Opinião e Análise

Thais Lemos Duarte

Natália Martino

Ludmila Ribeiro

As prisões e as diversas dinâmicas que as atravessam tendem a aparecer na imprensa e em outros veículos só em situações específicas, quando as violências irrompem em rebeliões ou quando tais espaços são envoltos em denúncias de corrupção.
Ainda mais raros são os debates com foco nos familiares de presos. Representados, em especial, por mulheres, os familiares são ignorados no debate público e, mais grave, poucas vezes são alvos de políticas públicas garantidoras de direitos. Essas pessoas formam uma mediação que supera a distância entre o cárcere e o mundo exterior. Tornam, assim, os ambientes prisionais espécies de “satélites domésticos”, de forma a garantir uma vida minimamente digna aos custodiados.
Em um cenário de precarizações generalizadas, são as famílias que fornecem itens essenciais aos presos, como água potável, alimentos e remédios. A administração prisional praticamente “terceiriza” a elas diversas funções, que, pelo contrário, deveriam ser sua tarefa de execução penal. A presença dos familiares nos cárceres é também um ponto de controle externo, na medida em que eles verificam in loco as condições de vida dos custodiados, além de serem depositários de eventuais denúncias de tortura. De posse dessas informações, não raramente, se mobilizam em coletivos de familiares de presos e formalizam denúncias a órgãos públicos.
Durante a pandemia da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coronavirus">Covid-19</a>, momento em que as visitas foram temporariamente suspensas em praticamente todos os estados, ficou dificultado o contato entre os custodiados e suas famílias, ampliando a vulnerabilidade de toda a comunidade engendrada pelas políticas prisionais.
Foi possível observar, por exemplo, o aumento do isolamento das unidades, as quais se tornaram mais opacas à fiscalização. Em consequência, irromperam muitas denúncias dos familiares envolvendo transferências de presos desnecessárias, informações oficiais incompatíveis com as condições sanitárias dos estabelecimentos, bem como surtos de Covid-19 não notificados e muitas vezes não curados.
Como pesquisadoras das políticas prisionais no Brasil, abraçamos a responsabilidade de, em parceria com familiares de presos, ampliar o conhecimento público sobre o que acontece nos cárceres durante a pandemia de Covid-19. E assim nasceu o projeto “Cadê os meus direitos?”.
<h3>Como o projeto foi construído?</h3>
“Cadê os meus Direitos?” é fruto de uma parceria entre o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ufmg">Universidade Federal de Minas Gerais</a> (CRISP/UFMG), a Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT), o Instituto de Ciências Penais (ICP) e a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade.
Partimos do suposto de que os familiares são fundamentais ao controle das irregularidades e ilegalidades ocorridas nos cárceres. Compreendemos também ser função da Universidade e de grupos de direitos humanos garantir que os parentes de presos estejam munidos de ferramentas para que possam reconhecer, denunciar e transformar as violações típicas do sistema prisional.
Nossa proposta foi construída, então, a partir de três eixos de ação: 1) coleta e análise de dados; 2) curso de formação para os familiares de presos; 3) construção de uma rede de prevenção da tortura.
De início, analisamos o cenário dos cárceres brasileiros na pandemia de Covid-19, utilizando informações do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) e dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lai">LAI</a>), remetidos pelos estados. Ainda, analisamos decisões judiciais referentes a pedidos de solturas e progressões de regime baseados nos parâmetros estabelecidos pelo CNJ relativos à pandemia, e denúncias feitas na plataforma Desencarcera. Esses dados, trabalhados no eixo 1 de ação, foram usados como diagnóstico para seguirmos com os passos seguintes.
Avançamos, então, na organização de uma rede de parceiros, embrião do eixo 3. Além de reuniões e debates com representantes de grupos que trabalham com prevenção e combate à tortura nos cárceres, foi especialmente relevante, nessa etapa, a aproximação com parentes de presos em Minas Gerais. Nosso foco recaiu em lideranças mulheres, sendo que três delas passaram a atuar como articuladoras do projeto.
