Opinião e Análise

Pedro Heitor Barros Geraldo

Juliana Sanches Ramos

Recentemente, a defesa de Natan Vieira da Paz, homem negro, 42 anos, publicizou um trecho da sentença criminal condenatória em sua rede social causando grande repercussão social e institucional ao fundamentar em sua sentença que: “sobre a sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, (...) pelo que deve ser valorada negativamente”.
A juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1º Vara Criminal de Curitiba, no Paraná, utilizou a raça de um homem negro, réu primário, sem antecedentes criminais, como fundamento para o condenar a 14 anos e 2 meses de pena privativa de liberdade, por participar de furto e roubo majorados.
Conforme noticiou o <a href="#8216;raça&amp;">JOTA</a>, a juíza afirmou que “nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor”. Assim, pediu “sinceras desculpas” pela “frase que tem causado dubiedade”, pois seu significado foi retirado do contexto. A Associação dos Magistrados do Paraná reproduziu a nota com tais declarações.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Diversas instituições e organizações teceram críticas à sentença, como a OAB-PR e a Comissão Nacional de Igualdade Racial da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. A Defensoria Pública do Paraná declarou, em nota pública, o seu “estarrecimento e inconformismo com o teor da sentença” e convocou defensoras e defensores públicos para formação de força-tarefa destinada a realizar a revisão técnica nas sentenças condenatórias proferidas pela juíza nos últimos doze meses.
O Grupo De Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (GTPE-DPU) solicitou ao Ministério Público do Paraná a apuração acerca de possível prática de racismo na sentença, afirmando que a magistrada, por meio da racialização do investigado, atribui a este a característica de criminoso em potencial, promovendo o aumento de sua pena a partir da presunção de uma determinada dinâmica de sua participação nos delitos que se relaciona com a sua condição racial.
O caso foi tema de discussão durante a reunião do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizada na manhã de quarta-feira, para discutir igualdade racial no judiciário. A diretora executiva da Anistia Brasil Jurema Werneck qualificou a decisão da juíza paranaense como exemplo de racismo institucional ao afirmar que é “o racismo assume dimensões estruturais, ou seja, fundamenta a organização política social dessa nação. (...) Ele também penetra o poder judiciário e esse fato é apenas um exemplo”.
A Corregedoria Nacional de Justiça instaurou pedido de providência “a fim de esclarecer os fatos”. Esta sentença se soma a um conjunto de práticas identificadas do sistema de justiça que reproduzem cotidianamente o racismo institucional.
A decisão repercutiu nas redes sociais e nos principais veículos de comunicação, segue um conjunto de violências racistas amplamente divulgadas recentemente. Aliás, a repercussão dos crimes praticados por agentes públicos é uma estratégia utilizada pelos familiares das vítimas para lidar com a lentidão e omissão das instituições de justiça para se reconhecer estes crimes (KANT DE LIMA; EILBAUM; MEDEIROS, 2017).
<h3>O racismo ordinário</h3>
Neste contexto, o racismo é ordinariamente tolerado pelos membros das instituições. E se apresenta também por formas dissimuladas. Muitas práticas dos operadores da justiça e segurança pública já foram identificadas pelas pesquisas em ciências sociais como o uso da categoria “atitude suspeita ou fundada suspeita” usado pela polícia.
A identificação da “clientela” (FILHO, 2013) dos réus em audiências criminais é importante para os juízes e promotores. Os relatos se reproduzem sem estranhamento dos presentes nestas interações: “durante uma Audiência de Instrução e Julgamento, a descrição no depoimento de uma delegada e pelo promotor público que o réu seria um traficante de ‘características bastante distintas’, pois era ‘branco dos olhos claros’, e por isso, teria sido identificado facilmente, segundo a delegada” (ABREU, 2019, p. 28).
Nesse sentido, a sentença na qual a juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo afirma que “vale notar que o réu não possui esteriótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido” (2016). O TJSP afirmou em nota que não poderia se posicionar em relação aos fundamentos utilizados na decisão, quaisquer que sejam eles.
