Opinião e Análise

Lígia Mori Madeira

Izabel Saenger Nuñez

Leonardo Geliski

O combate à corrupção vem produzindo efeitos no sistema de justiça criminal federal e na relação entre direito e política já dimensionados pelo campo dos estudos judiciais. Já tratamos aqui do movimento de incorporação das recomendações de normas internacionais anticorrupção, crime organizado e lavagem de dinheiro pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Um dos principais marcos desse movimento no Brasil foi a assinatura da Convenção de Palermo, que buscava inibir o financiamento do crime organizado oriundo de lavagem de dinheiro advinda do tráfico de drogas.  Após a edição de lei específica buscando combater a lavagem de dinheiro (Lei 9613/1998), alterada pela nova lei de lavagem (Lei 12686/2012), chegando a lei anticorrupção (Lei 12.846/2013) e a lei antiterrorismo (Lei 13.260/2016), o desenho institucional dos órgãos da persecução criminal - poder judiciário federal<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, vem sofrendo mudanças.
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Todas essas transformações - que ampliaram o poder punitivo pela abertura de condutas antecedentes passíveis de enquadramento no crime de lavagem de dinheiro - foram seguidas de inovações tanto nos mecanismos de investigação, quanto na criação ou uso de novos institutos, no âmbito dos chamados negócios processuais penais, a exemplo da delação premiada e do acordo de leniência.
Foram mudanças projetadas nos diversos fóruns de interação entre as instituições e no âmbito da ENCCLA<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, caracterizando uma primeira fase de cooperação, que levaram à indução ao processo de especialização de departamentos e varas judiciais. A especialização em cada uma das instituições vem produzindo mudanças institucionais de grande repercussão, que incidem na forma de interação entre os diferentes atores, flexibilizando a tradicional e, até então legal, separação entre quem investiga, quem acusa e quem julga.
Esse movimento, encabeçado pelo sistema justiça criminal federal, tem se difundido pelos tribunais de justiça para abarcar o crime organizado e suas formas de atuação nos estados, geralmente atrelado ao tráfico de drogas.
Se a especialização é uma marca da atuação anticorrupção oriunda da política pública formulada e implementada no Brasil desde o início da década de 2000, como vem mostrando a literatura, conhece-se pouco, ainda, sobre os seus efeitos no exercício do direito de defesa. Esses reflexos se dão principalmente na carreira da advocacia, uma vez que os grandes casos de corrupção são aqueles postos em evidência em grandes operações policiais, gerando o que vem se denominando como megaprocessos, que "se caracterizam por um número elevado de acusações, por uma prova complexa e abundante, bem como por sua longa duração<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A referida especialização até resguarda um público para as defensorias, na medida em que envolve muitos casos de contrabando e descaminho, cujo perfil é de atores de baixa renda, mas é a advocacia privada que vem respondendo a essa nova demanda, oriunda da atuação das instituições que produz uma nova clientela.
No mercado da advocacia, a denominada terceira forma de tratar a corrupção no Brasil a partir da Lei da Improbidade Administrativa já havia criado, nos anos 1990, todo um reduto de atuação com expertise em direito público, cuja  baixa efetividade de resposta desse instrumento levou ao que Arantes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> chamou de deslocamento da esfera cível para a esfera penal, e da justiça estadual para a federal. Novamente, o mercado da advocacia teve de se adequar para abarcar essa nova fonte de trabalho, oriunda das mudanças pós legislação especializada.
<blockquote class="jota-article__eye">Com o surgimento dos megaprocessos, o mercado da advocacia criminal acabou por também se acomodar, para dar conta de novos clientes que antes não eram objeto de atenção do poder punitivo, tais como empresários e políticos. Para atender à nova clientela, não somente os advogados criminais tradicionais passaram a atuar nesse contexto, como também novos nomes surgiram no mercado e outros foram dele excluídos.</blockquote>
