Opinião e Análise

Pedro Heitor Barros Geraldo

Há quase 20 anos começava uma “modernização” dos meios do Poder Judiciário prestar sua tutela jurisdicional. Fontainha (2012) explica que a informatização dos tribunais estava além da substituição de máquinas de escrever por computadores, pois também mudava a percepção dos próprios magistrados sobre seu trabalho. As sentenças passaram a contar com modelos prévios onde a argumentação jurídica e a decisão estavam prontas. Bastava modificar a identificação das partes e do relatório. E não faltavam estagiários para realizar este trabalho. A crise da gestão dos recursos financeiros do judiciário no início deste século foi o estopim de uma reforma do judiciário (Sinhoretto, 2011). Entretanto, a crise foi interpretada como um problema de uma justiça morosa em que a centralização dos poderes poderia solucionar o problema de gestão dos seus estoques de processos judiciais.
Assim, os juízes investiram em formas certificadas de organizar o trabalho em suas secretarias e de seus gabinetes. Como consequência da informatização dos tribunais, Fontainha (2012) argumenta ainda que as identidades profissionais e as formas de controle do trabalho produziram um outro tipo de juiz avaliado pela sua capacidade de sentenciar e encerrar os processos judiciais. Em 2011, a Folha de S. Paulo noticiava a exigência para que os desembargadores julgassem os recursos represados na justiça “sob o risco de punição” (Roncaglia, 2011). Um desembargador adiantou sua aposentadoria e avisou aos colegas: "Sombrios tempos vive nossa corte, (...) pois, sob os influxos inquisitoriais e midiáticos vindos de Brasília, pretende dar valor, apenas, ao juiz moderno". (Roncaglia, 2011). Este juiz moderno está orientado para a gestão dos meios disponíveis para tratar os processos.
Uma década depois, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/fux">ministro Luiz Fux</a>, do Supremo Tribunal Federal (STF), anunciou a Justiça 4.0, em que os processos físicos são substituídos paulatinamente em processos judiciais eletrônicos. As práticas de organização do Poder Judiciário incluíram o trabalho em casa de servidores e magistrados. E muitos sistemas para o controle remoto dos processos e das decisões. Um magistrado brasileiro pode realizar as atividades jurisdicionais sem constrangimentos em outro país, no jargão judiciário, de forma autônoma e independente enquanto a jurisdição vai para a nuvem. Espera-se com isto acelerar os julgamentos por uma justiça acessível e rápida. Associado a estes movimentos, as reformas da justiça foram centralizando os poderes nas cortes superiores para evitar o excesso de recursos — uma das supostas causas da lentidão — enquanto as reformas dos processos aumentaram os poderes dos magistrados. Tudo isso em detrimento da participação das partes e seus advogados.
A pandemia, por sua vez, catalisou este processo de informatização ao “virtualizar” as audiências de instrução e, quando o juiz deseja, julgamento. A realização remota das audiências judiciais foi acompanhada pela restrição do atendimento nos fóruns aos advogados e aos cidadãos. Os Ministérios Públicos acompanharam o movimento. Em muitos lugares, a OAB ainda reivindica a retomada dos atendimentos presenciais.
<h3>A finalidade das audiências judiciais e o ritual desencaixado</h3>
Em nossa cultura jurídica, as audiências judiciais presenciais são rituais de gabinete onde a atenção das autoridades e dos interessados está voltada para um único processo. A mesa em “T” separa as autoridades das partes do processo. Entretanto, o representante do MP reivindica seu lugar ao lado do magistrado, como se faz numa organização tipicamente inquisitorial da justiça como a francesa (Geraldo, 2019). A participação das partes deve ser mediada pelos advogados e as partes (sejam autores, sejam réus no cível ou no criminal, mas também testemunhas) devem observar o que as autoridades esperam ouvir durante as inquirições. E não exatamente o que pretendem falar com suas próprias categorias sob o risco de sanções, broncas e ameaças de prisão por parte das autoridades. Afinal, o controle do tempo se relaciona com a disposição das autoridades e jamais com a natureza do conflito. Este encontro é uma etapa de um único processo. Em consequência, a presença dos atores num mesmo lugar é despicienda e eventualmente mais onerosa para as autoridades.
