Opinião e Análise

Alexandre Veronese

Mariana Moutinho Fonseca

O processo de transformação digital tem imposto uma série de novos desafios a diferentes grupos de atores sociais. Se, por um lado, tem sido objeto de debate, sob a ótica dos indivíduos-usuários, preocupações com automatização e futuro do trabalho, privacidade e proteção de dados pessoais, por outro, a ascensão de novos modelos de negócio, juntamente com a aceleração do processo de convergência digital tem embaralhado paradigmas anteriormente estabelecidos como aqueles relacionados a soberania territorial e legal.
Com efeito, a ideia tradicional de Estado regulador, que exerce seu poder verticalmente num dado território e de forma setorizada, dá lugar a novas estruturas de redes globais horizontalizadas, sobre as quais autoridades regulatórias com poderes mais amplos atuam na formação de políticas públicas transversais e coerentes entre si<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse sentido, o objetivo do presente texto é tratar da formação de políticas públicas para regulação do que se rotula, de um modo um pouco impreciso, como “digital”, em especial, qual seria o espaço – entidade ou órgão – no âmbito da União que poderia recepcionar essa função. Em conclusão, defendemos que a cooperação e coordenação em arco dos vários reguladores se sobressai como melhor resposta à transversalidade dos riscos regulatórios emergentes num contexto de transformação digital.
O ciclo das políticas públicas pode ser dividido, sinteticamente, em três etapas: desenho, execução e monitoramento de resultados. O ideal é que todas as etapas sejam acompanhadas de evidências empíricas ou comparações de casos de outros países, para que se possa definir algumas questões. O primeiro conjunto está na exequibilidade do desenho da política públicas. Isso envolve temas orçamentários, recursos humanos e aderência ao ordenamento jurídico.
A etapa de execução continua com o conjunto de questões iniciais, de um segundo conjunto, relacionado com os meios técnicos e jurídicos para viabilizar a política pública desenhada. Ao longo da execução da política pública, também, deve começar uma fase de monitoramento de resultados, para que seja possível corrigir eventuais problemas no desenho inicial, bem como na execução. Essa última fase exige lidar com um terceiro conjunto de questões, que será tratar dos meios pelos quais será avaliada a política pública.
Está claro que é virtualmente impossível realizar uma política pública complexa, como a “regulação do digital” sem que sejam previstos meios para tanto. No âmbito da OCDE, observa-se uma tendência de reguladores de comunicações abarcarem em suas atribuições, ainda que parcialmente, ou mesmo garantirem algum tipo de suporte na formulação de políticas públicas, nas seguintes competências: segurança digital (65%); privacidade (55%); plataformas online (40%); serviços “over-the-top” (60%); computação em nuvem (22,5%); dispositivos para usuários finais, como um computador de mesa ou aparelho celular (“end user devices”) (63%); Internet das coisas e inteligência artificial (60%); aspectos digitais de transportes (25%); saúde (18%); e sustentabilidade ambiental (48%)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
No Brasil, o debate sobre “regulador digital” tem ocorrido no âmbito da sociedade e no Congresso Nacional, tendo ficado particularmente em voga com as discussões sobre a entidade regulatória responsável pelo enforcement das obrigações dispostas no <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735">PL 2630/2020</a>. Essa, contudo, é apenas uma das facetas da questão mais ampla, que é relativa à criação – ou não – dessa autoridade regulatória digital. E, no caso de não criação de uma nova entidade, qual seria a alternativa regulatória mais desejável. De fato, a criação de uma nova entidade reguladora com a atribuição de ser uma “agência reguladora do digital” poderia parecer razoável. Veja-se, a título de exemplo, a existência de projeto de lei tramitando no Congresso dos Estados Unidos estabelecendo uma nova agência federal com o objetivo de regular plataformas digitais<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o que, pode sugerir, na visão de Douglas, um certo grau de insatisfação com o desempenho das agências já estabelecidas na regulação de serviços digitais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
De outro lado, a expansão das atribuições de entidades já existentes também parece razoável. Esse, inclusive, tem sido um caminho identificado pela OCDE, ao observar a expansão de atribuições dos reguladores de telecomunicações de vários de seus membros para endereçar os novos desafios derivados do fenômeno da convergência digital<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
No Brasil, a Agência Nacional de Telecomunicações (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anatel">Anatel</a>) possui um histórico efetivo de lidar com a infraestrutura que serve de base para o tráfego de dados e que, cada vez mais, está conectada na Internet, entendida como “rede de redes”, tendo um amadurecimento institucional para abarcar novas atribuições relacionadas ao provimento de serviços digitais. Ainda, a recém-criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anpd">ANPD</a>) poderia ser fortalecida e ter suas competências expandidas. Por fim, o tema da gestão da informação pública está atribuído à Controladoria-Geral da União (CGU).