Já é possível identificar pelo menos três grupos de advogados, com identidades distintas, concorrendo no campo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, sem prejuízo de que existam outros. O primeiro deles, considerado a “advocacia criminal tradicional” é associada a homens cuja reputação profissional é tradicionalmente conhecida, como Evandro Lins e Silva e Márcio Thomaz Bastos, entre outros.
Seus nomes produziram linhagens de “grandes tribunos”. Sua formação como criminalistas antigamente se dava sobretudo no contexto do Júri e na atuação em crimes comuns. Sua reputação é transmitida através de herança, quer simbólica, para outros advogados que tenham com eles trabalhado, quer concreta, a seus filhos, de modo que formam um grupo “tradicional” na advocacia criminal.
Além desse primeiro grupo, os advogados que conhecem e dominam o funcionamento da “execução penal” e cuja atuação contrasta com o processo de conhecimento, também ganham destaque. Isso porque, a nova qualidade de réus que processos como Mensalão e Lava-Jato produziu, de alto poder aquisitivo, passa a demandar que seus casos sejam acompanhados também na fase de execução, nem sempre um nicho em que os advogados criminalistas tradicionais atuavam. Não era comum que o fizessem, como relatam, quer porque esta é uma área regulada por regras muito específicas e objetivas, quer porque seus clientes pagavam por uma primeira fase mas não o faziam na fase seguinte.
Ainda, talvez porque, ao contratarem os "grandes tribunos", raramente fossem condenados. Assim, os advogados tradicionais ou passam a subcontratar e firmar parcerias com profissionais especializados, ou vão, eles mesmos, atuar nesta fase do processo penal, em que as condenações já estão definidas, ou seja, em que o réu é declaradamente culpado, visto como um "criminoso real", como disse um advogado.
Afora os nichos acima citados, que impactaram e acomodaram as especialidades da advocacia criminal, a narrativa do “combate à corrupção” permitiu o surgimento dos especialistas em compliance. Estes últimos não são vistos, pelos advogados tradicionais, como “criminalistas”, embora muitas vezes se apresentem como tal, já que a sua atividade é mais preventiva, se dá no contexto interno das empresas, e se afasta da luta pela “liberdade” que, tradicionalmente, “não distingue culpados de inocentes” (este, aliás, é um discurso muito forte por parte de advogados tradicionais).
Os profissionais de compliance são responsáveis por determinar aos empresários o que "deve ser feito, está na lei, mas ninguém faz", como dito em entrevista em pesquisa em desenvolvimento, intitulada "Estudando os de cima: a atuação dos advogados criminalistas cariocas"<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> e que tem abrangido também casos em São Paulo e região sul.
Toda essa nova conformação do mercado vai também deslocando os advogados da Justiça Estadual para a atuação na Justiça Federal. O “aumento na pilha de processos" de uma justiça para outra, é uma figura imagética muito rica, pois remete para o deslocamento da atuação do poder punitivo do estado e, ainda, para o surgimento de uma nova persecução sobre aqueles que podem pagar por honorários advocatícios de profissionais de prestígio.
Com isso, a “porta da cadeia” descrita nos livros de antigamente, transfere-se para a “porta da Polícia Federal”, em que advogados podem oferecer seus serviços e disputar clientela. É lá que podem ocorrer os “atravessamentos”, que se afiguram em captação de clientes sem respeito às regras de atuação profissional e de etiqueta, desrespeitando colegas. A figura da esfera federal também ilustra a conexão que novos profissionais pretendem fazer exclusivamente com o "direito penal econômico".
Assim, enquanto os "criminalistas tradicionais" afirmam a inexistência dessa área, senão como uma subárea do direito penal, de modo que um "criminalista" deve estar preparado para atuar em qualquer caso, parte dos profissionais mais jovens procuram amarrar sua identidade ao "direito penal econômico", especialmente em razão dos réus que são processados nesses crimes (empresários, políticos, etc).
Se, com isso, antigamente os profissionais como Evandro Lins e Silva iam da “porta da cadeia” até a execução (quando se fazia necessário) e tinham o Júri como "escola e como vitrine", hoje os advogados assumem identidades diferentes e por vezes mais específicas, para atender a esse novo mercado. Nesse sentido, não se pode dizer que não há mais advogados de júri. Há, mas não são os "grandes tribunos" de antigamente.