Ao modernizar os meios, o desencaixe dos atores no mesmo lugar se relaciona com a finalidade das audiências, pois o processo eletrônico dispensa as indas e vindas do processo físico em que os advogados sempre foram as pernas e os serventuários empurradores de carrinho para dar andamento aos feitos. Portanto, não há a necessidade de todos se encontrarem, como em muitos lugares não era incomum audiências presididas apenas pelos secretários se os advogados não preferissem criar caso sempre em detrimento de suas reputações e para evitar decisões desfavoráveis aos seus clientes. Desta forma, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/audiencias-virtuais-e-conciliacao-nos-processos-trabalhistas-no-pos-pandemia-04012021">o encontro dos atores judiciários numa sala virtual tornou-se uma realidade</a>.
<h3>A terceirização da responsabilidade dos rituais judiciários</h3>
Neste ritual de audiência, em que todos estão em lugares distintos, as residências dos magistrados com seus ornamentos particulares substituíram o ambiente reservado das salas com seus crucifixos. Os advogados assumiram as funções do judiciário ao acolher as partes e testemunhas. E muitas partes estavam onde podiam estar para ter acesso a um sinal de internet suficientemente estável para participar do ritual.
Esta terceirização do ritual judiciário ocorre para outros atores e instituições. O ritual não ocorre num lugar, mas num link disputado pelos advogados para encontrar os juízes para despachar processos. Esta prática reivindicada pela OAB é uma prerrogativa para os advogados para que possam conversar e solicitar providências sobre o processo reservadamente com o juiz. Para os advogados, a saída foi conseguir os links e entrar nas salas para esta finalidade.
O <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-delegado-mandou-avisar-a-audiencia-de-custodia-ja-vai-comecar-20022021">exemplo das audiências de custódia</a> refletem igualmente esta terceirização da cena judiciária. Em alguns casos, passou a ser de responsabilidade da administração penitenciária prover as condições de infraestrutura para sua realização, como é o caso da região metropolitana do Rio de Janeiro (Abreu e Geraldo, 2019). Em muitos casos, como relatam os advogados que foram impedidos durante a pandemia de entrevistar reservadamente seus clientes, a entrevista acontecia com o preso acompanhado dos agentes penitenciários ou mesmo policiais. Uma violação explícita aos direitos do réu.
Em muitos outros lugares, a criação das salas virtuais pelos links é prerrogativa das autoridades. Nos fóruns, podem estar presentes nas salas de audiência os policiais, servidores técnicos e administrativos. Em alguns casos, custodiados, acusados e réus. Entretanto, as autoridades participam dos atos remotamente por meio do link.
<h3>A finalidade das audiências</h3>
O desencaixe dos atores na cena e do próprio lugar da justiça — fora dos fóruns — tem <a href="https://www.jota.info/jotinhas/discordancia-de-uma-parte-sobre-audiencia-virtual-nao-e-suficiente-para-adia-la-22072020">consequências sobre a finalidade das audiências</a>. Se por um lado o Poder Judiciário se deu conta que o processo é uma tecnologia de diferimento da administração de conflitos no tempo exclusivamente controlado pelos magistrados, por outro ele também pode desencaixar os atores e a cena no espaço em que cada um está onde quer e pode estar. O desencaixe pela automatização não é por acaso, pois faz parte de um aprimoramento deste dispositivo colonial que se constitui o processo judicial brasileiro subordinando cada vez mais a organização judiciária. Em outras palavras, os fóruns são organizados para cuidar de processos e não administrar conflitos entre os cidadãos de forma igualitária perante uma coletividade de interessados nestes conflitos. Como pude observar no contexto francês (Geraldo, 2013, 2015), a forma igualitária de tratamento se relaciona como uma distribuição igualitária da atenção e do tempo das autoridades entre os casos na audiência, mas também da reafirmação do significado das regras jurídicas para os casos semelhantes.
