportes físicos diretos, como era o caso das DAT, dos CD e dos DVD. A radicalização das arquiteturas reticulares nas tecnologias da informação e das comunicações produziu o transporte dos suportes físicos diretos para meios de armazenagem em nuvem. Por isso, há que se falar em “desmaterialização” com aspas. O suporte físico sai das mãos dos usuários e passa a estar em servidores, espalhados em outras jurisdições, geridos por grandes empresas. Mesmo o processamento digital tem passado por essa transformação. É cada vez mais usual a existência de aplicações que funcionam remotamente, para além de meramente estocar dados em nuvem. Se os DRM do passado eram aplicados em suportes físicos primários (<a href="https://core.ac.uk/download/pdf/232975424.pdf">um DVD, um CD, ou um cartucho de impressora</a>), eles — atualmente — podem usar desse processamento reticular para funcionar. O monitoramento de mídias em linha e as possíveis aplicações de blockchain são exemplos evidentes dessa mudança em curso.

direitos de autor

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Do 'Digital Millennium Copyright Act' até a atualidade

Digital rights management, blockchain e monitoramento em redes

Sistemas de gestão digital dos direitos de autor estão em evolução. Clique aqui para saber mais sobre digital rights management.