Com o deslocamento dos profissionais de linhagem tradicional para as "grandes operações, há um movimento de jovens criminalistas que têm visto o júri como um nicho de mercado e buscam retomar a sua atuação nesse contexto, considerado um "mar azul" em contraste com o "mar vermelho" dos mega, ou máxi, processos. A metáfora do mar vermelho e do mar azul também remete às disputas e aos interesses sobre o exercício da profissão, seus atravessamentos e conflitos.
<blockquote class="jota-article__eye">Por fim, a opção por fazer ou não fazer delação premiada surge igualmente como um divisor de águas na atuação desses profissionais e os divide de maneira muito clara.</blockquote>
Por um lado os jovens criminalistas, menos informados pela tradição e que estão construindo sua clientela, não somente precisam sujeitar-se às novas práticas, por questões de mercado, como muitas vezes não enxergam empecilhos morais nessa atividade. Surgem no mercado, com isso, os jovens advogados que assumem a delação indicados por outros que não querem, ou não podem, fazê-la. Ainda, há os casos apontados como graves por parte da advocacia, no que se refere aos profissionais que mantém relações de proximidade com certos juízes, procuradores de justiça e promotores, que os indicam para fazer as delações, em razão de sua intimidade com a "família judicial"<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
As novas práticas de delação premiada se afiguram, da mesma forma, em uma nova porta de acesso à advocacia criminal, quer respeitando o direito de defesa dos clientes, quer agindo de maneira apontada como antiética, por não fazê-lo. Ainda, a delação é tão mal vista pelos criminalistas tradicionais que há certos casos em que advogados perderam a sua boa reputação, por terem apoiado seus clientes a firmar os referidos acordos.
Uma maneira de visualizar essa conformação do mercado da advocacia se dá através da análise de rede de processos das varas federais especializadas<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Uma descrição sucinta do ano de 2018 em processos no TRF4 revelou a disputa na atuação de escritórios de advocacia da região sudeste e sul do país. Tal fenômeno ilustra uma mobilidade cada vez mais requerida, dada a dinâmica dos crimes envolvidos nos megaprocessos que transpõe fronteiras estaduais e até nacionais, requerendo que um grande número de escritórios atue em um único caso, dada a complexidade e elevado número de réus. Ao mesmo tempo, a diversificação do combate à corrupção atingindo réus de baixo poder aquisitivo também revela a presença de um grande número de advogados independentes atuando em um número reduzido de casos e disputando clientela com a defensoria pública.
<blockquote class="jota-article__eye">Se a política anticorrupção promoveu o cenário descrito acima, a aprovação da Lei Anticrime (Lei 13.964/2019) tende a intensificar ainda mais a corrida da advocacia privada para pescar um público que só cresce.</blockquote>
Antes do Anticrime ainda restava dúvida quanto a constitucionalidade desses novos mecanismos e sua operação dentro do sistema de justiça criminal, mas a chancela legislativa dissipa tais questionamentos - a exceção do juiz de garantias, do procedimento de arquivamento do inquérito policial, da prova declarada inadmissível e das normas relacionadas à audiência de custódia<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> - com o mercado tendo de responder a eles.
A nova legislação, a despeito do aparente protagonismo do Ministro da Justiça e Segurança Pública, incorpora ainda mais a agenda das instituições de acusação como o CNMP, destacando-se o acordo de não persecução penal<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, que exigirá escritórios cada vez mais versados em negociação extrajudicial com atores públicos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MADEIRA, Lígia Mori. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/o-embate-cortes-especializadas-x-cortes-constitucionais-26042019">O embate cortes especializadas x cortes constitucionais</a>. Publicada no JOTA em 26 de abril de 2019; MADEIRA, Lígia Mori; GELISKI, Leonardo; DILL, Alan. <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/difusao-de-politicas-publicas-de-especializacao-judicial-04102019">Difusão de políticas públicas de especialização judicial.