Os encontros nos fóruns têm um significado negativo para juízes que resistem a conversar reservadamente com advogados e evitam as audiências como podem; estas tarefas são delegadas aos secretários, que também deploram o atendimento de balcão das secretarias. Afinal, estes encontros indesejáveis são momentos de cobrança de explicações, orientações quanto as práticas locais a respeito dos “códigos de processo dos juízes”, como relatam recorrentemente os advogados e secretários. Os assessores principalmente detêm uma confiança por guardarem o sigilos destas práticas cartorárias (Sampaio e Lima, de, 2021).
Ao menoscabar os efeitos do ritual, este Judiciário cada vez mais autônomo e independente produz uma impossibilidade de constrangimento das suas práticas. Esta modernização permitiu uma transformação na forma de avaliar o trabalho dos juízes pelo número de decisões, mas a qualidade da justiça ainda permanece um mistério para os operadores do direito e, principalmente, para a sociedade. Se uma decisão adequada deve ser imparcial, como a sociedade pode reconhecê-la se sua participação não é o centro das atenções e se os jargões jurídicos, cartoriais e metafísicos dos operadores não são inteligíveis? Enquanto se ensina nas faculdades que o processo é um instrumento de garantia de direitos, a automatização torna os meios de acesso cada vez mais excludentes em meio a um mercado de advogados que não para de crescer. E a compreensão sobre estas práticas ainda mais entruncada.
A legitimidade do custoso Poder Judiciário advém mais de sua autonomia e independência do que da valorização da participação dos cidadãos em seus rituais. A imparcialidade de suas decisões é tratada como um mito pelos próprios magistrados, sem nenhuma correspondência nas suas práticas, como nos explica Lupetti Baptista (2020).
Com tanto poder, podemos nos indagar sobre os fundamentos democráticos desta transformação e o quanto podemos reconhecer a qualidade das decisões neste contexto. Afinal, a organização do Judiciário, assim como os demais, não prescinde de uma legitimidade democrática para suas práticas, apesar dos fundamentos ainda coloniais de seus símbolos e da administração da justiça, como têm demonstrado as pesquisas empíricas sobre e no direito brasileiro.
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ABREU, J. V. F. D.; GERALDO, P. H. B. A custódia nas audiências: Uma análise da política de transferência das audiências de custódia para a cadeia pública na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 0, n. 0, p. 97–113, 23 jul. 2019.
FONTAINHA, F. DE C. Juízes empreendedores: Um estudo a partir da informatização dos tribunais brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
GERALDO, P. H. B. A audiência judicial em ação: uma etnografia das interações entre juristas e jurisdicionados na França. Revista Direito GV, v. 9, n. 2, p. 635–658, dez. 2013.
___. Practical Solutions: Praxiological Analysis of Judgments in Civil Hearings. In: DUPRET, B.; LYNCH, M.; BERARD, T. (Eds.). . Law at Work: Studies in Legal Ethnomethods. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2015. p. 63–83.
___. Políticas públicas judiciárias: Uma abordagem comparativa entre a organização social da Justiça no Brasil e na França. Revista Juris Poiesis, v. 22, p. 309–328, 2019.
LUPETTI BAPTISTA, B. G. A crença no princípio (ou mito) da imparcialidade judicial | Revista de Estudos Empíricos em Direito. v. 7, n. 2, jun. 2020.
RONCAGLIA, D. Sob risco de punição, magistrados de SP aceleram processos - - Poder. Folha de S.Paulo, 22 ago. 2011.
SAMPAIO, L. F. S.; LIMA, R. K. DE. Os juízes criminais e seus assessores: O papel da preseunção da culpa e da “confiança” na produção das sentenças criminais na cidade do Rio de Janeiro. Revista Juris Poiesis, v. 24, n. 36, p. 23, 2021.

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

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JOTA

Qualidade da justiça ainda é um mistério para os operadores do direito e, principalmente, para a sociedade

As audiências judiciais brasileiras na Justiça 4.0

Audiências judiciais na Justiça 4.0: Qualidade da justiça ainda é mistério para os operadores do direito e, principalmente, para a sociedade