Mesmo propostas que visem à criação de um conselho superior com o objetivo de desenhar políticas a serem executadas por agências, entidades e órgãos, de modo multissetorial, poderia parecer razoável. Afinal, essa proposta parte da mesma lógica que descrita nesse texto: coordenação e cooperação. A escolha por um ou outro modelo, contudo, para ser exitosa, deve ser capaz de enfrentar alguns desafios impostos pelas particularidades do processo de transformação digital, com a alteração de um paradigma regulatório tradicional endereçado a um modo de produção industrial para outro informacional<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Destacamos três problemas a serem enfrentados no debate sobre a autoridade regulatória digital.
<h3>Problema 1: dispersão de autoridades e de competências administrativas</h3>
É evidente que o tema da regulação digital está disperso numa série de entidades estatais. Como bem constatado em relatório da OCDE, no Brasil diferentes atores estatais estão encarregados de regular diferentes telecomunicações (Anatel), conteúdo audiovisual (Ancine), radiodifusão (Ministério das Comunicações) e proteção de dados pessoais (ANPD). Essa dispersão, porém, pode ser vista, em maior ou menor grau, como um fenômeno global, em muito decorrente das próprias características dos atores regulados.
A grande variedade de serviços oferecidos por esses negócios – como buscadores digitais, redes sociais, aplicações de intermediação vendas (marketplaces), ferramentas de inteligência artificial e até mesmo carros autônomos – têm como consequência a criação de riscos igualmente variados. Eles passam desde a coleta potencialmente abusiva de dados pessoais, a questão da moderação de conteúdo, possíveis práticas anticompetitivas e até a eventual precarização de relações de trabalho, dentre outros.
A partir de uma análise mais detida, porém, observa-se que tais riscos não estão desconectados. Há interfaces, por exemplo, entre eventuais práticas anticompetitivas e a vigilância privada de usuários. Outro exemplo, ainda, é o uso de ferramentas de inteligência artificial e sua possível relação com a propagação de desinformação nas redes sociais. A existência de múltiplas autoridades para tratar, cada uma, das temáticas específicas acabaria por não contemplar na sua totalidade o risco gerado pela oferta de um dado tipo de serviço e isso, em tese, poderia gerar uma política regulatória menos eficiente.
Por outro lado, a alteração de desenhos institucionais, com o deslocamento de competências de uma entidade estatal para outra, ou mesmo a fusão delas em um só organismo pode ser uma solução, como indicado em relatório da OCDE. O fenômeno de criação de reguladores convergentes em países como a Colômbia, que concentrou os serviços de telecomunicações e audiovisual na Comisión de Regulación de Comunicaciones, por exemplo; outro caso, é que ocorre em países como Alemanha, que decidiu por colocar sob a sua agência de redes, a Bundesnetgentur, a supervisão dos setores de comunicações, de serviços postais, de energia e de transporte ferroviário<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. No entanto, é inegável que o movimento de concentração de competências numa única entidade estatal pode ser extremamente complexo e politicamente delicado, na medida em que pode depender de alterações legislativas e sofrer a resistência de grupos de pressão. Nesse sentido, a ideia de cooperação e coordenação entre diferentes atores ganha contornos mais verossímeis, em contextos como o brasileiro.