</a> Publicada no JOTA em 04 de outubro de 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ARANTES, Rogério B. Polícia Federal e construção institucional. In: AVRITZER, L.; FILGUEIRAS, F. (Orgs.). Corrupção e sistema político no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. KERCHE, Fábio; MARONA, Marjorie. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/quando-coordenacao-nao-significa-boa-coisa-14062019">Quando a cooperação não é boa coisa.</a> Publicada no JOTA em 14 de junho de 2019; COSTA, Arthur Trindade Maranhão; MACHADO, Bruno Amaral; ZACKSESKI, Cristina. A investigação e a persecução penal da corrupção e dos delitos econômicos: uma pesquisa empírica no sistema de justiça federal. Brasília: ESMPU, v. 1, 2016.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> No ano de 2003 o Ministério da Justiça criou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) que reúne em torno de 80 agências e entidades do governo, dos ministérios, do legislativo e do judiciário, além das polícias de diferentes jurisdições, bem como procuradores de justiça, no intuito de criar políticas públicas e aprimorar o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Não há, no entanto, membros da sociedade civil, apenas da Federação Brasileira de Bancos, a FEBRABAN e bancos públicos. Nesse sentido, sociedade civil  não tem participação direta nas suas atividades.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> PRATES, Fernanda. Práticas de interceptação e os riscos do modelo de megajustiça. In: SANTORO, Antonio Ramires; MIRZA, Flávio. (Org.). Interceptação telefônica: os 20 anos da Lei nº 9.296/96. Rio de Janeiro: DPlácido, 2016, v. , p. 130-147.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Idem.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Exemplo dessa pluralidade é o caso dos advogados que ganham destaque, primeiro, no campo acadêmico, na qualidade de professores, muitas vezes doutores ou doutorandos e, depois, passam a atuar como criminalistas. Esses também podem vir a atingir alta reputação, justamente porque são respeitados em razão do reconhecido conhecimento sobre o fazer jurídico e judicial que acumularam. Também consideramos importante destacar que aqui não tomamos as "identidades" como algo reificado e definitivo, senão como em permanente disputa e construção (Barth, 2000). Ver BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. Importante destacar também, que os homens e mulheres desses grupos se organizam em torno de associações, que igualmente demarcam identidades, como a Sacerj, em contexto estadual carioca, Abracrim e Anacrim e as Comissões de Direito Penal da OAB, do IAB. Esse aspecto não será por nós explorado nesse momento.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> NUÑEZ, Izabel Saenger. Estudando os de cima: a atuação dos advogados criminalistas cariocas. Projeto de Pesquisa de pós doutorado desenvolvido no âmbito do PPGA/UFF, com bolsa do Programa Nacional de Pós Doutorado da Capes, supervisionado por Roberto Kant de Lima (2018 a 2023).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> NUÑEZ, Izabel Saenger. “Aqui não é casa de vingança, é casa de justiça!”: moralidades, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no Tribunal do Júri. 2018. 273 f., Tese (Doutorado em Antropologia). Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Niterói: 2018.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> GELISKI, Leonardo; MADEIRA, Lígia; TRINDADE, Kálita. A outra face do combate à corrupção: as redes de atores de defesa criminal na região Sul. Paper a ser apresentado no 12o. Encontro da ABCP 2020.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Medida cautelar concedida pelo Relator Ministro Luiz Fux na ADI 6299/2020 (DF).
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> O acordo de não persecução penal foi estabelecido inicialmente pela resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

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JOTA

A diversificação do mercado da advocacia criminal pós Lava-Jato

Da porta da cadeia às portas da Polícia Federal

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