A DPGE/RJ apurou que em 41% das sentenças analisadas a justificativa para condenar os acusados pelos crimes foram a presunção de que o réu integra associação criminosa, em razão do local da prisão, já que a credibilidade dada à palavra do agende de segurança pública dispensa a produção de qualquer prova efetiva de associação criminosa (DPGERJ, 2018, p. 61).
A desconsideração da Umbanda e do Candomblé como religiões protegidas pelo direito de crença do juiz federal em sentença do TRF2 ao afirmar que “crenças afro-brasileiras não contém os traços necessários de uma religião” (2014).
As abordagens policiais também evidenciam o tratamento desigualado e discriminatório, pois “os resultados da ação policial violenta refletem a desigualdade racial na segurança pública, já que as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos” (SINHORETTO; SILVESTRE; SCHLITTLER, 2014, p. 27).
A resistência dos juízes do TJRJ em reconhecer a tipicidade das imputações de racismo faz com que “os Tribunais continuem a decidir questões como estas com argumentos rasos e insustentáveis” (PIRES, MULHOLLAND, 2015, p. 350). Neste mês, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro lançou pesquisa inédita sobre o perfil dos entrevistados nas audiêmcias de custódia entre setembro de 2017 e setembro de 2019 apontando que 8 a cada 10 presos em flagrante eram negros (DPPERJ, 2020, p. 10).
Há uma alta letalidade policial principalmente contra os jovens negros das favelas. O extermínio da população negra brasileira, afirma que a categoria raça cumpre uma função estratégica na produção da morte (FLAUZINA, 2006, p. 104). Aliás, a ADPF 635 fez com que o STF interviesse nas políticas de segurança pública do estado do Rio de Janeiro para proibir as operações policiais durante a pandemia. Embora as operações tenham diminuído, elas não cessaram.
Todas estas práticas são ordinárias no cotidiano dos operadores do direito. Elas se caracterizam pela tolerância dos membros institucionais ao racismo nos rituais de encontro na justiça, como nas abordagens, nos interrogatórios e nas audiências, por exemplo, pois eles não reconhecem estas práticas discriminatórias como reprováveis criminal e profissionalmente. Afinal, as provas são, com frequência, insuficientes para se tornarem em convicções condenatórias.
<h3>O raciocínio prático dos operadores do direito</h3>
Os estudos sociais sobre o raciocínio prático dos operadores do direito têm se concentrado em descrever e analisar as práticas jurídicas em contexto e em ação (GERALDO; ALMEIDA, 2017). O objeto de interesse está nas maneiras pelas quais os operadores realizam suas atividades cotidianas mais rotineiras.
Decidir, interrogar, organizar uma audiência e produzir registros são práticas mundanas comuns para os operadores nos fóruns. A execução destas atividades supõe um conhecimento explícito das regras jurídicas, que supostamente organizariam e definiriam a forma destas atividades; mas também necessita de um conhecimento tácito sobre as maneiras pelas quais estas práticas se performam.
Assim, as moralidades dos membros das instituições de justiça e segurança pública estão presentes nos documentos públicos, mas muitas vezes são dissimulados na produção dos registros.
Desta forma, os preconceitos particulares permanecem implícitos. Esta ética na produção da decisão tem uma relação com o fato de que nem tudo que se discute em audiência é objeto de registro, como explica Conceição Penha (2017) sobre a justiça do trabalho e Nuñez (2018) sobre os acordos entre defensores e promotores no tribunal do júri.
Em nossa cultura jurídica, os juízes decidem a partir de suas próprias moralidades e preferências particulares. Lupetti Baptista (2020) explica como a crença da imparcialidade do juiz é tratada pelos magistrados e conclui que “estão comprometidos e imbricados com os sensos de justiça particulares dos profissionais do direito que os conduzem.” (2020, p. 221).