Elas ajudaram, por exemplo, a esclarecer lacunas no estudo realizado no eixo 1. O número relativamente baixo de presos com diagnósticos positivos de Covid-19 e que foram a óbito pôde ser compreendido não tão só como fruto da subnotificação. As articuladoras relataram dinâmicas que visaram reduzir as estatísticas de mortes nas prisões, como uma política informal estabelecida em Minas Gerais, empregada por servidores de unidades prisionais e membros do Judiciário, cujo efeito seria expedir alvarás de soltura aos presos infectados que eram hospitalizados. Assim, casos graves que evoluíssem a óbitos não seriam computados como mortes dentro do sistema prisional.
Essas informações foram organizadas para, em um segundo momento, iniciarmos um trabalho com jornalistas. A proposta é ampliar a rede de prevenção às violações carcerárias ao trazer para o diálogo jornalistas afeitos aos direitos humanos e, ainda, aumentar a vocalização das denúncias sobre o que se tenta oficialmente esconder atrás dos muros das prisões mineiras.
Todos esses passos ajudaram a montar o cronograma de formação contida no eixo 2 do projeto. Decidimos por um curso virtual, aproveitando a experiência de reuniões online realizadas durante a pandemia de Covid-19 pelas redes de familiares de presos em Minas Gerais Essa prática assegurou que teríamos uma boa participação dos parentes de custodiados no curso e, ainda, permitiu que dispersássemos nossas ações em um estado que apresenta mais de 200 unidades prisionais espalhadas por um extenso território.
<h3>Como se organiza o curso para a busca de direitos?</h3>
Os temas focalizam a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-execucao-penal">Lei de Execução Penal</a>, com o objetivo de ajudar os participantes a conhecer os seus direitos e os melhores caminhos para seguir quando determinadas garantias são violadas. Desde aulas práticas sobre como ler atestados de pena a temas mais conceituais, como detração de pena, os assuntos foram distribuídos em 14 oficinas, realizadas todas as quartas-feiras.
As articuladoras do projeto mencionaram também a importância de o curso tratar de “cuidados pessoais” ao apontarem que as vidas dos familiares passam a ser tão guiadas por horários, regras e precariedades do sistema prisional que, não raro, a própria saúde deles acaba negligenciada.
Os professores do curso foram escolhidos em conjunto com os atores que compuseram a rede formada pelo “Cadê os meus Direitos?”. Fazem parte do corpo docente promotores e defensores públicos, além de juízes, policiais civis, professores universitários e membros do Terceiro Setor. Com inscrição gratuita, mais de 200 pessoas se interessaram pela formação.
A lista inicial passou pelo escrutínio das articuladoras do projeto, que solicitaram a exclusão de alguns indivíduos por não serem parentes de presos. O objetivo foi garantir a segurança e o conforto durante o curso, para que os familiares possam manifestar suas dúvidas e contar suas experiências na certeza de estarem entre pares.
O curso está em pleno andamento, com programação até o dia 13 de julho, e tem contado, em cada aula, com cerca de 70 participantes. Mais do que a exposição de informações sobre leis e normas, o curso tem se conformado como um importante momento de troca. Se, por um lado, os professores destrincham informações técnicas e jurídicas, por outro, os familiares expõem as pedras no caminho para que os direitos sejam, na prática, consolidados ou as denúncias se efetivem.
Ideias que buscam consolidar um Estado Democrático de Direito povoam um espaço em que indivíduos de grupos socioeconômicos tão distintos efetivamente se encontram. Esperamos que, desses momentos, sejam pavimentadas trilhas para uma sociedade mais justa e na qual a tortura não seja uma marca cotidiana.

grant-durr-PPWXd6bvRoM-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Familiares dos presos costumam ser ignorados no debate público e poucas vezes são alvos de políticas públicas