<h3>Problema 2: sobreposição de regulações e desertos regulatórios</h3>
Como tratado no tópico anterior, a dispersão de riscos a serem endereçados no contexto de transformação digital ensejou a criação de uma série de autoridades regulatórias. Essas entidades possuem diferentes competências e regimes regulatórios bem estabelecidos, em consonância com o modelo tradicional de agências reguladoras. No entanto, num contexto de aceleração do surgimento de novas tecnologias, as fronteiras entre esses distintos regimes se tornam cada vez mais cinzenta.
Essa mudança factual pode gerar, de um lado, a atuação sobreposta sobre um mesmo problema – o que pode até ser desejável a depender do caso – e, de outro, desertos regulatórios, sobretudo quando se trata da aplicação de sanções. Com efeito, esses vazios regulatórios são particularmente suscetíveis de ocorrer quando relacionados ao enfrentamento de problemas sistêmicos, os quais demandam ações em diferentes áreas<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Essa questão, ou seja, dificuldade de definir modelos regulatórios, aliás, tem sido apontada como uma das causas da demora em se reconhecer, por parte de agentes públicos, da necessidade de regulação das plataformas digitais<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Para mitigar esse problema e ser capaz de liderar uma agenda regulatória coesa, portanto, um eventual regulador digital teria que ter a capacidade de apropria-se de determinadas competências. Isso, porém, nem sempre é simples e, por vezes, depende de alterações legislativas e até constitucionais. Além disso, na prática, remanesce o problema da criação de uma política regulatória para um setor ou serviço influenciar a regulação de outras agências. Isso, no caso brasileiro, adiciona uma camada adicional de complexidade, haja vista a inexistência de hierarquia entre os diferentes entes reguladores.
<h3>Problema 3: capacidades técnicas e preparação para o futuro</h3>
É lugar comum afirmar que as tecnologias se desenvolvem num ritmo mais rápido do que as políticas regulatórias ou estruturas governamentais que visam a supervisioná-las. Isso, contudo, não deve ser visto como um problema em si. Afinal, a efetividade de uma política regulatória não reside única e necessariamente na rapidez da resposta. Aliás, essa opção criaria um grave risco de serem feitas escolhas regulatórias equivocadas. Não obstante, é evidente que a demora excessiva na resposta regulatória pode ensejar na sociedade uma sensação de inércia estatal.
Assim, um dos pontos mais relevante é a existência de uma equipe de formuladores de políticas públicas que detenham conhecimento técnico à altura do ritmo de desenvolvimento tecnológico. Eles precisam ser dotados de um certo grau de prospecção analítica e de capacidade de antecipar alguns dos riscos e dos problemas potenciais que poderão advir de um novo modelo de negócios ou de um novo serviço ofertado. Nesse sentido, a construção de equipes multidisciplinares também é essencial para o enfrentamento de problemas complexos. Essa multidisciplinariedade não deve estar só ligada à formação acadêmica do corpo burocrático. Ela também está relacionada com a capacidade de articulação dos possíveis impactos de uma dada política regulatória em diferentes campos, como competitividade, privacidade de usuários e segurança digital, por exemplo.
Apresentados os desafios que um eventual futuro regulador digital teria que dar conta para a produção de uma política regulatória digital consistente, considera-se que a criação de mecanismos de colaboração, coordenação e cooperação entre agências seja uma solução mais adequada e realista para dar conta dos desafios trazidos pelo modo de produção informacional. Portanto, deve-se pensar na atuação desses futuros reguladores do ecossistema digital não como silos isolados, mas como uma matriz de pontos tal qual como concebida por Andrew D. Murray, em que cada agência corresponde a um ponto dentro de uma rede de conexões.