Este problema é conhecido da cúpula do judiciário como “estado de coisas inconstitucional”, “porque os juízes não motivam, eles não fundamentam as suas prisões.” como min. Luiz Fux explicou no julgamento da ADPF 347 (STF, 2015).
<h3>O significado da repercussão</h3>
Esta sentença chama atenção em tornar o raciocínio jurídico prático explícito, pois diante da ausência de razões para qualificar a conduta social na etapa da sentença criminal para dosar o tempo da pena, a juíza escreveu o que se pode falar e fazer, mas não escrever.
A magistrada utilizou como razão a raça do réu, embora exista um objetivo fundamental da República explícito em nossa remendada constituição de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Como é conveniente explicitar o óbvio, o racismo está tipificado na Lei Caó de 1989 e é objeto de muitas políticas de promoção a igualdade nas últimas décadas.
Apesar dos esforços, o racismo continua sendo tolerado pelas instituições. As teorias do “racismo estrutural” (ALMEIDA, 2019) e da “hermenêutica negra para a interpretação da igualdade” (MOREIRA, 2019) são compreensões dos problemas mundanos dos brasileiros, mas também mobilizações profissionais para consagração de um conhecimento que evidencia dois problemas: a ausência destas discussões de forma institucionalizada na educação jurídica; e a construção de um problema de responsabilidade institucional e não apenas reativas às idiossincrasias dos membros das instituições para que estas práticas não sejam reproduzidas cotidianamente.
Assim, a dimensão comum do racismo está no fato de que os operadores do direito brasileiro naturalizam uma prática decisória insubmissa às regras explícitas na qual o objetivo é desembaraçar o conjunto de registros que constitui o processo.
Por isto, estas práticas seguem toleradas e são tratadas como transgressões indevidas à ética profissional. Se a juíza não escreveu o que não queria dizer, este é um problema profissional da magistratura, pois a inteligibilidade das decisões e dos rituais da justiça é um ponto central nas ações de acesso à justiça e na constituição do significado do exercício da cidadania para a sociedade.
A pedagogia da justiça se produz a partir da comunicação dos significados do que os membros institucionais fazem. A repercussão da sentença fez com que o CNJ tomasse providências para a apuração dos fatos. Resta aguardar o “entendimento” dos Conselheiros de Justiça para que os cidadãos possam saber se a juíza errou na dose ou se em razão da raça seja um caso extraordinário em o Poder Judiciário tem (mais uma vez) a oportunidade de reconhecer e tratar a reprodução de suas práticas como um problema a ser enfrentado institucionalmente.
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Referências bibliográficas
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ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
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FILHO, F. P. DE M. Velhos usuários e jovens traficantes? Um estudo de caso sobre a atualização da nova Lei de Drogas na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 6, n. 1, p. 11–37, 19 jan. 2013.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB, 2006.
GERALDO, P. H. B.; ALMEIDA, F. F. DE. A PRODUÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL: uma abordagem praxeológica dos julgamentos judiciais. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 4, n. 3, 10 nov. 2017.
KANT DE LIMA, R.; EILBAUM, L.; MEDEIROS, F. (EDS.). Casos de repercussão: Perspectivas antropológicas sobre rotinas burocráticas e moralidades. Rio de Janeiro: Consequência, 2017.
LUPETTI BAPTISTA, B. G. A crença no princípio (ou mito) da imparcialidade judicial. Revista de Estudos Empíricos em Direito. v. 7, n. 2, jun. 2020.
MOREIRA, A. J. Pensando Como um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica. Edição: 1 ed. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.
NUÑEZ, I. S. “Aqui não é casa de vingança, é casa de justiça!”: moralidades, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no tribunal do júri. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2018.
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; MULHOLLAND, Caitlin. É para rir? A atuação do tribunal de justiça do estado do rio de janeiro nos casos envolvendo liberdade de expressão e racismo nos discursos humorísticos. Direitos fundamentais. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI – UFS.
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