Para ele, o ciberespaço pode ser concebido como uma matriz de pontos, interconectados, de modo que cada ponto representa uma comunidade. Assim, se forma uma rede, na qual se sobrepõe as influências de uns pontos sobre os outros, a depender do seu peso<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Dessa forma, eles deverão formar um arco, cuja hierarquia é formal; porém, a diferença nas capacidades técnicas deve permitir que uma agência melhor estruturada possa colaborar na configuração de uma política regulatória convergente. Há uma série de instrumentos de coordenação e cooperação que podem ser utilizados pelas agências reguladoras com o intuito de sintonizar suas ações, tais como: mecanismos de consulta; acordos de cooperação técnica; ferramentas para elaboração conjunta de políticas públicas; e determinações do Congresso Nacional e da chefia do Poder Executivo. Mesmo a literatura jurídica atual tem apontado para essas possibilidades<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Em suma, esse texto buscou apontar algumas possibilidades para o crescimento de uma interconexão – ou interoperabilidade – majorada entre as agências reguladoras no Brasil com foco no dilema da regulação digital. Essa atuação colaborativa, cooperativa e coordenada será essencial para a garantia de um bom ambiente para os mais diversos setores, que vivenciam o impacto da digitalização da vida social e econômica.
Contudo, o texto não pretende apontar quais das várias ferramentas de cooperação, coordenação e colaboração seriam as mais adequadas para o enfrentamento da atual questão regulatória digital no Brasil contemporâneo. Para definir os contornos de uma política regulatória convergente e em arco será necessário elaborar estudos mais aprofundados sobre esse tema. Aliás, além disso, esses estudos e pesquisas irão requerer a contribuição de diversos atores. Afinal, um tema tão importante e crucial como esse não será resolvido, também, sem que haja participação da sociedade civil e do mundo político, ou seja, colaboração, coordenação e cooperação.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> REIDENBERG, Joel R. Governing networks and rule-making in cyberspace. Emory Law Journal, v. 45, p. 911-930, 1996.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> OCDE. Communication regulators of the future. OECD Digital Economy Papers, n. 333. Paris: OCDE Pub., 2022. Disponível em <a href="about:blank">https://doi.org/10.1787/f02209e6-en</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ESTADOS UNIDOS. Digital Platform Commission Act. S. 4201, 117th Cong. (2022).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> DOUGLAS, Erika. Constructing the digital regulatory ecosystem: agency collaboration. Virginia Journal of Law and Technology, v. 26, n. 1, p. 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OCDE. Communication regulators of the future. OECD Digital Economy Papers, n. 333. Paris: OCDE Pub., 2022. p. 8. Disponível em <a href="about:blank">https://doi.org/10.1787/f02209e6-en</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> CASTELLS, Manuel. The information age: the rise of the network society, v. 1. 2. ed. Oxford: Blackwell Pub., 2010, p. 16.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> OCDE. Communication regulators of the future. OECD Digital Economy Papers, n. 333. Paris: OCDE Pub., 2022. p. 15-16. Disponível em <a href="about:blank">https://doi.org/10.1787/f02209e6-en</a>.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> DOUGLAS, Erika. Constructing the digital regulatory ecosystem: agency collaboration. Virginia Journal of Law and Technology, v. 26, n. 1, p. 2023.p. 8.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> DOUGLAS, Erika. Constructing the digital regulatory ecosystem: agency collaboration. Virginia Journal of Law and Technology, v. 26, n. 1, p. 2023. p. 7.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> MURRAY, Andrew D. Nodes and gravity in virtual space. International Journal of the Study of Legislation, v. 5, n. 1, p. 195-221, 2001.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> FREEMAN, Jody; ROSSI, Jim. Agency coordination in shared regulatory space. Harvard Law Review, v. 125, n. 5, p. 1155-1178. Disponível: <a href="https://core.ac.uk/download/pdf/230470018.pdf">https://core.ac.uk/download/pdf/230470018.pdf</a>. p. 1131.

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